Luanda - Há bastante tempo não escrevo artigos para publicação em qualquer jornal privado. Digo privado porque no único jornal público existente no meu país, nele nem sequer me atrevo lá ir entregar o texto a publicar, pois correria logo o risco de ser vítima da pior humilhação, como a que passei quando em 2007 tive o atrevimento de lá ir mandar publicar um simples anúncio publicitário sobre a venda do meu primeiro livro – a NUVEN NEGRA – um Diário sobre os acontecimentos de 27 de Maio de 1977 por mim vividos, na carne e na alma, na companhia de mais jovens da época, que também tiveram a sorte madrasta de ter ido parar naquele Inferno, humilhação que forçou-me a intentar uma acção cível em tribunal, em defesa da minha dignidade que, felizmente, a juíza da causa julgou-a procedente.

Fonte: Club-k.net


Mas com a notícia que nas últimas semanas têm inundado os jornais sobre o bárbaro assassinato dos jovens activistas António Alves Kamulingue e Isaías Sebastião Kassule, já depois das redes sociais dela ter-se referido em primeira mão, obrigando a PGR apressada e deselegantemente vir a público com um comunicado cheio de ambiguidades, vi-me forçado a escrever este modesto artigo, num exercício que julgo ser um dever de cidadania, pois enquanto angolano tenho a obrigação de contribuir para a defesa da vida, da liberdade e da dignidade humana neste país que ajudei a libertar, e pelo qual muitos verdadeiros (não os falsos heróis) heróis, anónimos, derramaram seu sangue.

 

Reflectindo sobre este acontecimento que envolve agentes afectos aos Serviços de Inteligência de um país que se diz ser um Estado de Direito, de acordo com o que consagra o número 1 do artigo 2o da Constituição vigente, levanta-se a questão de saber se com tantas coisas que ultimamente se vêm assistindo e que agora culminaram com este hediondo crime, Angola pode mesmo considerar-se um verdadeiro Estado de Direito.

 

Andam por ai (sempre andaram) alguns indivíduos que se consideram «analistas políticos», com teorias assimiladas nos esgotos de universidades já falidas e ultrapassadas no tempo que, com o mero propósito de «apanharem» mais alguns dólares, têm o desplante de vir a público dizer tanta asneira que me escuso de comentar, porque entendo que, com esta estirpe de indivíduos, não se deve perder tempo, quando está em jogo a vida, a liberdade e a dignidade da pessoa humana numa determinada sociedade concreta, como é Angola.

 

Voltemos à análise da questão de saber se Angola é de facto um verdadeiro Estado de Direito, com toda a sorte de atropelos que se vêm assistindo com o culmino deste hediondo crime. E aqui somos obrigados a recorrer ao conceito de “Estado de Direito.”

 

 Habituei-me desde o tempo em que sacrificadamente estudei até a conclusão do curso de Direito a não ter o hábito de gratuitamente citar autores, com medo de cometer uma indesculpável omissão. Mas para a elaboração deste modesto texto e por uma questão de honestidade intelectual, sinto-me na obrigação de confessar que aparte substancial do conteúdo deste texto subtraí-o do trabalho da Professora Maria Benedita Urbano, da Universidade de Coimbra, na sua intervenção no I Congresso de Direito Constitucional Cabo-Verdiano, Lusófono e Comparado, organizado pelo Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, alusiva a comemoração do XX aniversário da Constituição de Cabo Verde que teve lugar na cidade da Praia, que no ponto 2 do referido trabalho, desenvolve de forma bastante clara o conceito de ESTADO DE DIREITO, o que é e como evoluiu.

 

Vejamos então o que diz esta brilhante cultora da ciência jurídica: “O conceito de Estado de Direito impôs-se na Europa continental a partir das revoluções liberais do século XVIII. De forma singela e bastante resumida, reduzindo ao máximo a complexidade do conceito e da realidade que lhe subjaz, diríamos que um Estado de Direito é um Estado limitado pelo direito, ao contrário do Estado absolutista, que aquele veio substituir, caracterizado por uma excessiva concentração de poderes numa só pessoa, o monarca, o qual estava acima do direito, que os latinos diziam que o monarca estava de legibus solutus, ou seja, não estava sujeito ao direito. Como é costume dizer-se, com a imposição do Estado de Direito passou-se de um governo de homens pelos homens para um governo de homens pelas leis. (sublinhado meu) ...Procurando sintetizar algumas ideias sobre o que é o Estado de Direito, poderíamos dizer, em primeiro lugar, que, de acordo com a concepção europeia continental, se trata de um Estado constitucional, isto é, que possui uma constituição e, mais do que isso, que reconhece a primazia a essa constituição.

 

...Em segundo lugar, há que chamar atenção para as várias dimensões do Estado de Direito. Com isto, o que se pretende dizer é que a limitação do Estado pelo direito pode e deve dar-se em vários domínios. Pode, então, falar-se num Estado de Direito formal e material e social. Vou apenas ater-me, como é óbvio, aos dois primeiros: o formal e o material. Em termos forçosamente sintéticos, poderá caracterizar-se o Estado de Direito formal como um Estado cuja organização e funcionamento obedecem a normas jurídicas, designadamente e fundamentalmente às normas constitucionais. Como princípios concretizadores desta dimensão formal temos, entre outros, o princípio da separação de poderes, o princípio da legalidade da Administração e o princípio da sujeição dos juízes à lei. Assim, um Estado que quer ser um (verdadeiro) Estado de Direito o poder não pode estar concentrado nas mãos de uma só pessoa ou de um só órgão. Além disso, a Administração não pode actuar sem uma credencial legislativa, por mais vaga que esta se apresente. De idêntico modo, os juízes devem decidir os casos com os quais são diariamente confrontados com base nas leis e não de acordo com as suas  convicções pessoais.

 

Mas essa dimensão formal é insuficiente para que possa classificar um país como verdadeiro Estado de Direito. A ela deve acrescentar-se uma dimensão material. De acordo com esta dimensão, o próprio conteúdo e a finalidade da actuação estadual devem ser informados pelo direito. Pelo que, um Estado que quer ser um Estado de Direito, para além das limitações jurídicas à sua organização e funcionamento, terá como finalidade máxima a criação de uma ordem estadual inspirada por valores como, entre muitos, a justiça, a dignidade da pessoa humana, a liberdade, e a igualdade para todos.

 

Como concretização desta dimensão material temos a consagrar, na generalidade das constituições, os direitos fundamentais, em particular das liberdades clássicas, como sejam: a liberdade de expressão, de manifestação, de pensamento, de circulação etc. etc.”..., E aqui reside o cerne da questão. Analisando com um mínimo de objectividade e honestidade intelectual tudo o que a Professora (não sou eu que digo) expõe na sua brilhante dissertação, cumpre questionar: Num país como é o nosso, onde os cidadãos não podem manifestar-se (excepto quando se trata de manifestação a favor do regime vigente) porque quando o pretendem fazer vem o Executivo da Província dizer (a asneira) que “não autoriza,” com o (falso) receio de que os manifestantes pretendem semear a desordem, ou, pior ainda, o caos, quando a Constituição e demais leis ordinárias legitimam que o cidadão possa se manifestar;

 

Num país como o nosso, onde os cidadãos são presos e muitas vezes julgados sem um mínimo de observância da lei respectiva; Num país como é o nosso, onde a imprensa pública televisiva, falada e escrita é de forma abusiva e descarada usada em benefício de um só partido que, por sinal, é o que governa o País; Num país como é ANGOLA, onde cidadãos indefesos são barbaramente assassinados pelo simples facto de pretenderem manifestar-se, este país pode considerar-se um verdadeiro Estado de Direito tal a luz do conceito que acabamos de analisar? cabe ao caro leitor responder.

Miguel Francisco “Michel”