Luanda  - Que avaliação faz desta década de paz em Angola?

Fonte: SOL


A paz foi um bem que veio e acho que veio para ficar. Todos os angolanos, antes e depois da minha geração, que viveram o processo político do nosso país, mais propriamente desde a luta de libertação em 1961, tinham esperança que a independência em 1975 nos trouxesse uma certa dignidade, porque nunca esperámos que o nosso país ficasse, de 1975 até 2002, marcado pela guerra. Em 1992, infelizmente, aqueles que criticaram a forma como chegámos à independência e exigiram que o MPLA revisse a sua legitimidade de governar Angola não aceitaram o resultado das eleições e tivemos a guerra. Portanto, estes 10 anos representam um período de paz em que cada um de nós, na sua esfera de acção, tem estado a mostrar a criatividade e a lutar para engrandecer Angola. Todos os angolanos, de Cabinda ao Cunene e de Benguela ao Moxico, estão entusiasmados com os frutos desta paz e espero que as novas gerações a possam manter. Ainda não se contabilizou quantos angolanos morreram desde 1961 até 2002, em resultado das guerras. Como se vê na história do mundo, as guerras são feitas pelos homens e são eles também que conseguem a paz. As pessoas têm que viver numa Angola unida, na diversidade de ideias, e só assim conseguiremos ter uma Angola melhor.

Acha que tudo isso seria possível sem a morte de Jonas Savimbi?

Com toda a franqueza, acho que não. Sou pela vida e a morte deve ser natural. Mas, analisando o nosso contexto político, na guerra alguém tem de ser vencedor. Infelizmente, na história de Angola, e não estou só a falar no período de 1961 a 1975, houve muitas contradições nos movimentos de libertação nacional, tanto da UNITA quer da FNLA. Estou a lembrar-me do Presidente Agostinho Neto a falar, em 1978, sobre uma política de clemência e harmonização nacional; vimos o Presidente José Eduardo dos Santos a decidir sobre o multipartidarismo em que, do ponto de vista político, o MPLA poderia ou não ganhar as eleições, e fê-lo sempre com uma certa ética e sentido de Estado e não se sentiu, da parte de Savimbi, essa ética e sentido patriótico pelos angolanos. Sabemos que nos acordos de Bicesse, em 1991, em Portugal, o Governo angolano submeteu-se, na altura, a todas as estratégias da comunidade internacional. Falaram em 36 meses para eleições, mas convenceram-nos a concordar com 18 meses. Assinou-se aquele acordo de Bicesse e, afinal, a UNITA tinha um plano B. Se ganhassem as eleições estaria tudo bem, de contrário fariam a guerra e foi isso que aconteceu, portanto não devemos branquear a história. Lembro-me de estar numa conferência em Portugal com uma professora que tratava dos interesses da UNITA em Portugal e dizia-se que para a paz se instalar em Angola alguém teria de sair sacrificado: ou Savimbi perdia a guerra, morrendo em combate, ou na própria UNITA haviam de o afastar da liderança e colocar alguém com capacidade de negociar a paz. Sempre que o MPLA e a UNITA fizessem algum acordo, Savimbi era o primeiro a violar a negociação. Os acordos tem de ser concebidos com boa-fé e isso nunca se viu por parte de Savimbi. Hoje, com todos os percalços que vai tendo o nosso processo de constituição nacional, vemos que a paz veio para ficar. As pessoas querem ter uma fazenda, uma casa, um negócio, uma empresa. Quer da parte do MPLA, da UNITA ou de outras forças políticas. Hoje todos querem bem-estar e ninguém quer voltar à guerra. Jonas Savimbi fica na história de Angola para o bem e para o mal. É um reconhecimento que tem que se fazer: Enquanto líder da UNITA, num determinado contexto, foi uma pessoa com responsabilidades sérias, mas noutro contexto não as teve. Caberá aos historiadores pesquisarem e escreverem sobre isso.


Acha que já se pode falar de verdadeira democracia em Angola?

Angola passou por três fases. Tivemos a I República, com um sistema de partido único; tivemos a II República, no período de 1992 a 2002, em que mesmo com a guerra, e por Angola ser um país sui generis, tivemos um partido a aprovar leis no parlamento e uma outra parte a lutar na mata contra o Estado democrático. O Presidente José Eduardo dos Santos geriu esse processo com toda a cautela que se impunha, na nossa jovem democracia. Agora, com a nova Constituição, estamos a construir o Estado de direito democrático e isso leva tempo. O importante é que cada um de nós saiba o papel que pode desempenhar. O Governo está a governar e os tribunais estão a desempenhar os seus papéis no âmbito dos direitos e garantias. Hoje, em Angola, a sociedade civil começa a ser forte, tem ideias, e a comunicação social tem contribuído para isso. Falar do Estado de direito democrático é falar do direito à escola, à habitação, ao emprego, a uma melhor aplicação dos direitos políticos, melhores tribunais, melhor Governo, melhor parlamento e melhor cidadão. Acho que deve haver uma pequena reforma a nível da Justiça, porque durante muito tempo vivemos com as leis coloniais e estamos agora a rever vários códigos. Os angolanos têm que acreditar que vamos, paulatinamente, construir os degraus do nosso estado democrático.


Como comenta as disparidades que ainda são visíveis no país?

Há quem pense que tudo tem de ser feito num dia. Gostaria que, depois de ter acabado a guerra em Angola, no dia seguinte Deus nos promovesse ao paraíso, mas temos de ter em atenção que este país está a ser destruído desde 1961 e fundamentalmente desde 1974. São 30 anos e, se contarmos com o colonialismo, são quase 40 de destruição de Angola. Um país que foi destruído durante 40 anos, pode em 10 anos ser reconstruído? Pode acabar com as disparidades e assimetrias regionais? Pode dar dignidade de vida a todos os cidadãos? Não é possível. O que é possível é que haja estratégias de curto, longo e médio prazo que possam permitir, de facto, que os estudantes tenham melhor acesso à riqueza. Este é o grande debate nacional que tem estado a acontecer. Temos de concordar que, nestes 10 anos de paz, já muita coisa foi feita. O país era composto, praticamente, por ilhas. Todas as pontes e infra-estruturas estavam destruídas e hoje a maior parte do país já está ligado por pontes. Reconstruiu-se mais de 7 mil quilómetros de estrada. Estão a criar-se novas centralidades. Posso não estar de acordo com os modelos, mas está fazer-se. Há uma responsabilidade de criar novas cidades, em todas as províncias, com a preocupação de desenvolver o interior. Há uma estratégia de lançar a agricultura e relançar as indústrias. Quanto mais riqueza for desenvolvida a nível do país, mais fácil será combater as assimetrias e pobreza que ainda afecta 70% da população.


No que respeita à Educação, qual é o seu balanço?

Em 2002, tínhamos 1,3 milhões de alunos, do ensino de base ao médio. Hoje temos mais de seis milhões de estudantes. Praticamente não tínhamos institutos médios no país e hoje em quase todos os municípios do país temos institutos médios. Em 2002, tínhamos apenas uma universidade pública, com oito mil e quinhentos alunos, e hoje temos cerca de cento e cinquenta mil alunos no ensino superior. Hoje o Estado tem uma universidade em cada região e há 14 universidades privadas. Existem cerca de 30 institutos superiores, quer públicos, quer privados. A educação é uma área que nos permite ver que o país está a avançar. Hoje há uma explosão escolar muito grande e o próprio governo está agora a investir nas infra-estruturas universitárias. Veja-se o projecto da cidade universitária que está na sua primeira fase e foi inaugurada recentemente pelo vice-presidente da República.


E na Saúde?

Quando olhamos para as estatísticas, vemos que há uma grande melhoria nos hospitais públicos. Há algumas deficiências, mas também houve uma grande melhoria. Poucos países africanos podem, por ano, vacinar um milhão de crianças. Seja na poliomielite ou outras doenças. Há uma grande preocupação com a mulher grávida e com os jovens. Os cidadãos querem que as coisas sejam feitas mais depressa, mas é preciso termos atenção que as coisas são feitas a partir dos recursos que o país tem. É preciso criar recursos fora da área do petróleo e é com essa receita que o Governo tem capacidade de expandir ou poder realizar as suas acções no âmbito da educação, saúde, promoção do emprego e das grandes preocupações dos jovens.


Já que fala em jovens, compreende alguma insatisfação que existe?

O nosso país tem uma população jovem e ser jovem é pedir cada vez mais. Os jovens querem tudo de bom, mas isso as pessoas vão ter consoante o país for avançando e formos tendo estratégias de combate à pobreza. Acredito que estamos no bom caminho. Acho que faltam em Angola mais debates e reconheço que o Estado democrático se constrói com debates sobre as grandes estratégias nacionais.

Essa grande estratégia nacional tem que incorporar não só o MPLA, mas todas as forças políticas. A ministra do Planeamento, Ana Dias Lourenço, já deu uma palestra na Faculdade de Economia da Universidade Agostinho Neto e outra no acampamento dos estudantes universitários onde falou da agenda ‘Angola 2025’. Este plano deve ser mais divulgado pelo país inteiro e, quanto mais conhecermos do projecto ‘Angola 2025’, mais esperanças estamos a dar às pessoas. Essa estratégia passa, por exemplo, por dar água para todos, por políticas habitacionais, pela construção de infra-estruturas, pelo aumento da produção agrícola e pelo lançamento das nossas indústrias. Há tanta coisa que os cidadãos precisam de conhecer.


Como analisa a relação entre Angola, Portugal e o Brasil?

José Eduardo dos Santos quando falou, pela primeira vez, sobre o estado da Nação, elegeu quatro países estratégicos para Angola: Brasil, Portugal, Estados Unidos e China ou África do Sul. Na minha opinião, o Brasil pode ser mais estratégico do que Portugal, porque é neste momento a sexta ‘tecnologia’ do mundo e é um grande país industrial que pode ajudar muito Angola na sua reconstrução. Quanto a Portugal, tenho as minhas dúvidas sobre este ‘casamento’. Há vários empresários angolanos a investirem em Portugal e empresários portugueses a investirem em Angola. Há um fluxo de cidadãos a viajarem de um lado para o outro, o que implica dizer que há interesse. Nota-se que os voos da TAAG e da TAP estão sempre cheios. Há, também, o factor língua que é cultural e o factor das famílias. Há muitos quadros luso-angolanos que, durante muitos anos, viveram fora de Angola e que hoje estão a regressar. A dúvida que fica é se estão a desejar Angola como pátria, porque amam o país, ou se estão a vir só para fazer dinheiro e depois regressarem a Portugal. Reconheço que há uma jovem geração que saiu daqui com três, quatro, cinco anos que está a voltar. Não sei qual a estratégia que o Executivo tem sobre esse tema.


Acha que há lugar para esses angolanos que viveram lá fora e agora querem regressar?

Uma vez angolano sempre angolano. Quem nasceu em Angola, mesmo que mude de nacionalidade, não deixa de ser angolano. Sabemos que uma boa parte dos angolanos, devido à guerra, abandonou o país e muitos foram com bolsas de estudo do governo estudar fora e acabaram por ficar por lá. Nos últimos 10 anos, muita gente está a regressar e a maior parte está a ser bem colocada nas grandes empresas, como bancos e outras do mundo financeiro. Pode é haver problemas com aqueles que ficaram lá fora durante muito tempo e não aproveitaram, sequer, para fazer uma formação profissional e académica. Esses que estão a regressar nessa condição, na minha opinião, poderão ter alguns problemas.