Lisboa - Decorre em Lisboa, na 3ª secção do 1º Juizo do Tribunal Criminal o julgamento de Maria Eugénia Neto, viúva do ex-presidente angolano Agostinho Neto acusada  do crime de difamação  agravada pela historiadora Dalila Cabrita Mateus.

Fonte: Club-k.net

Recordemos os factos que levaram ao julgamento: Na revista «Única» do semanário EXPRESSO de 5 de Janeiro de 2008, a senhora  Maria Eugénia concedeu uma entrevista em que, em resposta à questão do número de mortos resultantes do 27 de Maio, insultou a dra. Dalila Cabrita Mateus, dizendo: «-Isso é mentira. Essa senhora é desonesta e mentirosa».


Não se contradita ninguém insultando-o. E também não se tratava da reacção emocional  à «provocação» duma jornalista, pois, tanto quanto se sabe,  Maria Eugénia sabia perfeitamente o que lhe iam perguntar. De resto, estava dado o mote para novos insultos.


Um mês depois, em 19 de Fevereiro de 2008, o oficioso Jornal de Angola publicava uma Declaração da Fundação Agostinho Neto, assinada por  Maria Eugénia, em que se  afirmava que, no livro publicado, a «dita historiadora» Dalila Cabrita Mateus apenas diz mentiras, conta «mentira atrás da outra» e «manipula a história».


Em Setembro de 2010,  Irene Neto, agora testemunha de sua mãe, dizia ao jornal O PAÍS que a historiadora pegara «numa afirmação que a mãe fez de que ela é mentirosa e move [um] processo de difamação…». Dizia, ainda, que «os historiadores são utilizados por estes ou por aqueles, pagam-lhes».


E de novo no oficioso Jornal de Angola,  Artur Queiroz, também testemunha de Maria Eugénia, lançou contra a historiadora um  «festival de impropérios» na sugestiva imagem dum jornalista angolano. Espantoso é o facto de o advogado de  Maria Eugénia, o dr. Miguel Faria de Bastos, ter pretendido acarear a queixosa com quem costuma fazer do insulto uma prática corrente.


Artur Queiroz, Irene Neto e Rui Mingas, administrador da universidade Lusiada  de Angola, foram testemunhas arroladas por  Maria Eugénia e ouvidas por carta rogatória, só tardiamente executadas pelas autoridades judiciais angolanas, o que explica o adiamento do julgamento marcado para o ano anterior. Na prática (e já que o senhor Queiroz é português)  apenas duas das testemunhas de Maria Eugénia são angolanas. E, estranhamente, entre as testemunhas não se encontra qualquer membro da direcção do MPLA.


Com efeito, a maioria das testemunhas de  Maria Eugénia são portugueses: Ramalho Eanes, membro do Conselho de Estado que prestou depoimento por escrito; a mulher deste; a dra. Miriam Halpern Pereira, professora jubilada que não consta tenha alguma vez escrito sobre África; o seu marido; e, ainda, o professor Pires Laranjeira, professor associado de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.


Não por acaso, nas semanas anteriores ao julgamento, uma aluna do professor Laranjeira, bolseira da Fundação Agostinho Neto, publicou no suplemento «Mutamba» do Novo Jornal de Luanda, três artigos subordinados ao título «Reconstrução da memória de  Agostinho Neto em Portugal». E a senhora Ana Rocha, mestranda de Coimbra no dia 8 de Fevereiro  e doutoranda da Sorbonne Nouvelle no dia 15 , ataca a historiadora e em meia dúzia de linhas procura negar  o que fora escrito nas duas centenas de páginas do livro Purga em  Angola.


Na audiência de julgamento, o advogado de  Maria Eugénia, aparentemente com o concordância do douto tribunal, procurou circunscrever a inquirição ao problema de saber se é verdadeiro ou falso o número de 30 mil mortos avançado pelos autores como cálculo das vítimas do 27 de Maio, como se a «mentira atrás de mentira» ou a «manipulação da história», avançadas por  Maria Eugénia quando assinou a Declaração da Fundação Agostinho Neto, não procurassem negar tudo o que fora escrito.


A historiadora Dalila Cabrita Mateus  manifestou o profundo abalo que lhe causaram os insultos de  Maria Eugénia ( particularmente graves no seu caso, pois é  portadora de uma mutação genética do factor V de Leiden, que a predispõe a ter AVC’s). E sublinhou os prejuízos morais e materiais que tais insultos já causaram. 


O marido da assistente, co-autor do livro, ouvido como testemunha, entregou documentos que mostram que o número de 30 mil mortos foi avançado pelo nacionalista angolano Adolfo Maria e pelo juiz militar José Neves, que, em 1979, integrara uma Comissão de Inquérito criada para apurar os «excessos cometidos com a repressão». E afirmou, ainda, que, já em 1982, a própria Amnistia Internacional  situava os mortos entre os 20 e os 40 mil. Um  crime contra a Humanidade,  pois a repressão, autorizada por Agostinho Neto quando dispensara os tribunais, fez dez vezes mais mortos que os do Chile de Pinochet.


A brutalidade da repressão foi reafirmada por uma das testemunhas da historiadora, a dra. Conceição Van Dunem, que se apresentou como irmã de um assassinado (José Van-dunem), cunhada de (Sita Valles) mulher deste também assassinada e, ainda, irmã de um preso que passou dois anos em campo de concentração. Tinha sido trazido de Cuba, onde frequentava uma escola militar e faleceu recentemente. Mais declarou,  que ela e os pais também tinham  sido presos.


O julgamento prossegue na semana que agora começa, com a audição de mais testemunhas da historiadora: dois presos e torturados do 27 de Maio de 1977; uma antiga responsável da Torre do Tombo; e a dra. Irene Pimentel, historiadora que é Prémio Pessoa.