Luanda – Uma história de coragem infantil: há um mês, Delfina Cardoso Jaime, uma pequena de oito anos de idade, teve de pular pela janela para escapar à fúria dos tios com quem vivia, Celita e Virgílio, para não ser queimada. Aconteceu no bairro Quilómetro 30, ao Ramiro, município de Belas, em Luanda.

Fonte: O País

“O tio me pôs aí e disse que vai comprar gasolina para me despejar, depois acender”, disse a menina encontrada na tarde de quinta-feira, 20/12, em casa de Manuel Joaquim Cambundo, um residente do bairro que antecede ao do Ramiro, no sentido Luanda – Kwanza Sul. 

A notícia da acção pirómana frustrada foi confirmada por duas vizinhas, as senhoras Jamba e Tita, que revelaram terem visto Delfina a escapar-se das garras de Virgílio e Celita. Relataram também agressões constantes do casal à pequena. “Essa menina passa muito mal, não há semana que não apanha surra, às vezes até bem amarrada pelo tio”, contaram, suplicando que se fizesse qualquer esforço para se enviar a rapariga de volta aos seus pais, que vivem no Sumbe, província do Kwanza Sul.

As duas vizinhas contactadas por este jornal disseram saber que o pai de Delfina - identificado apenas por Jaime - é polícia de trânsito no Sumbe e parece estar já ao corrente da vida difícil a que está submetida a filha. Estão por isso admiradas com a lentidão no resgate da menor, face ao calvário que vive.

“Ao tentarmos aconselhar a vizinha Celita para ela e o marido não maltratarem mais a menina, ela nos disse que já avisou o pai de Delfina para vir busca-la”, explicaram as interlocutoras, muito desesperadas, aparentemente, com a falta de reacção do progenitor. “Só vai aparecer quando a situação já estiver muito mal, com a menina traumatizada ou noutra condição pior”, disseram.

As vizinhas de Celita e Virgílio temem que algo de grave possa vir acontecer à rapariga, pelo facto de ter de fugir muitas vezes e ficar à tutela de desconhecidos, com todos os riscos decorrentes da situação.

Tita justificou a preocupação neste sentido pelo facto de Delfina ter fugido muito recentemente com amigas  para o bairro Benfica, onde pernoitaram em casa de uma senhora estranha, depois de uma viagem feita a pé por três crianças com menos de 10 anos de idade. “No domingo passado duas sobrinhas minhas vieram passear aqui em minha casa e Delfina fugida de casa pediu a companhia das mesmas para se afastar dos tios, que prometiam bater-lhe”, contou, tendo classificado Delfina como uma criança que, normalmente, se revela assustada ou medrosa, um estado de emoção que só supera quando se vê na companhia de pessoas boas.

Para darem credibilidade aos testemunhos que acabavam de apresentar, referiram as feridas e cicatrizes nas pernas e costas de Delfina Jaime, fruto dos repetidos golpes de mangueiras e cintos afivelados, os meios dos quais mais se serve o casal para agredi-la, de acordo com denúncias das suas cidadãs. A equipa de reportagem de O PAÍS confirmou a existência de tais marcas, nas pernas e nas costas.

TIOS MINIMIZAM

Para se apurar a veracidade dos factos, a equipa de reportagem deste jornal dirigiu-se à casa de Virgílio e Celita, tios da pequena Delfina, onde encontraram a tia, que recebeu-nos manifestando imediatamente que se encontrava acometida por fortes dor de cabeça, que nem sequer a permitiam ficar um minuto de pé, pelo que lhe foi aconselhada, na hora, a sentar-se no alicerce de casa, o único meio que, nessa altura, podia fazer a vez de um assento.

“As cicatrizes são de feridas que ela ganhou nas brincadeiras”, começou por se defender deste jeito em relação a uma miúda que as vizinhas alegaram só sair de casa quando consegue fugir dos constantes maltratos. Quanto às acusações feitas pela sobrinha e por vizinhas, negou-as todas, ao ponto de alegar que estas últimas a odiavam bastante, desde que se tornou moradora dessa zona do Quilómetro 30.

Acrescentou que nunca bateu na criança e não o faria se de outro petiz se tratasse, pois a sua sensibilidade para com infantes é tanta que “preferia matar uma mosca a agredir um inocente”. “Eu aqui não bato em crianças, nem aos meus filhos, nem aos dos outros e posso dizer-vos mesmo que nunca bati na Delfina, ela é que se comporta muito mal, eu só lhe ralho muito”, disse.

Questionada sobre o grau de parentesco que tinha com Delfina Cardoso Jaime, esclareceu que era irmã da mãe da menina, argumentando a seguir que tem autoridade para ajudar a sobrinha a adquirir um padrão de comportamento requerido por si e pelo marido.

REGRESSO À PROCEDÊNCIA


Curiosamente, a mãe de Celita e avó de Delfina, que se encontrava hospedada em casa da filha há algum tempo, estava presente e, a dada altura, interrompeu a conversa, para lamentar a situação.

Segundo a anciã, que não autorizou que o seu nome fosse referido neste relato, “no Sumbe a Delfina era uma rapariga muito bem comportada”. Defendeu, por isso, o seu regresso ao Kwanza Sul, para não se agravar o quadro. “É melhor voltar e ficar a viver com os pais dela”, referiu, taxativamente.

Manuel Joaquim Cambundo, o homem que acolhe pela segunda vez a pequena Delfina em menos de dois meses, chamou à atenção de Celita, tendo-a ameaçado em apresentar queixa à polícia, caso acontecesse algum incidente que pudesse colocar a vida da criança em risco.

Celita anunciou já existir um plano de ela e o marido levarem a criança de volta aos pais, tendo mesmo adiantado que a viagem seria efectuada no dia em que a nossa reportagem o abordava. “Já está tudo preparado, é só ela que não chega, não sabíamos onde encontrá-la. Mas assim tentaremos ir para a casa do senhor Chuva”, como é conhecido também Manuel Joaquim Cambundo.

Na ocasião, O PAÍS perguntou como se sentia Celita em saber que a sobrinha se tinha refugido novamente em casa do “senhor Chuva”, ao que ela respondeu estar “preocupada com os gastos”. O acolhedor tranquilizou-a, dizendo-lhe que “apesar de a minha mulher e eu estarmos desempregados, comida e cama não vão faltar à Delfina e as minhas filhas vão-lhe dar sempre alegrias com conversas e brincadeiras”.