Quisera eu que este texto fosse apenas para estudantes e estudiosos de jornalismo. Mas paro no meio da passada, e corto a utopia quando ocorre-me que hoje mais que nunca, a Comunicação Social em geral e o Jornalismo em particular democratizaram-se ao ponto que bem lhe serviria o empréstimo de uma famosa referência “à democracia demais”. Quando o portátil já é media, o celular também; a minha filha adolescente vem-me dizer é mais amiga de uma chinesa com quem faz “chat” na INTERNET que da própria prima filha do meu irmão, este texto não faria sentido se não prestasse o devido tributo a essa ciência que se torna cada vez mais na primeira verdadeiramente democrática. Sinal dos tempos novos. Seja assim este texto para todos que o achem seu, com a ressalva que não se contentem apenas com os benefícios; assumam também as responsabilidades, sobretudo éticas. Querem brincar ao jornalismo? Pois bem façam-no; mas brinquem bem. Voltemos então ao jornalismo do João Melo que é a desculpa deste olhar “ Do Meu Canto” hoje.

O Jornalismo de Angola segundo João Melo – não confundir com Evangelhos coisa nenhuma – tem uma característica peculiar, talvez única no nosso mosaico de escrita para a comunicação social: Pode ser distinguido claramente quanto à forma e quanto ao conteúdo, sendo que se no primeiro aspecto assume um tecnicismo “maniacamente puro”, no segundo vagueia algures entre a “objectividade ou neutralidade jornalística” – cuja escola rejeita – o jornalismo cívico, cuja escola adopta, e o activismo político a cuja tentação não raro sucumbe, sempre com as desculpas da praxe – elegantes, é verdade, mas desculpas mesmo assim –  com que não se esquece de “justificar” os “deslizes”.

Fruto de uma tarimba invejável – aos 26 anos já era Director Geral do Jornal de Angola, depois da ANGOP, em seguida do primeiro jornal privado de pós Independência, o “Correio da Semana”, adido de imprensa no Brasil e actualmente Director Geral da revista África 21 – nota-se na jornalística de João Melo a disciplina e o rigor que eu não tenho por exemplo, de manter a regularidade e idiossincrasia editorial das várias colunas que assina. Do “Palavras à Solta” de análise política do Jornal de Angola, ao “Fortaleza de S. “Miguel” do Novo Jornal onde trata de coisas de Luanda ou à “Última Palavra” da África 21 onde assina como Director pode-se ver uma técnica jornalística teoricamente das mais sofisticadas. Não sendo as suas peças reportagens noticiosas mas comentários de factos, ideias e eventos, a aplicação dos postulados do texto opinativo é rigorosa, quase fastidiosa. O leitor atento reparará na linguagem cuidada, quase suave, na contenção do predicado e no rigor do verbo (pesem embora algumas “luandinadas” aqui e ali) e sobretudo a assumpção da autoria individual dos argumentos e conclusões da análise sem que isso diminua, antes pelo contrário, a força da mensagem, tal como mandam as boas regras do jornalismo de opinião.

Outro aspecto interessante da forma jornalística de João Melo é a abordagem sociológica dos factos, mais próxima de um sociólogo no jornalismo que de um jornalista na sociedade. Fruto de vivências, ou da formação académica, ou das duas não sei, é comum vê-lo “desconstruindo” as relações sociais seja a montante seja a jusante do facto em análise para facilitar a compreensão do leitor ajudando no enquadramento. Lendo os seus textos torna-se inevitável acompanhá-lo na ciranda causa-efeitos de factores correlacionados em nuances muitas vezes não descortináveis à primeira vista. Podendo ou não concordar com as suas conclusões ou com a forma como arruma o seu argumento, poucas vezes pode-se acusá-lo de falta de lógica sendo que, fazendo jus à sua condição de jornalista com responsabilidades académicas o seu estilo paira acima de qualquer polémica.

Já o mesmo não se passa com o conteúdo. João Melo provém daquela escola sociológica que questiona profundamente a chamada “objectividade ou neutralidade jornalística”, para a qual isso é mera utopia. Segundo eles, ao redigir uma notícia seria humanamente impossível qualquer jornalista não influenciá-la com os próprios valores. Assim sendo, prosseguem, é mais realista e honesto deixar de presumir a tal “objectividade”, e em vez disso assumir um compromisso claro e inequívoco com os valores fundamentais da Sociedade: o respeito pelos direitos dos outros, do bem comum, a salvaguarda da vida, da integridade holística do espaço social, económico e político, entre outros, os quais devem sempre ser salvaguardados, defendidos até se preciso for, sem os eufemismos de pseudo direitos à Informação, interesse público, independência jornalística e quejandos. Esta corrente é conhecida por Jornalismo Cívico, e João Melo enquanto intelectual leccionando Sociologia da Comunicação e afins nas universidades angolanas, assume-se como um dos seus principais defensores. Dali, presumo, o aparente conforto com que se posiciona nas não poucas vezes que os “poderes” político e jornalístico chocam entre si. Dali também o “savoir faire” com que distribui acepipes menos saborosos a um e outro lado da barricada ao ponto de, se por um lado não poucas vezes seja considerado pau mandado do regime, outras tantas seja por este visto como dono de pronunciamentos “politicamente menos correctos”. Não deixa de ser engraçado que outro académico de comunicação social angolano que conheço e encarna esta escola seja precisamente Sousa Jamba com quem João Melo trocou recentemente uns gostosos galhardetes. Do meu ponto de vista, isso aconteceu precisamente porque os dois, partilhando a mesma escola sociológica de comunicação, assumem descomplexadamente as suas convicções que sendo no caso antagónicas geraram então o debate intelectual que é apanágio dos homens livres, como diria o também académico emprestado à política Justino Pinto de Andrade.

Deste rigor escolástico deriva que, se é de João Melo a cândida afirmação que a UNITA tinha perdido a guerra e por isso devia retratar-se enquanto era tempo – certamente muitos desse partido arrependem-se hoje não lhe terem prestado ouvidos – é dele também a chamada de atenção para uma maior igualdade de oportunidades de acesso às riquezas da Nação; Dele partiu a expressão “linguagem de carroceiro” para caracterizar certos textos, uns mais outros menos apócrifos no nosso público Jornal de Angola; e dele também o violento puxão de orelhas a alguns meios de comunicação privados por causa de veleidades sensacionalistas nas vésperas de eleições. Da sua coluna no Jornal de Angola saíram as afirmações mais entusiásticas sobre as virtudes eleitorais do seu partido, coisa com que uns concordam, outros naturalmente não; da mesma coluna – e apenas dela, diga-se – a análise mais racional dos fortes e fracos do novo Governo, com alguns avisos à navegação incluídos. Caso para dizer que dele parece ser a virtude ética de matar a cobra, mostrar o pau… e explicar porquê matou a cobra, porquê mostrou o pau.

Não me estranharia nada que seja por isso mesmo que o próprio Jornal de Angola tivesse preferido dar mais destaque às dez mil cópias que um artista tinha vendido numa manhã dois dias depois que à atribuição do maior prémio de jornalismo do país, por sinal a um colaborador seu e por via disso a si também… Já sei, dirão que dez mil cópias numa manhã é um recorde, e coisa e tal…!

É neste prisma que vejo o interesse que a jornalística de João Melo – com forma tecnicamente perfeita e conteúdo hermenêuticamente polémico, aliados a um compromisso incondicional com os valores cívicos basilares salvaguarda da ordem colectiva – suscitou no júri do Prémio Maboque de Jornalismo ao ponto de preterirem outros vultos e realizações não menos gigantes como Victor Silva ou o programa “Bom Dia Angola” da TPA. Salvaguardando o facto que um Sousa Jamba possa um dia também usufruir do direito de ser considerado candidato – o vulto dele tem similitudes de perfil com o de João Melo e um pouco de Víctor Silva para citar apenas estes – do ponto de vista estritamente académico há que reconhecer que João Melo foi uma excelente escolha. Pela terceira vez desde que este prémio existe, dá motivos para que os (ainda) poucos estudantes e estudiosos da Comunicação Social angolana sintam-se reconhecidos na esquebra do Ismael Mateus, do Amílcar Xavier e agora do João Melo. Bem-haja por isso o patrocinador.

Fonte: SA