Luanda -  É com tristeza (no mínimo, vou chamar-lhe tristeza...) que vejo um qualquer angolano ser detido, ameaçado, molestado, porque desejou manifestar-se. Simplesmente "manifestar-se": mostrar aos outros que em alguma matéria não está de acordo com um outro grupo, cívico ou político. Dizer. Gritar. Escrever num pedaço de cartão ou de pano.

Fonte: Novo Jornal

Em nenhuma das manifestações vi ou soube de actos de violência que partissem dos jovens. Na maior parte delas, são impedidos de se manifestarem. Cortam-lhes a voz e os cartazes. São detidos ou afastados do local escolhido. E, ironicamente, algumas vezes até lhes dizem que "não estão detidos". Pelo menos uma vez, lembro-me, até os retiraram do local por "razões de segurança". A sua própria segurança.


A isto devemos chamar ironia, destreza, inteligência? Que nome dar a esta estratégia de neutralização de uma manifestação que quase não acontece, que por pouco quase acontecia, que acontece para os media internacionais mas a nível nacional passa despercebida? Que nomes teremos que inventar (ou reinventar) para esta estratégia de anulação daquilo que um grupo de jovens tem para dizer?


E se fosse o exercício contrário? E se quem não os quer escutar se desse ao trabalho de simplesmente escutá-los? E se os deixarem falar?


E se todos os que facilmente lhes atribuem nomes ("bandidos", "desocupados", "drogados", "alienados", "marionetes", etc) decidissem simplesmente ler ou ouvir o que estes jovens têm para dizer? E se um debate, sério, nascesse a partir das dúvidas que estes jovens colocam, instauram, e trazem com eles?


É preciso deixarmos de fingir que estes jovens "não sabem o que dizem". Sabem muito bem. Por mais que nos incomode, por mais que sejam verdades ásperas, por mais que questionem abertamente o poder e o abuso de alguns poderes. É mais fácil fingirmos que são "malucos" e "alienados". É mais fácil pensarmos que as ideias não são deles, são de algumas forças (mas quais?) externas, politicamente organizadas para manipular um grupo de jovens angolanos, idiotas, que não sabem pensar pela sua própria cabeça. Mas temos que ter muito cuidado, a via "mais fácil" leva, muito frequentemente, ao caminho do engano e da análise superficial.


A grande maioria destes jovens tem demonstrado uma lucidez social e política de grande mérito. Não interessa (por agora) se concordamos ou não. Se "tudo" o que dizem está correcto. Ninguém, em parte alguma do mundo, está correcto em tudo o que diz, em tudo o que afirma politicamente. Mas a estes jovens está a ser negado um tempo de atenção. O tempo de ouvirmos o que vieram para dizer.


Que mais-velhos temos, que mais-velhos somos e seremos, se não soubermos ouvir os mais-novos? Ouvir. Escutar. Prestar atenção àquilo que estes jovens, entre suor e receio, entre audácia e lucidez, escolheram vir a público dizer.


Tenho sérias dúvidas que a nossa sociedade esteja a agir/reagir de modo correcto se tudo o que pretendemos é ignorar, abafar e silenciar estes jovens. Estes ou quaisquer outros. Jovens que têm dúvidas para expôr e para instigar. Assim como todos temos o direito à dúvida (em relação às nossas convicções, em relação às convicções dos outros), todos teremos igualmente o direito à exposição das nossas convicções.


Seremos um país melhor quando as pessoas puderem expôr e debater as suas convicções. Ainda que contrárias à corrente. Ainda que susceptíveis de serem atacadas ou apoiadas. Mas que sorte, que orgulho, de termos um país onde os cidadãos, onde os jovens, pensam, reflectem e chegam às suas próprias conclusões. Estas conclusões trazem exigências, reclamações, debates. Parece-me que estamos assim a caminho do futuro. Se é esse realmente o futuro que queremos: democracia, exposição, debate. O direito à convicção tanto quanto o direito à dúvida.


Que sabedoria terão os nossos mais-velhos se não vasculham as suas próprias dúvidas? Que sabedoria tem aquele que já não pode, já não quer escutar? Que sociedade queremos ser, ou vir a ser, se de braços cruzados nos entregarmos ao hábito de não debater as vozes dissonantes?


Desculpem, mas reservo-me o direito à dúvida. De duvidar do que vejo escrito ou dito nas notícias. De duvidar das más intenções daqueles que nem sequer chegaram a expôr as suas intenções. Reservo-me o direito de duvidar da sabedoria dos mais-velhos que não querem escutar, nem ver, nem abraçar os seus mais-novos. Reservo-me o direito de duvidar de um país que duvida dos próprios jovens que educou e que agora pensam de modo próprio. Ainda que dissonante. Ainda que divergente. Ainda que utópico. Reservo-me o direito de duvidar dos mais-velhos que não querem que nos preocupemos com a maioria, e com as condições da maioria. Seria redundante aqui dizer que essa maioria chama-se "povo" e que todos, todos os angolanos sabem perfeitamente em que condições a "maioria do povo" vive ou sobrevive.

 

É com tristeza que, sendo apenas mais um jovem do meu país, tenho tantas dúvidas em relação a este momento histórico da nossa sociedade. Em vez de celebrarmos o dito progresso, partilhamos uma espécie de receio. Em vez de grito de celebração, temos murmúrios. No lugar da distribuição, temos acumulação. No lugar de um sonho expansivo, temos o pensamento molestado e a auto-censura bem treinada. Não tenho outra coisa na voz que não tristeza.


Para a contrariar (sim, é meu dever pessoal e de cidadão buscar o caminho oposto ao da tristeza...), alimento todos os dias uma esperança. Uma esperança simples, angolana, que me vem de muito longe. Vem, certamente, de outros mais-velhos que conheci, de um outro tempo, de uma outra educação. Mais-velhos que escutam, que se propõem participar dos debates e que nos querem conhecer com o mesmo respeito com que nós a eles nos dirigimos. Porque o rio tem duas margens e a conversa faz-se a duas vozes.


Alimento todos os dias uma esperança quase ridícula, quase utópica, de uma Angola mais justa. Enquanto espero, abraço aqueles que quando vão falar estão preparados para escutar o que o outro terá para dizer. Porque o rio tem duas margens. Porque o futuro é feito da mão de um mais-velho entrelaçada na mão de um mais-novo. Há muitos anos que é assim. É ou era?

Ondjaki, 31 de Março de 2013.