Luanda - Muitos saberão a história da cegonha. Quantos de nós não terão já tentado compreender nos anos iniciais da vida terrena, como um pássaro pode trazer ao bico, o bebé da família. O conto encerra em si uma imagem linda, mas surreal, de um pássaro transportar no bico um ser humano de 2-4 quilos envolvido num pano branco limpo, macio e concerteza cheiroso, nada mais puro. Não se trata apenas da tentativa adulta de exercitar o imaginário infantil, tem se revelado no meio mais desesperado que algumas pessoas crescidas encontram para evitar embaraçar-se a si mesmas ao tentar explicar como de facto acontece a fecundação.


Fonte: Club-k.net


Há muito que faço a pergunta inversa: como nasce uma cegonha? E, apesar de me acomodar na preguiça do conhecimento convencional, tenho a firme certeza que tudo começa com a fecundação entre macho e fêmea, a formação dos avos, o período de choca e o nascimento das cegonhazinhas. Jamais acompanhei tal processo, mas deve ser lindo e de profundo aprendizado, como qualquer nascimento de seres vivos. É disso que trata o presente artigo, o nascer de discussões socais, jurídicas, políticas sobre reprodução humana em Angola. Entretanto, não serão conversas de biologia, tão pouco de fábulas "fecundas".


O conceber, ou o dar a luz, é um acto que envolve mais de um sujeito, em todas as fases, daí que com este artigo, queremos iniciar e incitar o que pensamos ser as primeiras discussões sobre o tema: direitos materno e reprodutivos em Angola.


A expressão é, a meu ver, incorrecta, já que literalmente, encerra em si, ao menos no adjectivo "materno", o entendimento de que se tratam apenas de direitos das mulheres ou para as mulheres, a quem naturalmente Deus dotou de grande parte de condições biológicas para a gestação. Entretanto a reprodução é um acto que inicialmente envolve seres de sexo diferentes, num processo faseado por etapas fundamentais para à vida tanto da mulher, quanto para do homem envolvidos, como para a vida pública e social de um povo, tal como demonstra já a questão do aborto. Há política na questão da reprodução, assim como existem questões jurídicas, económicas, religiosas e culturais a esclarecer, no entanto, o nosso foco serão as vertentes jurídica e social, não deixando de atentar para assuntos transversais.

Por direitos materno-reprodutivos entendem-se faculdades, poderes, e atribuições que as leis concedem as pessoas para gozar plenamente e dignamente da maternidade e da reprodução, estão ligados a vários direitos fundamentais. O uso propositado da palavra "digna" serve para explicar que se tratam de direitos humanos, constitucionais, de natureza civilista e social tão essenciais ( quiçá mais até) quanto o direito à vida, habitação, educação ou trabalho.

E já que puxei a brasa para a minha sardinha, veja-se que do ponto de vista interno, o quadro jurídico em Angola fundamenta-se bastante na constituição (CRA), no código civil, e no código da família ( embora esse último faça parte daquele, sistematicamente falando). As normas constitucionais como o direito à vida ( art. 30o), direito à privacidade e a intimidade (art. 32.o), direito à família e a filiação (art. 35.o), saúde e a protecção social (art. 77o) ajudam a melhorar o conteúdo jurídico da formulação inicial, não existindo qualquer norma especifica na CRA sobre direitos materno-reprodutivos, até porque a questão da reprodução não está suficientemente socializada.

É preciso esclarecer que apesar de aqueles direitos fazerem parte do conjunto de direitos fundamentais ou humanos, há uma linha diferencial entre o "direito" à saúde e protecção social e os restantes direitos. Aquele é um direito constitucional de natureza fundamental, de dimensão social, os restantes são igualmente constitucionais, de natureza fundamental, com dimensão individual, ou, como lhes chamam os estudiosos da ciência jurídica ( e essa foi a preferência da nossa constituição): "direitos, liberdades e garantias". Temos então o que ao nível da sistemática e da história dos direitos humanos ficou organizado em dois pactos internacionais, o dos direitos civis e políticos (PIDCP), mais ligados aos direitos, liberdades e garantias, e o
pacto dos direitos económicos, sociais e culturais (PIDESC), ligados aos direitos sociais e outros.

Debate-se ainda, nalguns círculos académicos, se o que chamamos aqui de distinção entre ambos é antes uma linha divisória entre direitos humanos diferentes, ou se, todos os direitos humanos pertencem ao mesmo a um grupo coeso e homogéneo. Alinhamos na teoria da indivisibilidade, mas defendemos a heterogeneidade dos direitos humanos, note-se, por exemplo, que o direito à vida tem natureza individual, mas comporta dimensões sociais e económicas com grandes e sérias implicações públicas e sociais, e que o que o Estado empreende para defender à vida, deve faze-lo para defender a saúde humana, entretanto convenhamos, que num e noutro caso, recorrerá a instrumentos distintos, mesmo que concorram para fim igual. Por outra, há uma clara interligação e interdependência entre os direitos assim como entre os sistemas sociais. Aqui reside o desafio, já que a distinção entre o que é público e o que é privado, pode iluminar, por exemplo, a compreensão se devem os médicos nos hospitais públicos e privados angolanos administrar um método contraceptivo à uma mulher, sem o seu consentimento, em resultado de um certo diagnóstico, e de uma determinada política.

O mesmo é dizer que, engravidar pode ser uma decisão do casal, mas a garantia de que a gravidez decorra em condições saudáveis e seguras é responsabilidade do casal e do Estado. Cada um dos sujeitos intervém em fases distintas, mas importantes. Por exemplo é fundamental que a mãe se mantenha saudável, vá ao médico, não beba álcool durante a gravidez, tenha uma alimentação correcta, descanse o suficiente e não se exponha a situações que ponham em risco à vida do bebé; o homem, esposo ou companheiro, por sua vez, tem o dever de assistir, cooperar e participar em todos os momentos da gravidez, acompanhando à mulher ao médico, realizando às suas tarefas domésticas e às da mulher, se possível, em alívio a gestante, participar do processo de tomada de decisão da escolha do hospital, do médico, dos tratamentos etc.; já o Estado deve criar condições para que todos essas obrigações sejam possíveis, como construir hospitais, contratar médicos obstetras, ginecologistas, enfermeiras, parteiras etc., prover condições para que as famílias obtenham recursos financeiros para que , por conta própria consigam do mercado ou do Estado todos os meios necessários nesta fase.

Existes então os chamados direitos principais, tão importantes que sem os quais não é possível falar-se de maternidade ou de reprodução, como existem direitos secundários, não tão essenciais, mas complementares. O reverso da moeda são os deveres, as responsabilidades e as obrigações, embora ao nível do direito existem diferenças conceptuais entre uns e outros, aqui os aplico indistintamente.

Facto é que para alguns angolanos, assim como para o Estado, a gestação é um tema muito marginal, e muito da responsabilidade da mulher, a gestante. Embora exista uma politica para a redução da mortalidade-materno infantil, não vemos um programa governamental de assistência à maternidade para famílias desfavorecidas. Todo angolano tem o direito de constituir família, e o Estado deve ser o primeiro a cumprir com esta determinação constitucional, agindo no sentido positivo, promovendo condições para o efeito, e actuando no sentido negativo impedindo limitações e obstruções à realização de tal direito. As obrigações de facere e de non facere são elas mesmas a expressão constitucional de um comportamento do Estado, que nalguns momentos é chamado a acção positiva e noutras vezes à acção negativa. O percurso neste entendimento tem ainda de enfrentar os condicionalismos das reservas financeiras, das escolhas orçamentais, dos investimentos públicos, da transparência, da distribuição orçamental e da gestão hospitalar.

Para além dos problemas do Estado, existem também os problemas com a irresponsabilidade de homens, que de grande só parecem ter às calças, pois ainda se furtam a assumir as consequências da sua participação numa gravidez, vemos também mulheres a agirem negligentemente em relação a si e aos seus filhos, e mais uma vez, vivemos ainda num Estado que se limita a fazer discursos para inglês ver, onde todas estas makas são deixadas a mercê da impotência e da inoperância de vários órgãos. Portanto é preciso que cada um e todos façam mais pelo país, é necessário um sistema público de protecção à família, melhor acompanhamento e assistência à gestante, para que exista, sobre esta questão, um sistema de assistência social realmente eficaz. Mas, apesar de o cenário ser ainda de poucas luzes, continuamos à espera que essa primavera nos traga muitas cegonhas.


Margareth Nangacovie, jornalista e mestre em direitos humanos.

O referido artigo surge no âmbito do projecto de monitoria dos direitos materno-reprodutivos da Fundação Open Society