Lisboa - O acidente de aviação que vitimou Samora Machel é desde há muito um “caso encerrado” em instituições internacionais que o acompanharam e investigaram. A soma de elementos verificados acerca do que aconteceu, como aconteceu e por que aconteceu, é vasta e esclarecedora. E foi por que ainda cedo adquiriram firmeza e coerência conclusões chave quanto às causas do acidente, que o caso há muito passou à categoria vitalícia de “encerrado”.

Fonte: Lusomonitor

ImageNegligências e imperícias de uma tripulação numerosa (comandante, co-piloto, navegador, rádio-operador e mecânico), agravadas por deficiente articulação entre o comandante e o navegador; mau estado da aeronave utilizada – foram estas as “causas directas e objectivas” do acidente. O resto entra no domínio das chamadas causas não determinantes (ou acessórias) e, pior ainda, da especulação

Às 05:00 da manhã, quando Samora Machel, vindo da sala do protocolo do aeroporto de Maputo, topou o avião destinado a levá-lo a si e à sua comitiva a Lusaca, teve uma exclamação ouvida por circunstantes que a reproduzem assim: “É este o avião em que vou?”. O avião era um TU 134A, que ostentava na cauda o emblema nacional e na fuselagem ao longo da cabina a inscrição República Popular de Moçambique. Não era o avião inicialmente previsto. Era, sim, um Boeing 737, da LAM, desviado à última hora para efectuar um voo de ida e volta à Beira, o que provavelmente era do conhecimento do Presidente.

A troca de aviões pode ter ocorrido por razões a que as circunstâncias e a pressão equivalente conferiam normalidade – entre as quais as necessidades de gestão de uma frota escassa e com problemas de operacionalidade. À luz de uma realidade desse tempo (a omnipresença activa do vasto aparelho da segurança em coisas relacionadas com a protecção do Presidente), o que terá sido anormal foi a aparente passividade ou ausência de cuidados com que a troca foi aceite.

Na antevéspera, o mesmo TU 134 A, com a mesma tripulação (só havia uma), tinha efectuado uma custosa aterragem em Pemba (precedida de dois borregos) e, logo a seguir, uma outra, muito defeituosa, em Mocímboa da Praia. O avião “saíu” da pista, numa das suas extremidades. “Lavrou” cerca de 300 metros em campo aberto, terraplanado, provocando uma nuvem de poeira que o encobriu completamente. Foi retirado por um tractos e com a ajuda de militares do sítio em que ficou imobilizado.

De acordo com um relatório contemporâneo sobre o assunto, o avião, que transportava uma delegação da ONU, fez uma escala em Pemba destinada a embarcar o governador de Cabo Delgado, ao tempo Alberto Chipande. Porventura mal impressionado com os borregos do avião na manobra de aterragem e talvez ainda psicologicamente afectado pela morte de sua esposa, poucos meses antes, num acidente com um Antonov 26, hesitou em embarcar.

O acidente em Mocímboa, em conformidade com normas internacionais, deveria ter dado lugar à suspensão da licença dos pilotos. Mas isso não só não aconteceu, como a própria aeronave não terá sido sujeita a nenhuma inspecção destinada a verificar se algum dos seus orgãos teria sido afectado. A ter havido uma causa indirecta do acidente, eventualmente potenciadora de uma das causas directas (o mau estado do avião), só pode ter sido esta. Por exemplo, há fundadas suspeitas de que o sistema de controlo e aviso de combustível da aeronave não estava a funcionar.

O mecânico de bordo foi um dos raros sobreviventes do acidente. Deveu isso ao facto de viajar na cauda do avião, parte do mesmo mais poupada no despenhamento. Era uma testemunha presencial do que se tinha passado. A outra, fisicamente distante, mas próxima devido a prodígios da técnica, era Sá Marques, o comandante do Boeing 737 que regressava da Beira, voando quase em linha com o avião presidencial que regressava a Maputo. Captou elucidativas comunicações entre as duas aeronaves e a torre em Maputo.

O piloto, ao que consta, foi sujeito a pressões, talvez mesmo a coacções, com o fim de o dissuadir de contar o que sabia e deduzia acerca das causas do acidente, tendo por base as comunicações que escutara. A sua versão distanciava-se em absoluto da que foi promovida. Acabou por deixar Moçambique, aparentemente sem vontade de falar no assunto. Um dia, o mecânico desapareceu do Hospital de Nelspruit, onde recuperava de lesões contraídas no acidente. Alguns dias antes tinha recebido a visita de uma delegação soviética. Calaram-se assim duas vozes habilitadas a reconstituir a tragédia em termos precisos.

Dois meses exactos depois do acidente, a chamada comunidade de Intelligence ocidental já tinha reunido dados suficientemente precisos para não dar cabimento a versões, então muito correntes, segundo as quais o regime então vigente na África do Sul estava implicado na queda do aparelho. Era, no fundo, uma versão considerada “oportunista”, ou seja, ditada por conveniências políticas e emocionais do momento.

Foi em 19 de Outubro de 1986 que o acidente ocorreu. De então para cá, os artigos de imprensa alusivos à efeméride, deixaram sempre transparecer dúvidas em relação às causas do acidente, quase sempre insinuando-se que o mesmo poderia ter sido devido a uma “covert action” do regime do apartheid. É provavelmente o que voltará a acontecer quando agora houver que evocar o acidente, por ocasião da passagem do seu 27º aniversário.

Ante tantas e tão concludentes evidências acerca do que verdadeiramente ocorreu, as especulações só podem obedecer a motivações, políticas e outras, não propriamente destinadas a esclarecer o que factualmente aconteceu, mas a confundir. Encontrar um bode expiatório para uma tragédia que objectivamente responsabiliza outros, não dispostos a arcar com o respectivo ónus, foi o que se pretendeu ao erigir o regime do apartheid em culpado. O non sense da artimanha seria iludido pela simples aceitação da ideia genérica de que um regime de tão má reputação seria capaz de tudo. Podia ser, mas, de facto, não tinha nenhum interesse naquele acidente.

Dois anos antes do desastre, Samora Machel e alguns dos que com ele morreram, Fernando Honwana e Aquino de Bragança, entre outros, haviam sido ousados protagonistas de uma política de aproximação e coexistência com o regime da África do Sul, que nunca quebraram. Fora uma política imposta por circunstâncias que à data correspondiam a interesses nacionais de Moçambique, mas serviu igualmente objectivos de distensão regional do regime da África do Sul. Que lógica ou racionalidade política levaria o apartheid a eliminar Samora Machel, ainda por cima fazendo cair o avião em território sul-africano?

O acidente ocorreu numa época em que a antiga URSS era ainda uma realidade viva e presente, com influências em Moçambique. Seria preciso esperar quatro anos para que se começasse a estiolar a ordem internacional à qual a URSS deveu a sua existência, como super-potência. Só depois veio a Rússia e outras novas nações que das ruinas soviéticas despontaram. Percebe-se que a URSS tenha recorrido (e recorreu!) a toda a sua capacidade de pressão e mesmo a acções ditas especiais para ocultar/distorcer as causas do acidente – tal era o embaraço que o mesmo para ela representou.

No quadro mental que era consabidamente o dos gerontes soviéticos, diverso dos russos de hoje, era difícil “encaixar” um acidente ocorrido com um avião de fabrico soviético, operado por uma tripulação soviética, cuja causa mais grave fora a morte de um dos mais populares e prestigiados líderes africanos, Samora Machel. Conforme mandavam os manuais de agit/prop, arranjou-se um bode expiatório na pessoa do “patinho feio” da comunidade internacional que era o odioso regime do apartheid, posto assim no centro de uma “conspiração”, agora erigida em causa do acidente. Apenas isso.