As comunidades tradicionais, maioritariamente, pobres vêem, deste modo, o regresso de todo o seu património histórico-cultural e o respeito pelas suas terras que foram perdendo ao longo dos tempos pela máquina colonial e o Estado de Partido Único. A lei de terras vigente acolhe ou assegura, ainda, gratuitamente às pessoas pobres o direito à terra, fora do domínio útil consuetudinário, desde que façam prova da sua condição de pobreza. Afinal, razões para a discriminação em função da condição económica não existem apesar do princípio da onerosidade que a lei impõe para a ocupação, uso e fruição dos direitos fundiários.

Injustamente, depois da guerra que moveu fluxos migratórios por todo o território e do processo da desminagem e reassentamentos, hoje, a problemática fundiária inspira maior atenção atendendo aos elevados índices de conflitos que dela emergem. 


Exemplos de Alguns Tipos de Conflitos
 

Os diferentes tipos de conflitos de terra vão desde o confronto desenvolvimento e expansão das cidades vs direitos constituídos nas periferias das cidades; direito à terra vs direitos culturais; terras comunitárias vs integradas ou situadas dentro dos marcos das fazendas que remontam ao tempo colonial; venda ou ocupações ilegais das terras comunitárias por não terem sido, ainda, demarcadas; demolições e falta de indemnizações justas e contemporâneas; exploração de recursos naturais; não representação de líderes nos órgãos do poder tradicional; negação do costume, por alguns membros da mesma família, como instrumento de gestão de terras no meio rural; partilha de bens; desalojamentos ilegais por parte de algumas empresas privadas.


Ponto de Situação Legislativa
 

Depois da publicação em 2004 da Lei de Terras, tardiamente, em 2007 foi publicado o Regulamento Geral de Concessão de Terrenos. Produziram-se Diplomas como o Dec – Lei 2/07, a Lei Base do Ambiente, a Lei do Fomento Habitacional, a Lei do Ordenamento do Território e outros. Não foi publicado o Despacho Conjunto sobre a Tabela de Preços, instrumento do Estado que legitima a arrecadação de receitas sobre os bens fundiários e o Regulamento que dita os índices da Área de Unidade de Cultura para se aferir a prova da capacidade adequada em sede do principio do aproveitamento útil e efectivo da terra. Recorde-se que o aproveitamento útil e efectivo é condição que pode determinar ou não a resolução de um direito fundiário. 


Atrocidades aos Direitos Fundiários
 

a) Em relação ao contraste imperativo do desenvolvimento e expansão das cidades vs direitos constituídos na periferia das cidades deve dizer-se, em boa verdade, que não estão a ser reconhecidas nem respeitadas as terras comunitárias tradicionais que se situam nas periferias das cidades, injustamente, porque a lei só confere esse direito às terras rurais integradas no domínio útil consuetudinário. A fronteira entre o rural e o urbano ainda não é clara. Por conseguinte, ficam feridos os direitos fundiários e culturais das comunidades tradicionais que se situam na periferia das cidades. A excepção vale para as comunidades cuja ocupação tradicional é a pesca que têm sido incentivadas com a entrega de algumas embarcações pelo Estado para a prática da pesca artesanal. De resto, os desalojamentos e posteriores realojamentos, em alguns casos, em áreas muito distantes dos centros urbanos é a prática comum. Algumas vezes, as famílias desalojadas são acomodadas nas tendas em condições desumanas. Em muitos casos as famílias são abrigadas em casas sem condições de habitabilidade nem consultadas para o efeito. Lembre-se que todo o comportamento que prive a liberdade de escolha na fixação de residência dentro do território nacional peca contra a Lei Constitucional vigente.

Tendo deixado de existir terras de 3ª para os índigenas em seu lugar foram construidos Bairros de 3ª para os pobres afastados das terras entenda-se, condomínios de 1ª para os ricos. As demolições, algumas delas, promovidas por empresas privadas têm intimidado e empobrecido, gravemente, as populações que ficam sem os seus haveres. As indemnizações justas e contemporâneas, ainda, não é uma realidade. Importa dizer, também, que a não demarcação das reservas do Estado está na base de ocupações e reocupações algumas delas que se podem considerar ilegais. O prazo dos 3 anos para a legalização das terras do domínio privado do Estado, portanto, sujeitas à concessão previsto na Lei 9/04 a contar da publicação do Regulamento Geral de Concessão de Terreno não tem sido respeitado.


b) Relativamente à imbricação terra/cultura o legislador coloca o costume como o instrumento legítimo de regulação e composição de interesses na vida em comunidades rurais, embora, se reconheça um costume que não fira a ordem jurídica nem ponha em risco a paz social. Contudo, conflitos que se surpreendem, a modo de exemplo, da não-representação dos líderes tradicionais das comunidades San, na Huila, nos órgãos das Autoridades do Poder Tradicional são visíveis. Desse viés resulta o silenciamento dos interesses das famílias San em extrema pobreza e em extinção. Outro conflito decorre do facto dos membros da mesma família uns chamarem a si a lei e outros o costume em comunidades rurais provocando graves problemas tanto das formas de ocupação, uso, fruição da terra ou partilha de bens. As mulheres são vulneráveis nessas situações até porque o seu direito em muitas comunidades tradicionais é precário.


c) Quanto às terras comunitárias vs situadas nos marcos das fazendas grande parte de conflitos ocorre quando as famílias comunitárias regressadas a seguir à independência às terras de seus ancestrais depois de compulsivamente desterradas durante a colonização são afastadas por se situarem dentro dos marcos das fazendas. Existem casos em que não eram indicadas outras terras cabendo a cada família procurar outras terras. Os valores que eram atribuídos são irrisórios em dinheiro ou espécie.


d) A não-demarcação das terras comunitárias deu lugar à apropriação ou ocupação ilegal das terras integradas no domínio útil consuetudinário lesando os direitos fundiários comunitários.


e) A corrida desenfreada aos recursos naturais tem destruído a fauna e a flora e provocado desalojamentos a várias comunidades tradicionais cujas famílias à margem do disposto na Lei do Ordenamento do Território são preteridas, ou seja, sem oportunidades de serem integradas em projectos de emprego. As comunidades adjacentes a esses projectos de exploração, na generalidade, não beneficiam das redes de água potável, saneamento básico, escolas ou hospitais. Portanto, a responsabilidade social das empresas extractivas é muito deficiente. 
 

Conclusão e Recomendação
 

Finalmente, grande parte de conflitos que ocorre é devida à falta da disseminação da informação e diálogo entre o Estado e as comunidades. A não implantação do órgão técnico que gere e instrui todos os processos ligados aos direitos fundiários (Instituto Geográfico Cadastral de Angola) coloca ainda o diálogo entre as populações e o Estado mais distante. Portanto, maior aproximação dos serviços públicos e, não só, às populações é o que o Estado deve observar. Colaborar, traçar estratégias de parceria com as organizações da sociedade civil é outro desafio que o Estado deve empreender.

*Activista P/ Direitos Humanos

Fonte: Club-k.net