Luanda - José António da Silva é mais conhecido como Da Silva. É um antigo investigador da Polícia Nacional, concretamente afecto ao departamento de luta contra o narcotráfico, cujo nome saltou para a imprensa depois de ter sido acusado de desviar quantidades substanciais de cocaína apreendida a traficantes. Foi julgado e condenado a 14 anos de cadeia. Hoje em liberdade, ele insiste em dizer-se inocente e conta a sua versão dos factos.

*Mariano Brás
Fonte: ACapital

As revelações deste especialista, agora expulso da corporação, levantam o véu sobre uma realidade: o tráfico de drogas já circula pelos corredores do Estado, havendo empresários, juízes, músicos e jornalistas envolvidos até ao pescoço. Para início de conversa, lá disse o cidadão que só veio a público com medo da pressão de que diz estar a ser vítima.

Há dez anos foi condenado por ter desviado uma caixa com drogas no departamento de combate ao narcotráfico da Direcção Nacional de Investigação Criminal. Uma vez em liberdade, o que diz sobre tudo o que viveu?


A 02 de Setembro de 2003, depois de um mês de gozo de férias, regressava ao serviço quando, minutos depois, o meu chefe João Bonzela Franco ligou para mim a pedir para que eu fosse ter com ele, porque tinha um caso de alta responsabilidade que apenas eu o poderia resolver. Uma vez com ele, disse-me que tínhamos de ir à uma loja situada nas imediações do Anangola. Ali havia uma loja que participou de um leilão de um contentor no Porto de Luanda. Inicialmente, do manifesto constava que, no contentor, haviam roupas e calçados. Mas ao abrirem, os ingleses viram que tinha algo de estranho e ligaram para Alfândega que, consequentemente, ligou para a DNIC. O chefe mandou-me para lá em companhia de dois colegas, o Serafim Coelho e o Martins Luciano. Assim que entramos na loja senti logo o cheiro e me apercebi que era mesmo cocaína. Ainda assim, vi a primeira caixa e pedi para abrir a segunda. Confirmamos que era mesmo droga. De seguida, do telefone da loja liguei para o meu chefe a confirmar que, de facto, estávamos perante droga. Ele ainda questionou se eu tinha a certeza. Eu disse que sim, ele orientou para não sairmos da loja porque seguiria imediatamente para o nosso encontro. Quando ele lá chegou, apareceu com dois indivíduos estranhos que só mais tarde me apercebi que eram seus cunhados. Pu-lo ao ocorrente da situação e ele orientou que se tirasse algumas caixas e que as colocasse num sítio próximo, porque os colegas da brigada canina estavam a caminho e dariam sequência ao trabalho. E assim procedi. Todos estes procedimentos foram feitos na companhia dos meus colegas e, inclusive, na presença de dois funcionários da referida loja. Entretanto, pegamos em quatro caixas e as colocamos na Cadeia de São Paulo que era próximo da DNIC com o propósito de a usar como isca para o possível proprietário. As nossas experiências nos dizem que, normalmente, os proprietários de mercadorias do género gostam de as seguir e de as controlar onde ficam guardadas. Por isso, pensei que, quando nos deu essa ideia, a intenção do chefe era atrair dessa forma o proprietário da mercadoria.

Quantas caixas de cocaína eram e que número de pacotes haviam em cada uma?

Eram 21 caixas e cada uma continha 25 pacotes, cada um pesava um quilo de cocaína. Fomos à DNIC, fez-se todo o trabalho, como o auto de apreensão inicial. Depois fomos ao Cazenga e o trabalho se prolongou até às 21 horas daquele dia.

Ao Cazenga?

Sim, porque lá existiam outros contentores que se presumia terem, também, drogas por terem sido adquiridos no mesmo leilão. Mas quando lá chegamos, não tinham nada. Depois, o chefe mandou o reforço da equipa e fomos até às imediações da Loja York, próximo da Mutamba. Conseguimos uma informação de que a loja que pretendia desalfandegar aquela mercadoria tinha aí uma agência. Desta feita, levamos todas as pessoas que encontramos até à DNIC onde fizemos uma acareação, fizemos o auto de apreensão inicial e, também, uma informação especial dirigida ao Director Nacional. Assegurou-se o produto e o depositamos no gabinete do chefe Bonzela, o que, para já, não era de hábito porque os produtos eram depositados na área de Finanças, a qualquer hora que terminássemos de fazer qualquer trabalho. Deixa-me dizer que ele mentiu, ao me dizer que seguia uma orientação do Director Nacional que, na altura, era o senhor Eduardo Octávio. Em momento algum fiz isso sozinho e, a posterior, me apercebi que o director Octávio nem se encontrava no país e muito menos ele tinha mandado fazer fosse o que fosse. Mas antes disso é importante dizer aqui que fui fazendo algumas chamadas telefónicas para alguns traficantes, que eram nossos informadores, pois todos que lidam com isso devem ter informadores. Fiz isso para termos alguma pista de quem era a mercadoria, pois até antes disso não tínhamos nenhuma pista dos possíveis donos. Depois disso, todos saímos. No dia seguinte, ao sair da minha casa que fica junto do prédio da loja York, deparei-me com o meu chefe a conversar com um dos senhores brancos da loja. Não parei. Passei e fui-me embora, deixei o meu filho na creche e, a seguir, fui para o serviço.

E quem era esse senhor? Um dos donos da agência que, conforme o manifesto, era o dono da mercadoria?


Sim, e naquele dia o meu chefe estava apenas com aquele senhor. Já no serviço, por volta das 11 horas, o meu chefe aparece. Nesta altura subi para o terraço do edifício quando, espantosamente, o meu colega Coelho veio ter comigo e diz que o chefe disse que estavam a faltar algumas caixas. Eu disse-lhe: “Coelho você está a brincar comigo, afinal todos acompanhamos isso e vimos a quantidade de caixas”. Fomos, então, ter com o chefe e o questionamos sobre o que se passava. Mas ele me dizia que não havia nada. Ainda assim insisti e pedi para que me dissesse sobre o que se passava, afinal o Coelho me tinha dito que faltavam algumas caixas. Lá ele me disse que sim, e pediu para que eu fosse para lá ver com Coelho. Mas eu me recusei e disse que só iria com ele. Lá ele me mandou-me aguardar até às 17 horas. Mandou-me chamar, mas eu disse que não seria possível falarmos porque tinha de ir à busca do meu filho à creche. Ele entendeu, disse que falaríamos quando eu regressava. Sinceramente, não demorei e, minutos depois, já estava de volta à DNIC. Não o encontrei. Por volta das 21 horas, ele chegava com o director do gabinete do director nacional. Às 22 horas ele sai e vai falar com o nosso director adjunto do gabinete onde ficou até quase meia noite. Ele saiu já sozinho e me disse que seria recebido pelo director nacional adjunto. Entretanto, já a 01 hora da madrugada, lá veio ter comigo e pediu para irmos até ao gabinete do director nacional adjunto. Quando lá chegamos, ele mandou-me aguardar, quando saiu do gabinete me disse, para o meu espanto, que o director estava muito chateado e que não pretendia falar comigo. Eu ainda lhe disse: “mas perante uma uma situação como esta o director não quer falar comigo?”. Por volta das 3, 4 horas damadrugada saí e fui para casa, e ele também.

E o que aconteceu de seguida?

No mesmo dia, portanto, a 04 de Setembro, por volta das 08 horas eu Coelho e o Martins regressamos ao escritório. Postos lá, havia uma comissão formada. Ele me disse que eu tinha que ser ouvido pelo chefe do gabinete do senhor director e por mais algumas pessoas. Mas eu disse que não, que não aceitava ser ouvido por essas pessoas. Antes disso, eu vi o chefe Bonzela, isto é, às 17 horas, enquanto esperava por ele, vi-lhe rasgar alguns documentos entre os quais o acto de apreensão que nós tínhamos elaborado, a rasgar a informação que nós tínhamos feito a narrar os factos assim como também rasgou a informação especial que fizemos para o Director Nacional bem como a acta da reunião que fizemos no mês de Julho. Entretanto, depois de eu me recusar a ser ouvido por aquelas pessoas, ele deu ordem de prisão para mim, o Coelho e para o Martins. Consequentemente, realizou uma busca às nossas casas onde não encontrou nada.

E as chefias da Polícia, não intervieram na altura?

Antes de entrarmos para as celas veio uma comissão do comando-geral chefiada pelo comandante-geral adjunto, que era o actual comandante-geral, Ambrósio de Lemos, devidamente acompanhado do senhor Dodó. Também estavam presente o senhor Ferreira, que era director dos Recursos Humanos, o director Van-Dúnem e o próprio Bonzela. Mandaram-nos chamar e só perguntaram os nossos nomes e patentes. Mandaram-nos, depois, retirar da sala. Enquanto percorria o corredor das instalações, perguntei a um colega se o director nacional estava, ao que me respondeu que não andava cá no país. Foi a partir daí que me apercebi que o director se encontrava em Moçambique e que o Bonzela me tinha mentido quando disse que tudo foi feito sob orientação do director, ou seja, nomeadamente, a decisão de guardar algumas caixas no seu gabinete. A partir daí me apercebi que tudo não passava de uma armadilha montada pelo Bonzela. Neste mesmo dia fomos mandados para a cela, mas por volta da meia noite mandaram- nos sair para sermos ouvidos por uma comissão a que, mais uma vez, recusei. Afinal, um bruxo não pode dirigir uma investigação de bruxaria...

Quem eram as pessoas que compunham essa nova comissão?

Estou a pedir paz, e existem nomes e coisas sobre as quais eu prefiro não falar. Mas pedi que, para ser ouvido, tinha de ser pelos senhores Ngunza, Eduardo Semedo ou pelo Gama. Significa que essas pessoas representavam para mim alguma segurança em termos de idoneidade. Eu disse ainda que não havia necessidade desse escândalo todo porque as caixas estavam na cadeia de São Paulo e ninguém as tinha tocado, pois era, tudo, uma questão de irmos para lá e verificar que estavam intactas. Por outro lado, também disse que o senhor Bonzela, que era o chefe do departamento e, por via normal, o principal suspeito, era a mesma pessoa que estava dirigir as investigações. Então isso não era sério, pois ele poderia destruir tudo o que lhe comprometesse. E foi o que aconteceu. Ele simplesmente destruiu tudo que lhe comprometia. No dia seguinte, por volta das 05 horas, tiraram-me da cela e, em companhia dos senhores Ngunza, Eduardo Semedo e Gama, que eram as pessoas que estavam indicadas para dirigir e instruir o processo, fomos até à Cadeia de São Paulo. O senhor sabe que, antes, a parte de frente da cadeia era a parte militar. A de trás era para a Polícia.

E com quem estava, então, a mercadoria?

Então, a mercadoria estava na parte de frente. O meu primo era o comandante.

Entregou a mercadoria ao seu primo para guardar?

Sim. Eu não a podia deixar com alguém por quem não tinha confiança. Quando lá fomos, paramos naquele hospital oftalmológico e disseram para ficar no carro enquanto eles iam buscar as caixas. Mas, para o meu espanto, quando regressaram em vez das quatro caixas apenas trouxeram três. Eu disse que não poderia ser possível serem apenas três, porque na verdade eram 4. Aí eles me disseram fica só assim, vamos e depois isso resolvemos. Entenda bem senhor jornalista. Preciso da vossa ajuda para, de uma vez por todas, para esclarecimento sobre essa situação que já me deixa muito saturado. Estou cansado de aturar mais velhos que têm idade de ser meus pais. Eu não sou bandido, nunca fui, estou cansado de aturar muita coisa e de engolir muitos sapos.

Disse que, a princípio, eram 21 caixas, entre as quais 4 foram levadas para a Cadeia de São Paulo com a intenção de atrair o importador das drogas. Onde estavam as restantes caixas?


As outras 16 já estavam na sede da DNIC e essas outras 4 fomos buscá-las para se juntarem às demais. Curiosamente, quando o chefe Bonzela elaborou a informação inicial não fez constar a existência das quatro caixas. Depois dele rasgar tudo, fez uma outra informação inicial e, como lhe disse, quando fomos buscar as 4 caixas apenas nos deram três. Foi aqui onde tudo começou a piorar.

O que aconteceu então?

Fomos para a DNIC e os instrutores fizeram um auto de apreensão a dizer que receberam três caixas e pediram-me para assinar. Eu me recusei, dizendo que eram quatro e não três. Neste período, o director Octávio já se encontrava no país e exigiu que se fizesse a apreensão da quarta caixa. A posterior, foram ter com o meu primo, que era o major Quinhas, a quem tinha entregue as caixas lá na Cadeia do São Paulo. Não sei sobre o que falaram com ele. Mas, espantosamente, ele entregou mais sete pacotes. Depois ainda falei com o meu primo, mas sobre o que se estava a passar ele não soube explicar. Notei que começava a existir uma relação próxima entre o meu primo e os instrutores do processo, desta feita, o director manda fazer uma reconstituição do caso para explicar como tudo aconteceu e lá me disseram que a minha missão era apenas acompanhar e mentir. Ou seja, dizer que foi o próprio director Octávio que ficou com a droga e que, quando fosse julgado, eu só tinha de simular que estava maluco. Por isso, senhor jornalista, quando vê pessoas que chegam no tribunal e ficam malucos é tudo falso, são devidamente instruídas para o efeito.

Quem lhe pediu isso?

Foram os instrutores do processo.

Os mesmos em quem, a princípio, o senhor tinha confiança para instruírem o seu processo?


Sim, e esse grupo só se criou porque fui eu que pedi. Hoje as pessoas dizem que eu tenho rancor ou maldade contra essas pessoas mas, confesso, e Deus me está a ouvir que não tenho rancor ou maldade contra ninguém. Eu quero apenas esclarecer a verdade e ter paz na minha vida. Repara que quando fizemos a reconstituição eu estava muito cansado porque durante 90 dias

dormia algemado dentro da cela e estava muito saturado com toda essa situação. Toda aquela reconstituição foi uma mentira. Insatisfeito, o Bonzela ainda mandou chamar uma minha ex- namorada e ficou com ela durante muito tempo no gabinete. Os meus colegas vieram dizer- me para ter cuidado, pois o que pretendiam era criar intriga entre eu e o director Octávio. Eles pretendiam que eu acusasse o director Octávio. Eles me perguntavam, onde está a outra caixa, quem se beneficiou da caixa e por aí. Depois mandaram-me para o Futungo, onde fui ouvido por um senhor que trabalhava com o General Miala. Quando lá cheguei, limitei-me a contar o que sabia e sem fazer juízo de valores. Inclusive quando saí de lá disseram-me que o General Miala teve boa impressão de mim e o caso começou a mudar a meu favor. Por causa disso tiraram-me as algemas e passei a dormir sem elas, pelo que agradeço muito ao general. Dias depois o chefe Canelas, que era a pessoa que dirigia uma comissão criada pelo Comandante Ekuikui, o então comandante-geral, em companhia do senhor Francisco, chefe do departamento que realizou uma acareação entre eu e o Bonzela, questionou ao Bonzela: "senhor Bonzela, eu consultei o processo individual e não vi nada de anormal, mas então o que se passa de concreto?". Lá ele respondeu: “dizem que ele é indisciplinado”. O chefe Canelas espantado voltou a perguntar- lhe: “dizem que ele é indisciplinado e por isso você julga o camarada?”. Nesta altura, se eu não estivesse algemado lhe teria dado um tiro. Eu tive um sentimento de revolta muito grande, pois ninguém pode ser julgado em função do comentário de outros.

Quanto custava cada quilo daquela mercadoria, qual era o valor das 21 caixas?

Um quilo fica entre 20 a 25 mil dólares e as 21 caixas estavam avaliadas entre dois ou três milhões de dólares.

É muito dinheiro...

Tráfico de droga não é negócio para pobre.

Em suma, foi tido como principal suspeito por ter ligado para alguns traficantes? Porquê mantinha relação com traficante de drogas, quando a sua missão era prende-los?


Olha, é norma de toda a polícia mundial um investigador ter informantes, mas não vou falar de outros, vou sim falar de mim, pois repito que telefonei porque naquela altura a linha de investigação era encontrar os possíveis proprietários da mercadoria. Senti-me na obrigação de ligar, sublinha-se, e fi-lo a frente dos demais colegas, liguei para alguns traficante que já passaram nas nossas instalações como presos e, depois, passaram a informadores, pessoas que conhecemos e colocamos em vários pontos para servirem de informadores. E foi para estas pessoas que liguei para encontrarmos os verdadeiros donos da mercadoria. Senhor jornalista vou mesmo já lhe dizer que se alguém desviou ou desvia drogas da DNIC e do Aeroporto Internacional, conforme se especula por aí, essa pessoa não se chama José António da Silva. Que sejam honestos e tenham coragem de mostrar essas pessoas, em vez de se aproveitarem de um insignificante como eu.

“A droga era de libaneses protegidos por uma alta figura angolana”

Portanto, sempre existe desvio de drogas e corrupção no combate ao narcotráfico do país?

Não vale a pena estarmos aqui a nos mentir que não existe. Existe e sempre existiu. Olha, vou lhe confessar agora que as restantes caixas que ficaram no gabinete do Bonzela foram também

todas saqueadas mesmo dentro da DNIC, isto é, nas caixas que continham 25 pacotes de um quilo apenas ficaram 9 ou 10 pacotes em cada caixa. Naquele dia ainda pedi ao Bonzela para ligar ao chefe das Finanças para depositar as caixas naquele departamento como era norma, mas ele se recusou.

A quem pertencia a droga, conseguiu descobrir?

Foi aqui onde começou o grande Problema. Quando descobriram que a mercadoria era de um grupo libanês protegido por alta figura do Estado todo o mundo limpou as mãos, e paguei por tudo.

Quem é essa alta figura do Estado?

Infelizmente ainda não lhe posso dizer.

A julgar pelo à vontade com que disse terem saqueado esta mercadoria, parece que isso é ou era comum acontecer na DNIC. O efectivo, os chefes apoderam-se com frequência das mercadorias apreendidas?


Em Agosto de 2003, uma cidadã da República do Congo, de Brazzaville, identificada como Maria Nhanta, já tinha sido presa pela DNIC, mas curiosamente foi absolvida em tribunal. Tão logo foi colocada em liberdade, ela viajou para o Brasil, quando regressou trouxe 50 quilos de cocaína numa pasta. Entretanto, quando chegou ao aeroporto, viu o pessoal da investigação, pois ela os conhecia bem. Com medo, abandonou a mala no tapete rolante.

E qual foi o destino da mala?

Essa mala foi parar aos perdidos e achados, espantosamente a mala desapareceu nesse mesmo dia. Olha, estava de férias como lhe disse atrás, que só comecei a trabalhar a 02 de Setembro, mesmo assim o Bonzela mandou um colega meu identificado como Lourenço ir para à minha casa para eu investigar, mas ele já sabia que a mala tinha desaparecido. Graças à Deus um colega ligou alertando-me, e não me esqueço como se fosse hoje. Disse: "aquele bandido do teu chefe Bonzela mandou alguém ir ter contigo para investigares o caso da Maria Nhanta, cuidado porque eles vão te incriminar”. Este assunto chegou ao conhecimento de Alfredo Ekuikui e do Ministro do Interior, Osvaldo Serra Van-Dúnem, que determinaram criar uma comissão para investigar as pessoas. Quando concluíram sobre os culpados, como castigo foram transferidos para as províncias e colocados na ordem pública, assim como nunca mais poderiam exercer um cargo de responsabilidade dentro da investigação. Acontece, porém, que quando o ministro morreu, apareceu alguém a dizer que a droga tinha a ver com um poderoso no seio da Polícia e fizeram desaparecer estes documentos. Os camaradas que tinham sido transferidos regressaram para Luanda.

Por norma, qual é o procedimento dado às drogas apreendidas?

Deposita-se nas Finanças e depois de cumprir todas formalidades propõe-se ao Ministério Público a queima da mesma.

Diz-se que, normalmente, o que se queima é fuba e não a cocaína. É verdade?

Olha, isso não lhe posso confirmar porque nunca participei.

Quanto aufere um efectivo do departamento de combate ao narcotráfico?

Os salários são péssimos.

Diz-se que no mundo da droga estão envolvidos altas figuras, pessoas de reconhecido valor na sociedade, incluindo polícias, magistrados, jornalistas e músicos. Até que ponto isso é verdade?


É verdade eu já investiguei um juiz que estava envolvido em trafico de drogas e corrupção, já investiguei jornalistas e músicos.

Esse juiz continua no activo?

Sim, ele funciona no Tribunal Provincial de Luanda.

“Traficantes, disfarçados de empresários, estão a aproximar-se de famílias insuspeitas”

Podemos, então, considerar que o tráfico de drogas está infiltrado nos corredores do Estado?


É verdade, porque até famílias insuspeitas, ao mais alto nível, estão a ser alvo de aproximação dos traficantes, sob a capa de empresários. Em 2010 existiu um elemento identificado como Higino Duarte Delgado, falsificador de documentos. Fazia-se passar por advogado e, várias vezes, foi preso por tráfico de drogas. Houve informações segundo as quais ele estava para se aproximar de uma certa família. Este indivíduo hoje está preso no Brasil por tráfico de drogas, mas dizem que esta lá a estudar, o que não é verdade. Existe um outro altamente perigoso que pretendiam aproximá-lo de uma certa Tia bem posicionada, mas eu intervim dizendo que não poderiam fazer isso porque, a julgar pelo grau de perigosidade do mesmo, não seria bom, pois ele é traficante. Mas me disseram que eu era invejoso. Estes são pessoas que se juntam à essas famílias insuspeitas na perspectiva de fazerem negócios, mas o negócio deles verdadeiro é o tráfico. Muitos, quando são presos, alegam que são sócios de membros das tais famílias insuspeitas. Porém, existe um indivíduo traficante de drogas que actualmente trabalha com um dos membros dessas famílias. Ele ligou para mim, há tempos, com medo que eu o denunciasse porque ele já foi meu preso. Me ameaçou inclusive, mandou-me uma mensagem a dizer para não se meter com ele porque em tempos tirou da prisão dois sobrinhos de uma pessoa muito importante e, agora, tem poder para me matar e não sair nada porque está junto das tais famílias. Neste momento, ele suborna um juiz que tem soltado as pessoas com quem ele trabalha. O problema mais preocupante é de um traficante de droga que hoje está trabalhar no protocolo de uma alta instituição. Este indivíduo até mudou a sua identidade para lá chegar. Só espero que se tomem medidas em relação a este e outros casos. Se não, essas famílias vão arrepender-se por não terem acatado os meus conselhos.

Então é verdade que o tráfico de drogas atingiu níveis que, se pormenores mais obscuros vierem à tona, o país pode mesmo acordar muito mal no dia seguinte?
Quim Ribeiro não mentiu, apesar de ter exagerado. Mas garanto que a situação do tráfico de drogas no país é bastante preocupante e por isso é que existem mortes, raptos e envolvimento de altas figuras, como já disse antes.

Como foi possível ser condenado 14 anos de cadeia mesmo dizendo que não foi encontrado qualquer elemento de prova contra si, quem foi o seu advogado quando julgado?

Senhor jornalista, eu fui defendido pela doutora Luzia Sebastião, depois de não ter chegado a um consenso com o doutor Sérgio Raimundo, com o qual nunca tive problemas como muita gente anda aí a dizer. Quando contratei a doutora Luzia Sebastião, ela conseguiu convencer o Juiz Cícero a pedir a prisão do Bonzela. Curiosamente, uma semana antes do meu julgamento mandaram uma soltura vinda da DNIC em meu nome, mas com a minha idade, data de nascimento e nome da minha mãe trocados. Era falsa, pois a intenção era eu sair e eles considerarem que fugi e depois me matarem. Mas liguei para a minha advogada que me aconselhou a não sair. Já em tribunal, se não estou em erro, a doutora Luzia Sebastião fez-lhe apenas quatro perguntas. Uma das quais era por que me tinha mandado para aquele missão. Ele respondeu que já havia ouvido muitos cochichos de que eu não prestava. A seguir, a doutora disse-lhe que ele estava a querer dizer que arquitectaram tudo. Lá ele defendeu-se dizendo que eu era a única pessoa que lá estava. Depois, ainda lhe perguntaram se conversou ou não com o senhor branco e lá ele confessou que sim. Nos autos, segundo a doutora, ele que mandou o Da Silva por se tratar de um profissional obediente, humilde e por ser mesmo o melhor oficial. E ela perguntou: “o Da Silva é bandido ou é obedientemente demais que você até abusou da sua bondade?”. Lá ele respondeu que não estava em condições de responder a aquela pergunta. Mas o juiz disse-lhe que tinha que responder porque ele destruiu a minha reputação. Recordo-me também que a dado momento ele disse que era frequente o director da DNIC orientar o efectivo para desviar drogas a partir do Aeroporto Internacional, ao que o juiz questionou: “então você está a dizer que a DNIC é um Cartel de Medellín?”. Senhor jornalista, este julgamento foi público e as pessoas envolvidas ainda estão vivas e qualquer dúvida pode ser consultada. O juiz ainda disse que estava a acusar uma pessoa inocente. Mesmo assim, eu e o Bonzela fomos condenados a 14 anos de cadeia.

O meu primo major Quinhas apanhou dois anos e os outros dois meus colegas, isto é, o Serafim Coelho e o Martins Luciano foram absolvidos. Em consequência da minha condenação, o meu pai morreu. O nosso processo subiu para o Tribunal Supremo, onde o João Bonzela Franco foi absolvido e a minha pena reduzida para oito anos. Mas, espantosamente, o tribunal recusava em dar-me o acórdão alegando que eu o pretendia levar para a imprensa e depois mandaram-me para a cadeia do Bentiaba, alegando que eu estava a fazer muita confusão. Tudo isso para escamotearem o conteúdo do acórdão porque temiam que o levasse para a imprensa naquela altura.

Porque acha que queriam incriminar o Director Eduardo Octávio?

Era uma pessoa muito dura, exigente, quando existisse algum trabalho ele também participava, estava lá sempre. Havia processos que, para serem encerrados, ele tinha que apreciar. Para evitar isso, os chefes entregavam aos directores adjuntos porque se fosse com ele dava sempre uma outra alternativa de investigação. Ele nunca dava espaço nisso e por isso era um alvo a abater e pretendiam usar-me para atingi-lo.

Vocês tinham alguma relação especial com o director?

Sou natural de Benguela, quando fui transferido para Luanda, depois de ter passado por várias províncias, por falta de casa comecei a viver dentro mesmo da DNIC, onde tinha alguns quartos. Entretanto, em 1999 prendemos alguns indivíduos no aeroporto em posse de 12 quilos de cocaína e esses indivíduos viviam num apartamento na Mutamba que o transformaram numa espécie de escritório de marginais, numa espécie de base traficantes de drogas. Isto é, de processamento dos planos das drogas. Quando prendemos esses indivíduos, os restantes elementos do grupo fugiram da casa. Então, o Director Nacional, que era o doutor Octávio e

mais o antigo Procurador nosso, que era o Doutor Mota Liz, mandam-me fazer um trabalho naquela casa e, a posterior, mandam-me inquirir junto da junta da habitação para sabermos quem era o proprietário da casa. Para o nosso espanto, a casa não tinha nenhum registo e o director pediu que colocasse lá um efectivo com alguma experiência de controlo. Entretanto, decidiu que fosse eu a ir lá viver, primeiro, porque estava a viver sérias dificuldades de habitação e, segundo, por ser um profissional dedicado.

E ficou mesmo com a casa?

Tempos depois, o chefe Bonzela chegou dizendo-me que o director Octávio estava a precisar da casa e que eu tinha de a abandonar. Ainda tentei refilar, ao que me respondeu para fazer uma petição ao director. Foi o que fiz. Então, o director pediu um parecer ao meu chefe de departamento que era, justamente, o Bonzela. Ele respondeu negativamente, dizendo que não me deviam dar a casa porque eu era bandido, tinha trabalhado em Benguela de onde sai com problema, trabalhei no Namibe, de onde também saí com problemas. O director viu a aquele processo, mandou-me abandonar a casa imediatamente sob pena de me ser instaurado um processo e ir para cadeia. Arrumei as minhas coisas e fui viver em casa de um colega. Alguns meses depois, alguém fez uma petição para ficar com a casa. Mas o director, ao responder, disse para entregá-la ao oficial que já tinha manifestado tal intenção tendo em conta a sua dificuldade habitacional. Este foi o despacho do director Octávio. Então, o meu problema começou ali. A partir do momento que o director mandou entregar-me a casa, fui sendo visto como filho do Director Octávio. O que me irrita é que nunca falei com o director Octávio, nunca estive sentado com ele a conversar.

Correu, na altura, informação a respeito de um outro processo na DNIC a seu respeito. É verdade?


Há mais um pormenor importante que devo dizer. Depois de ter acesso ao acórdão do Tribunal Supremo, notei um ponto que dizia que eu já tive problemas na DNIC, por ter extorquido 9 mil dólares a um cidadão no aeroporto. Mas era uma pura mentira. Em 2001, quando o senhor Bonzela foi ao nosso departamento, eu me encontrava a trabalhar no Laboratório Central de Criminalística. Decorridos alguns meses, houve um documento que veio do gabinete do Comandante-Geral Alfredo Ekuikui, este processo se relacionava com um grupo de empresários libaneses e malianos que tiravam contentores no Porto sem pagar direitos alfandegários e alguns desses contentores traziam drogas. Nós já tínhamos domínio deste mecanismo. Este processo foi considerado ultra secreto. Repara que eu nem poderia deixar aquele processo, pois o levava para a minha casa e o entregava ao chefe do departamento. E este ia dar ao director do gabinete do director nacional. Em função das investigações que fui fazendo, num sexta-feira fui ter com o chefe Bonzela, alertando que além deste grupo existia um outro e que estávamos em condições de criar um flagrante para os mesmos. Uns vendiam drogas e outros faziam lavagem de dinheiro. Pedi uma orientação ao chefe, lá ele disse-me para trabalhar com homens que não faziam parte da DNIC, mas sim que arranjasse dois colegas da direcção provincial. Foi o que fiz, pois ordem é ordem. Entretanto, quando apanhamos o homem em flagrante, ele tinha uma mala que, segundo ele, continha tinha três mil dólares que estava disposto a dar-nos em troca da sua liberdade. Levei o homem até à DNIC, quando chegamos o Bonzela entrou com o ele no seu gabinete, onde ficam fechados por quase 45 minutos. Quando saiu, o cidadão começou dizer que na mala dele tinham já 9 mil dólares. Fizemos o que tínhamos que fazer, mandamos o homem para a cadeia.

Passados uns dias, o director Octávio foi para a África do Sul e o Bonzela chegou dizendo-me que tinha um mandado de captura contra mim, por eu ter extorquido 9 mil dólares ao cidadão João Tchivanja, natural do Lubango. Mas o procurador chamou o Bonzela, questionou sobre o que se passava porque não compreendia a minha detenção Valeu a intervenção de um mais velho que interveio e contou toda a verdade. Só assim escapei desta cilada. Note que tudo só acontecia na ausência do senhor Octávio. Em função desta situação até coloquei o meu lugar a disposição, mas ele me disse para não sair, mas eu disse que estava disponível para sair. Foi daí que me deram um mês de férias para reflectir e, quando regressei, aconteceu logo no meu primeiro dia de trabalho este caso que acabou por me levar para a cadeia.

Os traficantes sempre trazem drogas nos contentores?

Eu tinha vários processo em que empresários nacionais e estrangeiros traziam dez contentores e no manifesto apenas faziam constar três ou quatro porque entre os quais um trazia drogas no interior, quando pagavam eles pagavam três ou quatro mas retiravam dez. Assim, quando detectada a droga, ninguém saberia dizer de quem era a mercadoria e tudo isso fiz constar no meu relatório.

Era normal sempre que acontecesse situações do género vocês serem ouvidos pelo Futungo?


Aquela foi a primeira vez. Fui solto no dia 19 de Julho de 2009. Quando saí, os meus antigos colegas disseram-me para ter cuidado porque estava ser investigado pelo pessoal dos serviços de informação. Questionei a razão, uma vez que o Bonzela quando saiu da cadeia até voltou para a Polícia e ainda por cima estava a dirigir o departamento de crimes organizados. Pelo que me constou, dentro daquele departamento existiam duas pessoas também a lhe controlarem. Então, como gosto de tirar tudo a limpo, e como já sabia que o meu telefone estava grampeado, liguei para um traficante que era nosso informador e marquei um encontro com ele nas imediações do Cemitério Santana, quando estávamos a conversar vi que era verdade, porque eu também sou investigador e conheço todas ou algumas técnicas e tanto o serviços de informações como a DNIC concorrem para um único objectivo, isto é, defender os interesses do Estado. Me apercebi que enquanto conversámos indivíduos passavam junto de nós para ouvir o que conversávamos.

E isso era suficiente para acreditar que era seguido?

Para reconfirmar as minhas suspeitas, voltei a marcar um encontro com o mesmo traficante num dos restaurantes que fica junto da Rádio Nacional de Angola (RNA), quando conversamos voltei a dar conta que pessoas se aproximavam para ouvir a nossa conversa e não tive dúvidas de que estava ser seguido, mas não fiquei por aí, pois falei com dois colegas da DNIC a que nós chamamos de agentes duplos, aquele que trabalha para DNIC e para os serviços de informação e lhes disse que eu guardei 4 quilos de cocaína. Dias depois, eu saia do Prenda para ir até ao Nova Vida em casa de uma prima, a caminho da paragem para pegar o táxi noto que tinha uma jovem a me seguir, quando subo no táxi ela também soube, desci na paragem do Rocha Padaria ela também desceu, subo num outro táxi ela também subiu. Quando desci naquela paragem do Nova Vida para pegar um outro táxi que me levasse até aos prédios lá ela também estava a minha trás. Ao que lhe perguntei: “tu vais para onde?”. Ela me respondeu que iria para casa de uma irmã. Como os táxis estavam difícil comecei a caminhar, curiosamente ela decidiu caminhar mas ficou

sempre atrás numa distância de 20 ou 30 metros. De repente, entrei numa rua e parei, quando a vi ela a vir a correr como quem não podia perder o meu passo. Depois de tantas perseguições, entendi que tinha que escrever para os serviços, antes SINFO, agora SINSE. Lá enviei um documento a explicar os vários trabalhos em que participei durante o tempo que fiquei no departamento de controlo. Meses depois, isto já em Dezembro, eles me chamaram e disseram que, a julgar pelas minhas informações, eu tinha que ser ouvido porque eles não conseguiam entender como era possível a alguém que nunca exerceu um cargo de chefia ser lhe imputada tanta responsabilidade. Quando pensei que tudo tinha passado, afinal eles continuavam. ligavam para as pessoas que lidavam comigo, inclusive para uma senhora que, em Benguela, arrendou a casa dos meus pais. Tudo piorou quando cansado dessas e outras situações escrevi para o ministro Ngongo a dizer que se pretendiam saber de coisas passadas sobre o tráfico de drogas no país deveriam começar com as investigações nos próprios serviços. O ministro despachou para todos sectores da Polícia e chegou até aos homens do SINFO e foi aí que eles chatearam-se como se eu lhes tivesse tocado na ferida e pioraram a perseguição.

Consegue entender a razão pela qual está, segundo diz, a ser perseguido?

Todas essas possibilidades são válidas, assim como aqui o Bonzela diz que roubei processos delicados da DNIC, o resto não consigo entender. Fui para a cadeia, não abri a minha boca, perdi os meus pais não falei nada agora que estou a tentar recomeçar a minha vida é que me querem mais tramar, mas o que é que que eles querem comigo? Estou cansado, estou saturado dessa vida, pois me chamam todo o tipo de nomes.

Teme pela sua vida?

Olha, em 2010, quando eu vivia no Bairro Popular, um colega me disse para não dormir em casa porque pretendiam matar-me, como tinha como hábito correr de manhã cedo, um dia apareceu uma viatura Hyundai de cor azul, lá estavam 4 elementos armados, mas não fizeram nada porque a rua já estava muito movimentada. No ano a seguir foi o mais grave, quando eu ia sair de casa apareceu um Rav4 cinza. Eles ligam o carro e vêm em minha direcção, mas como faltou coordenação não conseguiram porque um abriu a porta e os outros gritavam fecha a porta, fecha porta e foram-se embora. Até hoje não sabemos quando é que já sou ou não doente, pois passei muito tempo na cadeia e às tantas não sei se já fui envenenado, até mulheres também já me mandaram.

Qual a sua intenção agora?

Quero paz, pois estou cansado das perseguições dos elementos do SINSE, eles devem parar de perseguir os Polícias, parar de criar intrigas junto da Polícia, pois senão qualquer dia vão prender o Comandante-geral ou mesmo o próprio Ministro do Interior.