Windhoek - A educadora e psicóloga angolana Palmira Africano propôs recentemente na capital Namibiana a criação  de uma comissão da verdade para que se resolva passivos como o 27 de Maio.  “Em nome da paz e da justiça e para que isso nunca mais volte a acontecer em Angola, deve-se criar uma COMISSÃO DA VERDADE E RECONCILIAÇÃO que a semelhança de outros países (África do Sul) aborde e esclareça com verdade todos os vazios, da história política recente de Angola.

Fonte: Club-k.net

As vitimas da perseguição política e a luta pela memória

A docente fez estas declarações a margem de uma mesa redonda que reuniu activistas dos direitos humanos da África austral em que se debateu sobre paz e resolução de conflitos  no continente. 


Para Palmira Africano que abordou o tema “As vitimas da perseguição política e a luta pela memória”, poderão existir no âmbito da justiça reparativa, outras formas de compensação como assunção dos crimes, pedido de perdão, menções honrosas e indemnizações. “Mas, parece que para além de tudo isso, os sobreviventes e vítimas que se pronunciam a respeito, dizem que o que as preocupa não são as reparações simbólicas ou matérias. Pois, o tempo já as compensou ensinando-as a perdoar.”


“No entanto, o que mais gostariam mesmo, é que a situação reinante no que concerne a violação dos direitos e liberdades elementares parasse, que se instaurasse e garantisse a paz pública, o estado de direito e a democracia. E que finalmente se celebrasse um compromisso solene para que tal nunca mais viesse a acontecer em Angola.- Esta seria sem sombra de dúvida a melhor e a maior compensação.”, disse a também co-fundadora  do Bloco Democrático, na comunicação cuja a integra segue:

As vitimas da perseguição política e a luta pela memória


 1.1-A perseguição politica no mundo

Uma visão global da cultura de perseguição política praticada pelo estado constituído em Angola pelo movimento de libertação nacional (MPLA) tem uma história que é muito anterior a constituição do estado, um contexto político que transborda a própria África e uma visão de base que alicerça a sua implementação.


O contexto das lutas de libertação nacional em Angola e em África desenvolvem-se num cenário político internacional de divisão do mundo em 2 blocos. Estes, embora, constituídos por visões políticas e ideológicas diferentes, tinham pontos fundamentais comuns. De um lado, o bloco do leste, era constituído por regimes de partido único, com concentração de poder e com uma visão interna de ditadura (chamada Ditadura do Proletariado). Do outro lado, O bloco do Ocidente, constituído por regimes de democracia interna, mas que por sua vez, criavam e apoiavam regimes totalitários e ditatoriais nos diversos continentes e nos países recém-independentes de África.


Portanto, a maior parte dos estados constituídos a face da terra, tinham regimes autoritários. A cultura política internacional era dominada pelo totalitarismo.


1.2- A perseguição política em África

Em África, a maior parte dos movimentos e partidos que reivindicam as independências e a libertação nacionais, nessa altura, fazem-no para infelicidade dos seus povos, numa visão autocrática e ditatorial.


 E não dentro, de pressupostos de libertação social, de liberdade política. Em suma, tratava-se de uma reivindicação para a substituição do poder colonial por um poder autóctone, na maiorias das vezes com características mais retrogradas que os regimes coloniais.


1.3- A perseguição política em Angola
 

Em Angola, a perseguição política não surge como uma prática realizada, somente em contexto de exercício do poder de estado, ela é já anterior a tomada do poder pelos movimentos. Ela é, por isso, o resultado de uma visão filosófica e ideológica sobre a forma de estar na política e no poder.


 O conceito do exclusivo, da razão política e totalitária do poder, inscreve na história da libertação nacional e da independência de Angola, o estatuto da negação da partilha e da convivência salutar na diferença.


Esta postura, torna impossível a convivência entre homens com objetivos gerais comuns e transforma o imperativo de estarem juntos num objetivo mais nobre, numa prática sistemática e transversal de perseguições e liquidações entre homens dentro das organizações (movimentos e partidos), assim como entre movimentos.

Portanto, a história da perseguição política em Angola remonta a várias décadas antes do MPLA ter tomado o poder e foi ganhando cada vez mais intensidade, até atingirmos a independência nacional, altura em que estala a guerra civil.


2.- A perseguição política durante a luta de libertação Nacional


Nesta longa história estão reportados casos de dissensões e perseguição política internas em que as mais conhecidas são aquelas que se verificaram dentro do MPLA durante a luta de libertação nacional e pre-independencia, que resultaram no afastamento e desaparecimento não esclarecido de dirigentes daquela formação (casos como Viriato do Cruz, Mário de Andrade, Matias Miguéis e irmão, Revolta Ativa, Revolta do Leste).


 São conhecidos casos de combates armados entre os movimentos de libertação, FNLA, MPLA, UNITA dos quais resultam perdas de vidas. Os mais referenciados são aqueles que resultaram na prisão de guerrilheiros do MPLA pela FNLA, onde morrem as senhoras Deolinda Rodrigues, Lucrécia Paim, Irene Cohen, Engrácia Fragoso e Teresa Afonso. 


3.- A perseguição política no período de transição e pós-independência de Angola


 A época de transição para a independência foi dominada no essencial por dois momentos:

- A fase de continuidade e agravamento das contradições insolúveis entre os movimentos da guerrilha que importam para o interior das cidades as contradições antigas. Esta etapa vai resultar na guerra civil com a divisão temporária do país e a declaração de Independência em três pontos de Angola pelos três movimentos. Saldou-se em perseguições e linchamentos de políticos e simpatizantes dos lados opostos.

- O período do ajuste de contas dentro dos movimentos, sendo os mais conhecidos aqueles que culminaram nas perseguições realizadas dentro do MPLA. Saldaram-se na prisão de vários políticos de grande craveira e da direção do MPLA (O chamado processo da Revolta Ativa, e a invasão da Delegação Chipenda e desmantelamento das suas bases em Luanda, detenção de Cilas Bango/Cilas Bernardo ou Eça de Queirós Bernardo num comício em Kaxikane e posterior execução, execução de Virgílio de Soto Maior e outros no campo da revolução).

Nessa fase, há ainda a perseguição e prisão de vários membros de um comité do MPLA; os CAC, Comités Amílcar Cabral, (os dados indicam que esse grupo foi um dos maiores e mais ativos, no MPLA).

Daí resulta que, os próprios movimentos tinham contradições entre eles e internas que nunca souberam resolver no diálogo e no respeito pelos direitos de opinião diferente. Muito menos o respeito pelos direitos básicos dos cidadãos que diziam defender.

Mesmo antes de se constituírem em poder iniciaram perseguições, prisões e eliminações físicas iniciadas nos maquis e que continuaram no Interior do país mesmo antes da independência e que perduram até aos dias de hoje.


4.- O Pós- Independência e a República Popular de Angola


Esta é sem a menor sombra de dúvida a época mais tenebrosa, mais assombrosa da perseguição política e do linchamento físico, psicológico e sociológico. Aqui aconteceram coisas que os que as viram e viveram, por vezes, não acreditam que aconteceram e quando a elas se referem, chegam mesmo a afirmar que o que se passou não pode ter sido real, mas que tiveram visões, miragens, alucinações,” aquilo foi diabólico”; dizem: “pior que no inferno”.


Se antes da independência já se prendia e matava, na pós-independência prendia-se por tudo e por nada. Todos os motivos ou nenhuns, eram razão suficiente e necessária para se prender alguém. Tanto é assim que em Angola as cadeias da PIDE, onde estiveram presos os nacionalistas entre os quais líderes políticos e históricos, até hoje não são museus a semelhança de outros países. Continuam a fazer parte dos meios de repressão e opressão onde desumanamente se exercem sevícias e vilipêndios a quem lá for parar mesmo hoje.

O ponto mais alto desta repressão aconteceu com a massiva, cruel, impiedosa e brutal retaliação aos autores e supostos integrantes participantes do fracassado “golpe de estado de 27 de Maio de 1977” que começou na perseguição, prisão e assassinato de pessoas (homens, mulheres e adolescentes de treze anos de idade) e culminou no desaparecimento de cerca de trinta mil pessoas em Angola. Parece que de Cabinda ao Cunene, não há família que não foi atingida pelo maléfico fenómeno “ 27 de Maio”.

A par deste hediondo processo, ocorreram outras perseguições a grupos políticos que se opunham ao regime do MPLA (OCA-Organização Comunista Angolana, JS-Núcleo José Estaline, Comités Henda e MUSA-Movimento de Unidade Socialista de Angola). A maioria dos membros destas organizações foi presa e foi vítima violência por meio de diversas formas de tortura física e psicológica.

Há quem suporte hoje em dia as consequências dessa barbárie na pele, na carne, nas emoções e nos sentimentos. Pelas sequelas deixadas na saúde física e mental dessas pessoas. No meio desse marasmo e ostracismo a que foram relegados por pensarem diferente, muitos pereceram.

Apesar do forte controlo de segurança instalado pelo regime, os presos políticos sempre se organizaram no sentido de denunciar e divulgar internacionalmente as atrozes violações cometidas dentro e fora das cadeias. E para fazer face as pressões internacionais, era importante encontrar algumas acomodações para desviar as atenções do exterior. Para tal, o governo do MPLA, teve que ir fazendo algumas adaptações as circunstâncias para camuflar feitos e efeitos da violência e violação dos direitos.

O fascismo ia mudando a roupagem e os agentes dos órgãos da repressão começaram a perseguir as suas presas com métodos e táticas algo refinadas e requintadas. Fingido que havia abertura e que os direitos e as liberdades estavam garantidos e que só prendia por motivos justos e com provas concludentes. O que não passava de embuste. Porque tal como hoje as liberdades e os direitos nunca foram garantidos nem observados. A julgar pelas mortes e desaparecimentos não esclarecidos bem como prisões arbitrárias.

Entre vítimas e sobreviventes da ditadura que o regime vem impondo as angolanas e angolanos durante estes anos todos, existe um importante e numeroso grupo muito pouco evocado quando se fala da perseguição política e da violação dos direitos elementares em Angola. É a família, sem a qual a maioria dos sobreviventes não teria resistido.

Mas, dentro da família ainda a um subgrupo muito especial que é determinante em toda essa luta. As mulheres que enquanto mães e esposas tudo têm feito para garantir vida, alento e esperança aos que se encontram nas masmorras.

 As mulheres, sofreram e sofrem humilhações de toda a sorte (insultos, ofensas, assédio, pressões e maus tratos) mas raras são as que desistem ou descuram das suas responsabilidades, a menos que adoeçam ou morram por causas relacionadas com a prisão dos seus entes queridos. São as mulheres que apoiam os presos que estão distante das famílias, fazem a logística, intercedem pelos presos perante individualidades fortes da nomenclatura, transportam a correspondência e continuam a ser provedoras da família.

5.- O Multipartidarismo

Com o advento das mudanças no Leste da Europa, o fracasso do comunismo científico e a queda do “Muro de Berlim”, o governo, teve de mais uma vez adaptar-se a conjuntura internacional dando mostras de laivos de boa vontade política em institucionalizar a democracia e o estado de direito. Deu-se a mudança do partido único para o multipartidarismo mas o autoritarismo do partido no poder continuou.

Em plena era multipartidária a ditadura reforça-se cada vez mais em meios humanos e técnicos, a perseguição torna-se mais sofisticada, refinada. Apesar dos órgãos de defesa e segurança terem como objetivo estratégico a defesa do estado de direito e das instituições democráticas, encetam as suas ações maioritariamente contra pacatos cidadãos. Vale aqui recordar a “ Sexta-feira Sangrenta” que aconteceu em Janeiro de 1993 segundo se diz a mesma hora em várias cidades e vilas do país, em clara violação aos direitos e as liberdades elementares.

 E assim continua a ser até hoje. É prova evidente disso, a brutal repressão exercida contra os jovens que no dia 22 de Dezembro exerciam legalmente o seu direito a manifestação em alusão ao rapto e desaparecimento dos jovens Isaías Kassule e Alves Kamulinde, não esclarecidos até a presente data. E como sempre, culminou com raptos, desaparecimentos e prisões.

O regime teima em não ouvir os cabindas, preferindo continuar a oferecer-lhes pacotes com presentes envenenados quanto ao seu destino e ao do território em que nasceram e que desde a independência até hoje não ajudaram em nada porque como se pretende não os tornou submissos como era suposto.

Como consequência, há ausência de paz social devido a pressão constante a que são submetidos. As pessoas vivem traumatizadas, em estado de tensão e stressadas. Porque são perseguidas, presas, torturadas e até mortas. E apesar de já “não” haver guerra em Cabinda, as populações são confrontadas todos os dias com o desembarque de material bélico e novos contingentes de militares.


6.- A luta pela dignidade e memória

Em virtude da vulnerabilidade que envolve, esta questão requer um tratamento especial, para a qual se propõe a criação de um mecanismo institucional e legal para de forma séria, numa abordagem de conjunto, consiga trazer a luz com independência, isenção, imparcialidade e neutralidade o que de facto tem acontecido em matéria de perseguição. Com o intuito de ajudar a esclarecer para apaziguar os espíritos das vítimas, seus familiares presentes e vindouros que de uma maneira ou de outra sofreram e sofrem as consequências dessa hedionda perseguição.

Evitando que num futuro próximo ou longínquo (o comportamento tem causas que podem ser próximas ou remotas) venham a ocorrer retroativamente, manifestações de ódio e vingança como forma de justiça retributiva.

Na diversidade cultural angolana, há aspectos peculiares relacionados com a resolução de problemas que se sustentam no oculto e no sagrado e caso não possam cumprir com os ditames, as pessoas envolvidas não se sentem em paz. Atribuindo todos os malogros a não realização dos rituais inerentes a situação. Acreditam que foram amaldiçoadas, não terão sorte e a vida não lhes correrá bem.- Não vivem em paz nem tem sossego espiritual.


Para que se acalentem os espíritos, as consciências dessas pessoas, a bem da paz e da reconciliação, deve-se permitir que oficialmente se fechem os ciclos com choros, enterros, combas e luto e que se obtenham as respectivas certidões de óbito.


Em nome da paz e da justiça e para que isso nunca mais volte a acontecer em Angola, deve-se criar uma COMISSÃO DA VERDADE E RECONCILIAÇÃO que a semelhança de outros países (Africa do Sul) aborde e esclareça com verdade todos os vazios, da história politica recente de Angola. Afastando assim as duvidas e fantasmas que continuam assombrar o presente e com o perigo de comprometerem o futuro por ressentimentos e recalcamentos por questões que podiam ter sido resolvidas.


Poderão existir no âmbito da justiça reparativa, outras formas de compensação como assunção dos crimes, pedido de perdão, menções honrosas e indemnizações.


Mas, parece que para além de tudo isso, os sobreviventes e vítimas que se pronunciam a respeito, dizem que o que as preocupa não são as reparações simbólicas ou matérias. Pois, o tempo já as compensou ensinando-as a perdoar. No entanto, o que mais gostariam mesmo, é que a situação reinante no que concerne a violação dos direitos e liberdades elementares parasse, que se instaurasse e garantisse a paz pública, o estado de direito e a democracia. E que finalmente se celebrasse um compromisso solene para que tal nunca mais viesse a acontecer em Angola.- Esta seria sem sombra de dúvida a melhor e a maior compensação.
                   
                                             

                                                                       Windhoek, 15 de Janeiro de 2013