Luanda -  Ao fim de 22 anos o presidente angolano rompeu o silêncio para falar ao povo. Tratou-se de um discurso não apenas desfasado da realidade face as expetativas do povo angolano mas sobretudo, tratou-se de um discurso absolutamente obtuso e opaco - no que concerne a sua substância - na ótica dos angolanos enquanto seus destinatários naturais.

Fonte: Club-k.net

Todos sabemos que qualquer discurso político desfasado da realidade ainda que desprovido de verdade, procura, todavia, prover-se de sentido. É notório que na arte de fazer política (mesmo da política mediana ou menor) temos entre as coisas mais óbvias e que qualquer político - (in) cauto que seja - sabe que precisa de ao menos dar (à sua mensagem) um ar de novidade aos ouvidos dos seus destinatários a menos que não deseje ser bem sucedido. Tão certo como o nascer do sol e o seu ocaso, é que no coração dos homens a esperança desponta de palavras novas que se mostrem idóneas para enquadrar o presente e o futuro, e relançar as expetativas de quem às ouve. Esse discurso porém, relativamente as preocupações dos angolanos não foi capaz de transcender a matéria propagandística que tem sido debitada todos dias e todas horas pela insaciável máquina propagandística que sustém o MPLA e o presidente Eduardo dos Santos.

 O registo que fica do discurso, porém, não representa necessariamente um falhar do alvo. Resta que se o problema não está na fixação do alvo residirá – muito provavelmente - na definição de prioridades ou seja, do alvo. Daí que para uma compreensão mais apurada do que o presidente se propôs alcançar com a sua entrevista à SIC nos cerca de 44 minutos da sua duração, importa a questão de saber para qual povo se dirigiu o líder angolano. Sim; porque certamente que não foi para matéria inerte ou para um buraco negro – deixem-me passar a expressão - que o presidente pretendeu falar.

As qualificações dos angolanos e a corrupção:

À crer que os destinatários da mensagem eram efetivamente os angolanos há que considerar que o presidente terá, muito provavelmente, confundido os fusos horários pois nada veiculou para os ouvidos do povo angolano senão ofensas. Talvez o presidente quisesse falar ao povo mas não quisesse ser ouvido. Não era – de todo - o que o povo angolano merecesse ouvir do seu presidente. É manifesto que a entrevista do senhor presidente excedeu os limites da displicência de um líder e gerou um grande desapontamento que se juntou a outros que subsistem na memória dos angolanos. O povo ficou, de facto, perplexo, de tal maneira que pairou sobre o seu espírito (dos angolanos) essa dúvida: Será que o senhor Eduardo dos Santos perdeu a noção da nacionalidade do seu entrevistador? Disse ele que Angola debate-se ainda com uma pesada herança colonial que é o analfabetismo e que esse tem-se revelado um verdadeiro bloqueio inviabilizando o desenvolvimento do país pelas mãos dos próprios angolanos. Haverá nessa afirmação algum cinismo, falta de informação ou não passará de uma manifestação de pura ingenuidade.

De tão sinistra afirmação resulta a inevitabilidade de perguntar ao senhor presidente quais eram os índices de desenvolvimento humano ou de literacia em Portugal pouco depois do 25 de Abril? E mais; Quais as diferenças entre os dois países no domínio do ensino e da formação, e que conclusões se podem retirar em termos comparativos face à realidade da sociedade portuguesa no presente? Dirá o senhor presidente que Portugal desde então gozou sempre de estabilidade! Essa não terá sido a mesma realidade dominante na capital angolana e em quase todas as capitais de província no mesmo horizonte temporal? Resulta porém, do pensamento discorrido por S. Exa. a noção de que o desenvolvimento humano em Portugal deixou – há algum tempo - de ser um problema sendo que presentemente Portugal possui capacidade até para exportar quadros qualificados para certos países. Aconselha a sabedoria para que, ao reconhecermos os nossos erros, possamos com eles aprender e afastar os seus fantasmas.

A abordagem do presidente Eduardo dos Santos denota de forma flagrante, o seu distanciamento dos problemas dos angolanos daí que, porventura, não desejasse falar aos angolanos. Aliás, se por um lado os angolanos que expetantemente aguardaram pela entrevista do seu líder ouviram-no precipitar-lhes uma chuva de pedregulhos em cima quando se permitiu a usar expressões como desesperados, frustrados, inqualificados e incompetentes, outros à que tudo indica serem os verdadeiros destinatários da entrevista ouviram-no convidar-lhes vir trabalhar para Angola onde quiserem – até mesmo e muito particularmente na função pública porque essa, tal como o sector privado - está altamente carecida dos préstimos dos brilhantíssimos cérebros dos portugueses. Que felicidade e amargura podem brotar de tão gratuitas expressões para uns em oposição a outros! Contudo, a minha perplexidade ainda mais aumenta quando constato que - quase todos os dias - muitos portugueses acusam-se mutuamente do (in) brilhantismo técnico e intelectual dos seus concidadãos. Contudo, há um bom exemplo que o presidente Eduardo dos Santos pode e deve aproveitar desse povo; Soberbos ou não, os portugueses têm assumido os seus destinos e pelo seu próprio pulso têm projetado para o futuro a glória uma vez e para sempre exaltada pela pena de Camões. Os Portugueses nunca permitiram que as suas divergências os prejudicassem face aos interesses de terceiros e, de acordo com essa sua perspetiva, sabem defender-se muitissimamente bem. Os portugueses – nos momentos cruciais da sua história - têm sabido  construir a união e o consenso que subjaz o progresso económico e social até aqui alcançado pela sociedade portuguesa.

A entrevista do presidente angolano à SIC, sem dúvida, oferece a oportunidade de se revisitar um tema atual da sociedade angolana e fazer-se a seguinte reflexão:

Recentemente o presidente encarregou alguns dos seus colaboradores mais próximos de instituírem uma comissão para recuperação e reordenação ou reconstituição da história de Angola. Essa é uma iniciativa que pretende traduzir de uma forma mais efetiva o esforço de - orgulhosamente - reavivar na mente dos angolanos o nosso passado histórico exaltando os nossos ancestrais (pais do substrato da nação angolana) os líderes das etnias angolanas, dizem os seus mentores. Contrariamente a esse seu aparente orgulho, vem o presidente expor o seu próprio povo rotulando-o de todas as maneiras e feitios, querendo significar com tais adjetivos a incapacidade e impotência de os angolanos erguerem e manterem a pátria que herdaram dos seus ancestrais. Daí que o que transparece das palavras do líder angolano é que o património genético dos valentes e honrosos pais fundadores da nação angolana – nos quais, nós angolanos, temos muito orgulho -, perdeu-se com o seu desaparecimento físico. Daí como consequência a frustração, a imprestabilidade e a incompetência da sua descendência - as atuais gerações dos angolanos. Ora essa perspetiva do presidente Eduardo dos Santos não é - de modo algum inócua – e, é a mais insofismável  prova da negação do orgulho que diz ter da história de Angola. 

Esperava-se ao menos que o presidente tivesse feito a devida ressalva sabendo ele que entre o povo angolano houve, quem tivesse começado por vender ovos na rua e é hoje detentora e titular de importantes participações e de posições de vulto em grandes companhias ou grupos económicos e empresariais no estrangeiro. Devemos nós angolanos retirar ou não exemplo dessa experiência empreendedora de sucesso, senhor presidente?

Um estigmatismo intelectual evidente: 

A entrevista patenteou a incapacidade do presidente em conformar os seus argumentos de acordo com uma visão holística da vida do país. Num registo contínuo e sem cessar o presidente gaba-se da aposta no desenvolvimento humano mas nada diz acerca das centenas ou dos milhares de dólares que cada angolano tem de desembolsar para ser minimamente comtemplado com tal aposta. Se o jornalista, porém, o tivesse confrontado com a sua assertividade nessa matéria, sabemos que teria respondido que a culpa é daqueles que praticam a corrupção. No entanto, quando questionado sobre essa chaga institucional e social - sem qualquer hesitação – limitou-se a afirmar que não sabe se a corrupção um dia há-de acabar em Angola. É desta maneira  que o nosso presidente patenteia a sua perspicácia e visão estratégica. Diz Eduardo dos Santos que, os seus esforços pessoais estão orientados para a criação de riqueza e uma melhor distribuição desta com vista ao combate as assimetrias sociais e erradicação da pobreza em Angola. Será realista tratar dessas matérias de forma tão assertiva sem alguma obsessão - no sentido positivo do termo – pelo combate à corrupção?

A redistribuição da riqueza:

 Parecia estar o presidente a falar de mente vendada porque – sem querer – esbarrou novamente na inelidível contradição da sua afirmação relativamente a realidade da corrupção. Enquanto em plé na campanha eleitoral elegeu a corrupção como principal alvo a abater, depois das eleições a sua erradicação passou a ser uma incógnita e agora tratável com palavras brandas e dúbias.

Eduardo dos Santos, ao estender tão benevolente convite aos destinatários da sua mensagem também não foi capaz de se aperceber de que, na realidade, a tão apregoada redistribuição (da riqueza de Angola) da qual disse querer que seja justa, tem sido realizada já com grande intensidade – há quase uma década – porém, em benefício dos outros e em detrimento dos angolanos. Ora, os angolanos nunca se revelaram um povo egoísta mas (como todos povos do mundo) vivem com avidez o desejo de serem tratados com a justiça que emana da dignidade humana e que, por maioria de razão, lhes assiste enquanto soberanos e legítimos donos da terra. O povo convive bem com estrangeiros mas isso não significa que as coisas devam continuar no estado em que se encontram tão-somente porque na realidade presente não se pode vislumbrar uma réstia de esperança para um povo que tem tudo para ser um povo feliz.

A Paz, A Harmonia e a Reconciliação Nacional:

Referindo-se as eleições de 1992 Eduardo dos Santos falou de um governo forjado no espírito da paz e da harmonia, por isso, um governo propício a favorecer os desígnios da reconciliação nacional. Se foi essa a sua vontade então, há que saber, até que ponto se pode dar crédito a tais pretensões quando a realidade nos confronta com factos em nada abonatórios das suas palavras. É notório que o presidente é condescendente com as razões de fundo que se constituíram entraves – até agora insuperáveis - ao regular funcionamento das instituições angolanas. Se não, vejamos; Todos os membros do governo saído das eleições de 1992 oriundos de outros partidos políticos acabaram por ter que se filiar no MPLA por forma a garantirem os seus postos de trabalho e o seu futuro político. Ou seja, a pluralidade política audaciosamente apregoada pelo presidente não foi de resto bem vinda no seio dos que dominavam do dito governo de reconciliação nacional – o MPLA e o se presidente. Daí que, o que na verdade triunfou foi a apetência de uns que por usurpação a vontade popular se reinstalaram no poder. Ainda hoje o presidente fala de um governo de unidade nacional, porém, confunde a unidade nacional com a sua própria pessoa na medida em que nenhuma voz do seu governo goza de autonomia e muito menos de independência, tanto que até pela inauguração de um chafariz tecem-se rasgados elogios ao (in) prestimoso presidente.

Um discurso inclusivo e exclusivo:

Se por um lado os angolanos não obtêm respostas dos problemas que mais os afligem, do outro é patente no discurso do presidente que um certo grupo de angolanos - por exclusivo convite (ou por decreto) presidencial, esses sim – destinatários da entrevista, vê atendidas as suas preocupações ao mais alto nível com direito a um discurso inclusivo. Na perspetiva de Eduardo dos Santos a paz, a harmonia e a reconciliação nacional não implicam um maior compromisso com a sociedade daí que constroem-se excluindo uns e incluindo outros. Qualquer leigo em matéria de governação sabe que o desemprego e os baixos salários são inimigos do desenvolvimento e do progresso social. Até agora não se vislumbrou na ação governativa do presidente a preocupação de encetar uma justa e generalizada subida dos salários (público e privado) consentânea com o custo de vida. Assim sendo, importa a questão de saber de onde vem tão merecida e especial atenção para os que possuem qualidades e mérito para serem incluídos em detrimento dos excluídos. Esse foi marcadamente, um dos segmentos mais infelizes da pseudoentrevista do presidente o qual não escapou ao olhar nem aos ouvidos menos atentos.

Não vai muito tempo a essa parte, que o jornal de Angola foi transformado num mural de indignação da elite angolana face a sua congénere portuguesa. Mais uma vez a frondosa árvore cujo fruto é odiado pelo povo angolano e cobiçado por alguns lá de fora esteve no centro da polémica – só porque não é tolerável a sua menção pelos seus cultores. Não houve contenção que pudesse deter a fúria nem a mágoa de quem parecia ter sido traído pelo seu melhor amigo. Por outro lado, está ainda fresca nas nossas memórias (especialmente dos angolanos) a volta ao mundo que - com muito mérito e muito bem sucedida -, Isaías Samakuva e Abel Chivukuvuku e as respetivas delegações empreenderam. Desde os EUA à Portugal ouve manifestamente, vontade de ouvir desses líderes – da verdadeira e vívida oposição angolana – os problemas com que o povo angolano se debate todos os dias. Esses ilustres representantes do martirizado, maniatado e oprimido povo angolano foram recebidos e ouvidos ao mais alto nível das instâncias e instituições dos países que visitaram e até da União Europeia.

O mesmo não se pode dizer dos enviados de Eduardo dos Santos nesses últimos tempos, ou seja, desde que se realizaram as últimas eleições em Angola. Daí não será grande a margem de erro, se estabelecermos um nexo de causalidade entre tais acontecimentos e a circunstância de uma estação de televisão privada Portuguesa se prestar a passar uma entrevista do presidente angolano contra os angolanos. Foi infeliz o registo da entrevista do presidente angolano que a SIC passou, pela simples circunstância de se ter usado um questionário totalmente inútil face a realidade da sociedade angolana. Não vale a pena chamar-se entrevista a um discurso intercalado. Sucede que, para os angolanos, isso reforça a firme convicção - que não podiam deixar de ter – de que nessa relação (entre Angola e Portugal nos termos em que se tem processado) só se podem vislumbrar projetos visando garantir soluções para os problemas com que se debatem (nomeadamente ao nível do emprego, das finanças e da economia de um modo geral) os Portugueses, por outro lado propõe-se desse modo (tais projetos) garantir a sustentabilidade política necessária, com vista a manutenção do líder do regime angolano no poder. Em certas circunstâncias fala-se de moeda de troca mas, se (no caso concreto) essa é a perspetiva, então nos encontramos perante um precedente altamente voraz para a soberania do povo angolano e aspirada democracia. Cremos que, o que o povo angolano quer estabelecer com o povo português não são relações que se criem com base em vínculos altamente voláteis mas, duradoiros e reciprocamente vantajosos.

Direitos humanos e liberdade de expressão:

Encontram-se atualmente instaladas na sociedade angolana várias organizações de defesa dos direitos humanos. Na sequência das atividades desenvolvidas pelos mesmos organismos ou organizações, várias denúncias têm sido feitas em matéria de violação da liberdade de expressão, também, devida a não pluralidade dos órgãos de informação do estado. À par, os órgãos da comunicação social privada da sociedade angolana – a maioria deles – foi vítima da coutada do partido do governo no sentido de os transformar em paladinos dos interesses da elite no poder. O que assistimos no passado dia 6 de Junho não representará uma tentativa de ampliação do tempo de antena da elite angolana – num primeiro momento - para Portugal, por forma a disseminar os seus tentáculos pelo ocidente num futuro próximo? Quais são as responsabilidades em que os países ditos civilizados se revêm para com os angolanos nesse momento particular da história de Angola? A tolerância inata que carateriza o povo angolano – que se não pode confundir com outra coisa – levá-lo-á ainda a fazer fé que, todos os intervenientes da sociedade angolana (já que o regime à isso não é sensível) certamente compreenderão que a boa-fé e a moral impõem que, nas relações entre os povos tudo se construa com vista a realização do bem-estar da pessoa humana – dos angolanos nesse caso. Sabendo-se que a soberania do povo é uma realização da democracia e que a democracia é uma realização da soberania do povo, logo, são legítimas as expetativas do povo angolano no sentido de receber de terceiros todos apoios ao seu alcance com vista a remoção dos condicionalismos da sociedade angolana que de alguma forma derrogam o direito de se ser livre e o direito de ser-se feliz ao povo.

Um desejo sem fronteiras:

O povo angolano há muito debate-se com o seu destino encravilhado por um estoicismo grudado nas suas instituições. Os angolanos conservam ainda profundas e amargas cicatrizes das suas lutas pela remoção da funesta plêiade que, de dia e de noite, se renova implacável para com aqueles que apenas suspiram pela liberdade. Precisamos – os angolanos - de esboçar a nossa paz enquanto condição sine qua non da reconciliação nacional e da harmonia, e não de fatores que visem e contribuam para perpetuar as nossas dissensões em proveito alheio.

Ao público leitor e aos angolanos em especial, um até breve,
Tito Silva