Luanda - O docente e especialistas em questões ambientais, Bernardo de Castro, considera que o assalto às terras do domínio costumeiro é um atentado à história e cultura dos povos. O activista explica o seu ponto de vista na entrevista, exclusiva, cedida ao Club-K.

Fonte: Club-k.net


C.k- Sr. B. Castro, o país conhecerá dentro de poucos dias as eleições e um novo governo se avizinha. Que avaliação faz do governo em sede de políticas fundiárias?

B.C- Antes, obrigado por esta oportunidade. O actual governo não produziu alguma política fundiária. A julgar pelos elevados índices de conflitos de terras que se registaram um pouco por todo o país com demolições e realojamentos compulsivos considero mau o desempenho do governo quanto à gestão de terras que deve respeitar os princípios da equidade e bem-estar de todos.

C.k-  Desde 2008 foram constituídas várias reservas fundiárias e o país ganhou com o surgimento de novas centralidade e novos fogos habitacionais. Não achas uma valia?

B.C- É, sim, uma valia, mas o mundo, hoje, tem um inimigo comum que não conhece países desenvolvidos nem pobres: as alterações climáticas e seus nefastos impactes. A sustentabilidade deve ser uma guerra declarada, embora, negligenciada por alguns Estados. Cá, entre nós, fala-se muito de desenvolvimento sustentável, mas as políticas que conheço carecem, realmente, tanto de instrumentos económicos quanto políticos de sustentabilidade. Portanto, a constituição de reservas fundiárias e o surgimento de novas centralidades sem estudos prévios é um golpe ao desenvolvimento e gestão sustentável da terra.


C.k- Muitas famílias que residiam em áreas de risco foram alojadas em novos fogos habitacionais.

B.C- É dever de um Estado. Aliás, quem foi permissivo para que tivéssemos bairros desordenados e famílias em zonas de extrema perigosidade é o governo.


C.k-Tem algum fundamento para esta acusação?

B.C- A excessiva pressão populacional nas periferias das grandes cidades deve-se à guerra que tem protagonistas e às profundas assimetrias regionais e desigualdades sociais impostas aos angolanos. Nos municípios algumas familias têm de percorrer mais de 50 km para aceder a um serviço público: hospital, etc. Portanto, o mais importante não é desalojar e alojar um grupo humano de um espaço para outro. Há que assegurar uma diversidade de valores desde os socio-políticos, económicos, culturais aos de natureza ambiental. Sei que muitas famílias, no processo de desalojamento, perderam os seus empregos, algumas crianças deixaram de estudar, por algum tempo, e os que viviam da pesca viram-se impedidos da sua ocupação tradicional. Mais, por inexistência de estudos prévios, ninguém sabe se as terras onde foram instalados os fogos habitacionais seriam mais aptas para outros fins. Tudo isso, configura um estado de insustentabilidade.


C.k- Não julga essa posição, de alguma forma, pesada para quem está a reconstruir o país?

B.C- Quer se trate de reconstrução ou construção os governos cônscios das alterações climáticas e com gestão postos no presente sem pôr em causa o bem-estar das gerações futuras estão atados ao um desenvolvimento sustentável.


C.k- Considera insustentáveis as políticas do governo?

B.C- Tudo o que começa bem, mas volvido algum tempo, fica sem pernas ou recursos para dar seguimento é insustentável. Para um país rico em recursos hídricos e com o programa água para todos julgo uma pouca vergonha estar atrás das cisternas com água em mão estado de transporte e conservação para o consumo doméstico. Veja o caso da energia eléctrica em Luanda; o caso da Aldeia Nova; o caso Nosso Super; o programa de auto-construção dirigida... Neste último depois de os cidadãos encherem os cofres do Estado com dinheiros é que aparecem discursos sobre a inexistência de Planos Directores. O governo burlou o pacato cidadão que alimentou tantas expectativas para uma casa própria.


C.k- Como activista para os direitos humanos tomou alguma iniciativa perante essa realidade que descreve?

B.C- Hoje, todos os cidadãos são chamados a participar da res publica.  Cada angolano com estudos ou não tem sempre uma mão para edificar esta casa que é Angola. Mas, é importante que o governo cultive esse diálogo participativo e cada vez mais inclusivo. Infelizmente, muitas leis e políticas são produzidas sem a participação popular. Na constituição de reservas fundiárias, e contra a lei de ordenamento do território e urbanismo, o princípio da participação não foi respeitado.

Eu, pessoalmente, escrevo, dou seminários de capacitação às comunidades, faço pronunciamentos ao nível das rádios peço audiências com as instâncias do Estado e não só. O objectivo é chamar atenção para que se evitem os erros do passado. Injustamente, temos uma administração que é muito pessoalizada. Temos um expediente na 9ª Comissão da Assembleia Nacional depois de uma audiência e orientação do Presidente da Assembleia Nacional há mais de um ano, mas enquanto o deputado A ou B não estiver tudo fica parado. O mesmo expediente foi entregue à Procuradoria Geral da República, na Secretaria do Estado Para os Direitos Humanos, mas tudo está engavetado.


C.k- Qual o teor desse expediente?

B.C- A nossa maior preocupação é chamar atenção para que as pessoas, a título individual ou colectivo, e os decisores cumpram com o princípio legal do respeito pelo dominio útil consuetudinário previsto na lei 9/04 no seu artigo 4º. A Rede Terra elegeu as terras do domínio útil consuetudinário por uma razão muito clara. Desde o tempo colonial que essas terras foram duramente diminuidas e, por conseguinte, descaracterizadas. Depois da Independência Nacional a história mudou, mas o esbulho das terras de familias em meio rural, protegidas pelo costume, continua entre ameaças, conluio e outras formas. O que é mais grave é o facto de assistirmos a um processo de destruição paulatina do patrimínio geológico das comunidades e a um apagar da sua história e cultura sem que o governo tome alguma posição. Para isso, a Rede Terra defende um estudo e uma titulação privisória para desencorajar, por enquanto, os que teimam em desrespeitar a lei. Não vamos desistir e muito menos eu porque a soberania territorial deste país deve reflectir-se no dia-a-dia de  cada cidadão angolano. As populações não devem viver inseguras em sua própria terra com o pensamento em desalojamentos ou esbulho.


C.k- Tens registo desse quadro que descreve?

B.C- É uma questão de abandonarmos os gabinetes e gravatas sob pena de o nosso silêncio colocar-nos do outro do prevericador que se nutre com o empobrecimento dos outros. O cerco aos bairros ou espaços naturais das comunidades, a destruição ou cerco aos cemitérios são uma realidade.


C.k- Então, perante este cenário o que representa, hoje, a lei de terras?

B.C- Existem, ainda, diplomas legais não publicados. Sabemos do quanto pagamos ao Instituto Geográfico e Cadastral de Angola pelos serviços que pode prestar na demarcação das terras, mas ninguém sabe o preço da terra. E grande parte dos dinheiros que são, anárquicamente, cobrados não entram para os cofres do Estado.  Portanto, estamos perante uma arbitrariedade e roubo às populações.


C.k- A Rede Terra participou na produção dessa lei de terras.

B.C- A Rede Terra fez a sua parte como uma instituição angolana sem fins lucrativos. Agora se o próprio governo não respeita a lei nem a faz respeitar isso é grave. A Rede Terra chama a atenção para que as terras das comunidades tradicionais protegidas pelo costume sejam respeitadas não só em razão da segurança alimentar como, fundamentalmente, da história e da cultura.


C.k- O Sr. tem tido contactos com as comunidades para que se encontrem soluções conjuntas localmente?

B.C- Sou filho do campo. Nasci numa comunidade em meio rural. O que falo e escrevo não é política partidária; é uma realidade vivida. O sentimento geral não é de insatisfação. Hoje, as famílias estão cada vez mais inseguras em sua própria terra porque não sabem quando podem ver as suas terras vedadas ou diminuidas. Vedam-se os cemitérios e, nalguns casos são destruidos; vedam-se os acessos tradicionais e são desviados ou fechados os cursos de rios ou riachos de forma compulsiva. Considero um grande atentado à história e cultura desses povos que vêm as suas terras, por lei inconcedíveis, esbulhadas.


C.k- Cá em Luanda são as populações que desrespeitam a lei, as orientações das Administrações e ocupam e reocupam as terras do Estado.

B.C- É verdade, mas também, são alguns governantes que tiram maior proveito com este negócio e ocupam grandes extensões de terras um pouco por todo o país e não pagam nada aos cofres do Estado. Como sabes, diante dos corvos os pombos pagam. A terra virou, em Angola, uma fonte milionária de negócios. Por isso, ninguém está interessado, por enquanto, em produzir políticas fundiárias e com o devido rigor essa matéria. Quando não há ordenamento do território e, por conseguinte, planos territoriais a gestão de terras acaba por ferir os princípios de um desenvolvimento sustentável. Em tempos um funcionário do Instituto Geográfico e Cadastral de Angola humilhou-me quando disse que o IGCA estava sem recursos para responder aos desafios de de demarcação de terras das comunidades em meio rural. Infelizmente, ainda, temos pessoas que incutem aos outros a ideia segundo a qual o problema da terra é uma questão de ordem legal. Na verdade, trata-se de uma questão de justiça social. E é tempo de aplicar a lei. Nisso, o IGCA enquanto órgão técnico de gestão de terras em Angola, está em falta se, dispõe de facto, de recursos técnicos, financeiros e humanos para desencadear o processo de demarcação das terras protegidas pelo costume.


C.k- Com que recursos conta a Rede Terra?

B.C-  Felizmente, contamos com cidadãos de outras nacionalidades que, ainda, acreditam na nossa causa. A MISEREOR que é uma instituição Católica Alemã tem estado a ajudar para algumas formações e apelar para a preservação do património geológico das comunidades e da humanidade.


Ck- Sabes quantos títulos foram emitidos e que tipo de direitos são mais solicitados?

B.C- Se estiveres a perguntar sobre os títulos de reconhecimento entregues legitimamente por um órgão legalmente competente julgo não que nenhum foi emitido. Ouvi que no Huambo ou Lubango foram atribuidos alguns documentos a algumas comunidades. Não sei do seu registo nem de processos que fundamentaram a sua atribuição.  Sobre os títulos de concessão não sei porque a base dados está completamente dispersa.


C.k- Quando é atribuido um título de concessão as Autoridades do Poder Tradicional devem ser consultadas?

B.C- Nos termos da lei vigente, não. O problema que se passa é que não havendo planos territoriais se desconhecem as fronteiras entre as terras do domínio costumeiro e as do domínio privado do Estado. Portanto, me parece justo e prudente que  que aquelas Autoridades sejam consultadas com intuito de salvaguardar a integridade territorial das terras das comunidades tradicionais. A consulta visa conferir a eventual sobreposição de direitos em razão de um choque de fronteiras entre o domínio costumeiro e o privado do Estado, fundamentalmente.


C.K- Qual é o papel das Autoridades do Poder Tradicional na actual lei.

B.C- As Autoridades Tradicionais ou Sobas e Reis têm o dever de gerir e dirimir os conflitos intra ou inter-comunitários e salvaguardar a integridade e identidade territorial das suas comunidades. Portanto, não devem vender as terras nem entrar em negociatas com terceiros que queiram valer-se das terras das comunidades.


C.K- O título de reconhecimento a ser entregue não é do Soba ou Rei?

B.C- O título é de toda a comunidade porque o direito  exercido nas comunidades é colectivo. Ou seja, a terra é de todos aqueles que partilham o mesmo costume e hábitos desde os seus antepassados. A ninguém assiste o direito de vender parte de terra de uma comunidade sob a alegação de pertencer aos seus avós ou pais. É crime.


C.k- Não te parece que esta lei exclui aqueles que por força da guerra ou outras se instalaram em terras de outras comunidades?

B.C- O legislador ao reconhecer as terras do domínio costumeiro pretende de entre outros valores preservar a história e os costumes de uma determinada comunidade. Em Angola cada um tem uma história, tem um passado e uma terra de seus antepassados. Quem não quiser viver ou regressar à terra de seus ancestrais é livre. Aliás, Constituição de Angola reconhece a liberdade de cada um fixar a residência onde queira, mas nunca em terras do domínio costumeiro de outras comunidades protegidas e geridas segundo o mesmo costume, história e hábitos. Existem terras do dominio privado do Estado para acolher essas familias. Este é o meu entendimento. Estou a falar da posse e uso das terras que são pertença de uma comunidade tradicional por terceiros ou pessoas estranhas a ela. Agora, nas cidades todos têm lugar.


C.k- Não recebem nada do Estado?

B.C- Hoje, quem fala da terra ou se colocar ao lado das comunidades tradicionais que são vítimas do esbulho de suas terras é visto mais como activista político do que cívico. A Rede Terra contribuiu para a produção da lei de terras, mas os que gozam do estatuto de utilidade pública têm cores.

C.K- Que esperanças alimentas depois das eleições?

B.C- Sou cristão, embora, mais para a religisiodade africana que não é institucionalizada porque é vida. Por isso, as minhas esperanças nunca morrem. Tenho fé que as profundas assimetrias regionais e desigualdades sociais vão acabar. Há tempo para tudo. Um dia ninguém mais irá destruir, descaracterizar o nosso património natural e histórico cultural com objectivos que me parecem os de continuar a apagar a memória colectiva e a história dos nossos povos. O colono já não existe. Porém, há que tomar cuidado, pois, os povos sem-terra no Brasil não é utopia. Tudo teve o seu começo. Por isso, aqueles que vão aparecendo com promessas de empregar as familias, construir postos médicos ou outras coisas para ganharem espaços no dominio costumeiro das comunidades, o que é ilegal, um dia vão escravizar essas famílias. Portanto, fiquem sabendo que o camaleão vai mudando de cor para cada diferente contexto e meio.

C.K. Obrigado. Trata-se de uma causa nobre. Por que não se unem para um objectivo tão importante e de interesse geral?

B.C. Por um lado, há que respeitar o objecto social de cada Organização. Por outro, é  muito dificil ver realizado um propósito cujos resultados são de longo prazo. Aliás, a nossa causa passa pela Assembleia Nacional para que este órgão aprove um pacote específico ou reforce o orçamento do Instituto Geográfico e Cadastral de Angola visando a criação de condições para o processo de demarcação ou simplesmente de estudos e titulação, conforme, seja a melhor alternativa. A demarcação é muito cara para além de chocar com alguns valores de natureza cultural. Mais, há que ter em atenção que muitas fronteiras das terras das comunidades tradicionais não respondem, hoje, à actual demanda por sofrerem alterações durante a colonização, a guerra e do próprio crescimento populacional.  Finalmente, a quem prefere lutar por imediatismos e maior visibilidade o que não nos preocupa. A terra das comunidades tradicionais não pode ser objecto de negócio; é um repositório e fonte de valores históricos e culturais. Será que às nossas terras havemos de voltar?