Luanda - FOI APENAS UMA COINCIDÊNCIA, diz a testemunha Pacheco António Nginga, sobre as circunstâncias que o levaram a assistir ao momento em que foram mortos os dois oficiais do Ministério do Interior, nomeadamente, Domingos Francisco João e Domingos Francisco Mizalaque, a pedra motora do caso Quim Ribeiro, actualmente em julgamento.
 
*Mariano Brás
Fonte: A Capital

Mesmo impossibilitado de depor em tribunal, contar tudo quanto diz saber, por culpa de irregularidades na sua documentação pessoal, a testemunha diz-se ameaçada de morte, algo extensivo até aos seus familiares mais directos. Conta episódios de perseguição, e reclama, das autoridades, a protecção que, até hoje, lhe é negada.
 
 
Como tem sido a sua vida depois de apresentado como testemunha ocular dos assassinatos de Joãozinho e Mizalaque?

Tudo na minha vida mudou. Começou quando, pela primeira vez, fui chamado à Procuradoria Geral da República (PGR) e falei tudo o que vi no dia 21 de Outubro de 2010 na zona do Zango. A partir daí deixei de trabalhar, mudei de casa, sofro perseguições, já fui agredido e até tentaram me sequestrar à saída do Supremo Tribunal Militar (STM).

 
Onde é que trabalhava?

Na oficina da Comarca Central de Luanda (CCL), na condição de colaborador com o chefe Osvaldo, entre 2009 e 2010.
 

Era sua a responsabilidade reparar as viaturas da CCL?

Sim, eu prestava serviço à CCL, através  do meu chefe Osvaldo, que era o responsável da oficina. Foi então que em 2010, o senhor Osvaldo me apresentou ao Caricoco que tinha uma viatura avariada de marca Toyota Hilux, cor branca, cabine dupla, inclusive no interior da mesma tinha duas armas. Por esse motivo, passei a ter muitos problemas na cadeia.
 

Problemas porquê? A viatura era ou não propriedade da Polícia?

Não pertencia à Polícia, porque a viatura deu entrada em nome do Caricoco e não tinha nenhum timbre da Polícia. Duas semanas depois, fui à Luanda Sul arranjar outras  viaturas e, naquele dia, foi então que conheci bem o Caricoco, Yuri e outros que também estão envolvidos nesse caso. Depois do serviço, almocei frente a frente com eles numa casa que faziam almoço.
 

Quem lhe pagava pelo trabalho prestado nas viaturas do Luanda Sul e de quem eram as viaturas?

Essas viaturas não apresentavam nenhum documento ou credencial da Polícia e muito menos tinham qualquer timbre, eu mexia porque eles trabalhavam na investigação dos marginais que queimavam viaturas em Viana e quem me fazia o pagamento era o Caricoco.
 

Enquanto testemunha, não foi ouvido em tribunal porque apresentou um bilhete alegadamente tratado antes de obter a certidão. Como foi isso possível? Por outro lado, nas assinaturas que faz, identifica-se como Pacheco António Manuel Nginga, mas nos seus documentos não consta o Manuel. O que se passou, na verdade?

Sinceramente não sei porquê o tribunal não me permitiu falar. Primeiro: é mentira que tratei o bilhete antes da certidão, pois tratei todos os meus documentos no mesmo dia, isto é, dia 21 de Setembro de 2012, como podem ver na cópia que eu apresento. Segundo, quanto à falta do meu nome Manuel tanto no BI, como na Cédula e Certidão, foi erro da conservatória que, estranhamente, não fez constar o Manuel que é nome do meu avó. Terceiro, sobre a questão de ter assinado na Certidão e não no Bilhete, também foi um erro na identificação porque, na altura em que tratei o bilhete eu assinei, mas a minha assinatura não aparece no BI, fui reclamar, mas me disseram que já não podiam fazer nada. Por isso, digo que tudo foi emitido no mesmo dia.
 

Em função do seu depoimento, já sofreu algum atentado?

Sim, já fui agredido. E, na última vez, isto é, um dia antes deu ir ao tribunal para depor, uma carrinha Toyota Hilux, cor branca e com os vidros defumados, mas não consegui ver a matrícula, perseguiu-me. Estava de motorizada, eles começaram a fazer-me jogos de luzes, eu acelerei e eles também aceleraram a viatura e, graças à Deus, encontrei um beco, e consegui escapar. Mas fiquei totalmente ferido e ainda assim apareci no tribunal, para ser ouvido e expliquei tudo, mas além de não fazerem nada, também não me deixaram falar sobre tudo o que vi. Por outro lado, as minhas irmãs têm recebido mensagens e telefonemas anónimo ameaçadores, dizendo que eu seria preso no tribunal porque tinha documentos falsos. No dia em que eu seria ouvido alguém me telefonou de um número bloqueado e me disse: “você é nosso puto, trabalhou connosco muito tempo e por isso não vale a pena falar nada do que você sabe e só não te apanho porque não sei onde tu vives”. Eu, no tribunal, um dos meus irmãos ligou dizendo que nas imediações de um sítio onde faço biscates tinha uma viatura de marca Toyota Corola, de cor vermelha, com quatro indivíduos a minha espera. Tudo isso falei aos oficiais do tribunal, mas também nada fizeram.
 

Tem família?

Tenho mulher e uma filha de três anos, depois dessa situação a minha vida ficou destruída, perdi o meu emprego, abandonei a minha casa no Zango, vivo na clandestinidade, perdi os meus clientes da oficina. Hoje a minha vida está totalmente destruída.
 

"Eu vi-os"
 

O que é que você viu no dia em que o Joãozinho e Mizalaque foram mortos?


Naquele dia, eu saí às seis em ponto de casa. Por volta das seis e 47 eu estava  no Zango 2, onde parei um bocadinho para comprar uma gasosa. Depois continuei com a marcha e, minutos depois, apareceu aquela viatura. Neste momento pedi ao motorista para parar o carro. Ele ainda me disse: “mas para porquê?”. Mas eu insisti: pára.
 


Quem estava no carro e  o que aconteceu?

No carro estavam o Yuri, que era o condutor. Ele tinha duas pistolas sovaqueiras, o Caricoco, estava no banco do pendura e mais três pessoas no banco traseiro que não consegui reconhecer porque estavam encapuzados. Mas estavam todos armados e a civil. O que aconteceu a seguir infelizmente não posso dizer, mas foi muito triste.
 

Você viu a matrícula do carro?

Não vi porque o carro não tinha matrícula.
 

Como então morreram os dois polícias?

(algumas lágrimas escorrem-lhe pelo rosto) Infelizmente não te posso dizer.
 

Aquele carro dificilmente você se esqueceria?

Sim, dificilmente me esqueço, pois era um carro que eu arranjava e se me trouxerem aqui, eu o reconheço.
 

O medo


Sentes a sua vida ameaçada?

Sinto a minha e a dos meus familiares bastante ameaçadas e, por isso, peço às altas autoridades do país que vejam a minha situação, se não um dia vou ser encontrado morto em qualquer esquina. Eu não fiz mal nenhum, mas vivo como se fosse bandido, vivo como se fosse um preso em fuga, como se também participasse dos assassinatos.
 

A Procuradoria Geral da República ou o Supremo Tribunal Militar não lhe têm garantido protecção?

Nem o tribunal, ou a PGR, nunca me protegeram. Recordo que eles só me protegiam no período em que eu estava para ser ouvido. Eles me tiravam da minha porta, assim como me levavam, mas no último dia, quando fui dispensado, já não me acompanharam, nem só na porta do tribunal.
 

Neste momento, sentes-te abandonado?

Estou abandonado e entregue à Deus, se eu fosse uma pessoa que andasse muito, fazia coisas de errado e, por esta altura, já estaria morto. Mas nunca roubei, nunca matei e nunca fiz mal a ninguém, apesar de não ter sido ouvido pelo tribunal, aquelas pessoas que estão aí presas, se saírem, vão me matar: juro pelo que é mais sagrado.
 

Não depôs em tribunal. Por que acha que lhe vão matar?

Eles sabem que eu sei! Eles me vão matar, eu digo (volta a lacrimejar). Olha, até o meu antigo chefe, que me apresentou a essas pessoas, hoje não fala comigo.
 

Mesmo perante essas ameaças que vem sofrendo, a perca do emprego, abandono da casa, ainda assim você não tem medo de denunciar tudo isso?

Primeiro é o seguinte: eu conhecia o senhor Mizalaque que foi uma grande pessoa para mim, era um senhor muito bom. Curiosamente, um dia antes deles morrerem eu estava para reparar uma avaria no carro dele. Se não fosse Deus, eu também estaria naquele carro porque estávamos para ir comprar as peças, mas só não aconteceu porque eu tinha um outro compromisso, pois ele ainda naquele mesmo dia ligou para mim. Por tudo aquilo que vi fiquei com um peso de consciência, quando saí do local fui ter com o meu chefe Osvaldo em sua casa e contei-lhe tudo o que vi.
 

E o que foi que o seu chefe disse?

Apenas deu-me uma cerveja para beber, depois pegou no carro dele e saiu.
 

Dentro do Tribunal você já sofreu alguma ameaça?

Além dos olhares do Yuri, houve uma vez que, quando eu saía do tribunal, um senhor gordo, amigo dos presos, tentou me raptar. Também comuniquei ao tribunal e mais uma vez nada fizeram.
 

O que você espera da sociedade?

Peço à sociedade, aos órgãos competentes que me ajudem, eu não fiz nada de mal, além de ter sido mera coincidência ter presenciado dois homicídios. Eu já não tenho pai nem mãe, não tenho tio no Governo e nem tio Polícia para me defender, se não me ajudarem eu vou ser morto. Eu tinha um sonho de ser chefe de uma oficina, o meu sonho estava a se concretizar, pois já tinha a minha oficina, mas depois de acontecer isso tudo acabou, perdi clientes, perdi o emprego porque andavam a me perseguir e agora estou a passar mal para sustentar a minha família, vontade de trabalhar tenho muita, mas não consigo porque me querem matar, se eu paro hoje numa roulotte para beber alguma coisa, no dia seguinte, quando para lá voltar, a dona diz-me que alguém perguntou onde eu vivo.
 
Sentes-te arrependido por ter desabafado com alguém aquilo que viu no dia 21 de Outubro de 2010?

Sinto-me. Infelizmente não consegui conter aquilo que vi só comigo.


Que viu no dia 21 de Outubro de 2010?

Sinto-me. Infelizmente não consegui conter aquilo que vi só comigo.