Windhoek- O presente artigo é consequência de um projecto maior, que tem como título original “O louco como vítima cartesiana e a inflexão do pensamento para o resgate da sua cidadania”. Como amante da razão e confiante na capacidades das pessoas para questionarem criticamente, publica-se esta síntese para dialogar com possíveis leitores. Para aprofundar e apreender mais sobre o problema.

Fonte: Club-k.net

De acordo com o quadro referencial de racionalidade cartesiana o louco pensa? Se admitir que o louco não pensa conforme o padrão do “cogito ergo sum”, penso, logo existo, então, talvez isto se traduza em  consequências no exercício da cidadania do louco, por exemplo, a sua invisibilidade social e política; a negação do direito ao reconhecimento, em virtude da sobrevalorização da razão por René Descartes.

O presente artigo confrontará o conceito psiquiátrico e psicoterapêutico de louco e a defesa cartesiana do processo de pensar como condição a priori para a existência. Aqui entende-se como louco alguém que perde a noção da realidade, como consequência de perturbações mentais decorrentes de factores múltipos.

A contribuição de Descartes na história do pensamento propiciou uma mudança paradigmática radical: do medievo para a modernidade. De Deus como ponto de partida e referencial da criatividade pensante para o homem como centro da realidade que se traduziu na filosofia do sujeito. O corolário da filosofia cartesiana não se reduz às categorias anteriores. Influenciou vários pensadores ocidentais que levaram o racionalismo ao idealismo extremo. Um idealismo que transforma a razão na única medida de ser e estar no mundo.

Em síntese, estas são as consequências da sobrevalorização da colocação gnoseológica de Descartes como ponto de partida para a edificação da sua filosofia. O presente artigo pretende identificar e compreender outra consequência do cartesianismo: a negação da humanidade do louco, da sua existência e por consequência o exercício da sua cidadania, sobre o qual parece não haver literatura.

A nulidade do louco como pessoa e como entidade política e social pode ser confirmada pelo seguinte raciocínio cartesiano (2008, p.37): “[...] se eu tivesse deixado de pensar, ainda que todos os outros objectos que alguma vez tinha imaginado eram na realidade existentes, não teria tido nenhuma razão para acreditar que existo”, ou seja, tudo o que pensa é ou existe. A existência da corporeidade (res extensa) ou do homem todo pressupõe  a res cogitans.

Mesmo que haja um arcabouço epistemológico das ciências da mente que tenham demonstrado que apesar do estado de loucura o indivíduo pensa, ou tenha um grau mínimo de racionalidade, ainda assim, parece que esta razoabilidade não responde às exigências da dúvida metódica intensa e permanente; das regras do método como expressão correcta de quem conduz com lucidez e mestria a sua faculdade espiritual.

Tendo como pano de fundo a colocação de Descartes segundo a qual o ser humano é aquele que pensa, sem o pensar o homem não é. Esta colocação levanta os seguintes problemas: o louco duvida conforme as exigências do pensar cartesiano? O louco tem consciência de si? A únca certeza a partir da qual pode-se construir argumentos é o cogito. O louco possui esta certeza? O louco é capaz de impôr regras a si mesmo para a condução correcta da sua actividade pensante? Ou ainda, ele é capaz de submeter-se as quatro regras do método? Se as respostas à estas perguntas forem negativas, permitirá compreender porque é que a sociedade trata de maneira negativa ou indiferente o louco. Respostas negativas anulam o louco no quadro de Descartes o que significaria que não pensa, porém, não existe, logo não pode ser objecto de qualquer acção humana.

O problema central do presente artigo é: a valorização excessiva da razão por parte de Descartes, ao ponto de a ter como pedra de toque de toda a sua filosofia, nega a dignidade humana do louco? Ou seja, entre várias consequências do pensamento de Descartes a desvalorização do louco seria uma delas?

Existem duas razões que levaram a refletir sobre este tema: a) a forma desprezível como a sociedade trata o louco, o que talvez seja um sintoma de valorização da razão em detrimento da somaticidade ou do corpo; b) Por entender que as consequências do cartesianismo talvez não se reduzam àquelas de consenso e largamente abordadas na história da filosofia moderna.

O que o presente artigo pretende compreender, e que parece relevante, é a relação entre o louco e a sua cidadania. A cidadania na qual pretende-se integrar o louco é aquela postulada e teorizada pela escola liberal em estreita relação com o jusnaturalismo (BOBBIO, 2010).

Esta empreitada suspeita que a concepção antropológica e gnoseológica de Descartes levou ao desprezo do corpo  e a divinização da razão e como consequência o tratamento indiferente do louco, a negação da sua existência ou ainda o seu exílio social e político. Esta intuição pode sustentar-se nas seguintes proposições enunciadas em ambientes comuns: “se eu penso, não posso estar louco”; “ser louco não é vida”; “ser louco prefiro a morte”; “o louco não vale nada”. Estes juízos expressam a desvalorização do louco, mas também expressam de forma indirecta o elogio da razão. Este ambiente cultural infundido e vivido até nesta época deve ter algum pensador influente e responsável. Supõe-se que seja Descartes, embora talvez ele não tinha previsto esta e outras consequências do seu pensamento.

Esta inquetação que é a essência desta empreitada, parece encontrar suporte no comentário de Russel ao pensamento de Descartes, afirmando que “se eu deixasse de pensar nada provaria a minha existência”(1961, p.526).

Russel comenta ainda que a concepção cartesiana do processo de pensar é bastante ampla. Por isso, este projecto supõe que esta estrutura do pensamento não acolhe o louco. Aqui o louco está à margem, não existe, como parece sugerir o próprio Descartes (2008, p.37): “Porque é o cogito tão evidente? Conclui que é por ser claro e distinto. [...]. É verdadeiro tudo que concebemos muito clara e distintamente”. Será que o louco consegue usar a sua razão neste quadro onde tudo é claro, distinto, passível de ser objecto de dúvida,  compreendido, negado, afirmado, concebido, imaginado e sentido?

Se houver raciocínios capazes de demonstrar que a razão do louco não encontra acolhimento no esquema cartesiano do processo de pensar, então, talvez esta filosofia do sujeito seja mesmo um factor chave na situação em que a sociedade remete contemporaneamente o louco: na invisibilidade, no isolamento, em definitiva na negação do seu ser. Este anulamento do seu ser pode não corresponder com o plano existencial, mas no âmbito cognitivo o louco já não faz morada nos indivíduos como ser de direito, como cidadão.

Diante deste quadro hipotético no qual Descartes, por consequência do seu pensamento remeteu o louco, parece que o princípio jusnaturalista de Kant (2009, p.72) segundo o qual o homem é um fim em si mesmo, independentemente dos acidentes que carrega ao longo da história pessoal, contribui para o resgate da cidadania do louco com todas consequências derivantes desta categoria geral: identidade pessoal, reconhecimento, direito a integração, tratamento humanizado.

Parece que o cartesianismo colocou o louco nesta condição de não ser porque a razão que ela postula é matemática, é pela eficácia e pelo útil. Pelo que as categorias de eficácia e utilidade conforme são concebidas não se pode esperar qualquer contribuição do louco. Mas uma abordagem desde outro enfoque (perspectiva) permite compreender a importância de quem perdeu noção da realidade por perturbação mental. O louco é importante, porque se não, eu não saberia que não sou louco.

Provisoriamente o presente artigo contou com os subsídios das obras de: 1) René Descartes: “Discurso do Método”, “As meditações” e “A procura da verdade pela luz natural”; 2) Michel Faucoult: “A história da loucura” e “O nascimento da clínica”; 3) Immanuel Kant: “Fundamentos da metafísica dos costumes” e “Crítica da razão pura”; Noberto Bobbio: “A era dos direitos”, “Igualdade e liberdade” e Jurgen Habermas: “Para a inclusão do outro”.
Portanto, o artigo é filosófico e profundamente de carácter exclusivamente teórico, sem recurso intencional a qualquer realidade empírica, porém, analítico-descritivo-crítico.