Luanda – Em sede dos diplomas normativos há uma diversidade de legislações cujas denominações estão associadas às formas dos actos dos órgãos que as produzem. Mas a natureza jurídica do regimento é sempre objecto de inúmeras contradições quando se procura fazer o seu enquadramento numa categoria legislativa.

Fonte: Club-k.net
Atente-se aqui ao facto de que não está em causa a forma legal de que se reveste o regimento, muito menos o órgão que pratica o acto. Em respeito disso, o regimento pode ser considerado uma resolução como prevê a Constituição portuguesa, uma lei orgânica como consagra o texto constitucional angolano ou uma fonte normativa autónoma de regulamentação do procedimento legislativo, conforme postula a Lei Magna do Estado federal brasileiro.

No entanto, interessa-nos identificar a categoria do regimento no manancial de normas. Estará o regimento numa categoria de lei constitucional, orgânica, ordinária, decreto-lei, decreto-presidencial, despacho ou resolução?

A importância analítica desta questão tem merecido a atenção de várias doutrinas contraditórias, ao ponto de as respostas ainda estarem no centro de reflexões académicas, pelo que tentaremos considerar em seguida a melhor solução de estudo contínuo.

Para melhor compreendermos o fenómeno, importa clarificar que natureza jurídica tem que ver com o padrão ou o leque de nuances que identificam algo como sendo de uma categoria ou espécie.

Assim, na esteira do pensamento do Dr. Jorge Miranda, podemos definir o regimento como corpo de normas relativas à organização e funcionamento interno de órgãos colegiais (assembleias, conselhos, comissões) ou de certas instituições ou pessoas colectivas.

O regimento é um diploma de carácter meramente técnico e político, pois dele depende a liberdade de acção dos membros do Parlamento (ex. uso da palavra) e a realização do princípio representativo desse mesmo Parlamento (ex. publicidade das deliberações). Portanto, podemos concluir que o regimento reflecte o sistema de Governo, as tradições e a vida institucional do Parlamento.

Em países onde a vida política gira em torno do parlamento, o regimento tem uma dimensão normativa, sociológica e valorativa. Esta observação enquadra-se na realidade inglesa, suíça, espanhola ou portuguesa.

Porém, noutros Estados existe o que os estudos contemporâneos sobre a matéria consideram, por um lado, o regimento do tipo inglês, que resulta de normas de usos, convenções, costume e leis emanados da actividade parlamentar, e, por outro lado, o regimento do tipo continental que nasce de per si como “Código Parlamentar”.

O regimento continental subdivide-se em: latino e nórdico. No primeiro, o texto regimental provém do poder de auto-normação dos Parlamentos, ao passo que no segundo, como é o caso de Angola, Suécia e Finlândia, tais regimentos são leis “constitucionais” ou orgânicas.
 
Não obstante a importância da vasta parte histórica sobre o regimento, o nosso recuo ao passado vai remontar apenas às monarquias constitucionais e aos regimes conservadores do séc. XIX (forma política semi-parlamentar), período durante o qual o rei elaborava os regulamentos dos parlamentos, limitando, desta forma, o seu conteúdo.

Nas monocracias, as normas de organização e funcionamento eram elaboradas por entidades extraparlamentares, como acontecia na época do nacional-socialismo alemão, por exemplo.

Como podemos verificar, o regimento faz parte do Direito Parlamentar. E conta a história britânica que, em 1265, foi Simón Montfort quem dinamizou o fenómeno parlamentar no Ocidente europeu, ao reunir pela primeira vez o Parlamento inglês após a vitória na batalha de Lewes contra Henrique III.

Depois da França, em 1789, com a constituição dos Estados Gerais e as observações de Benoist e Lacretelle sobre a organização e funcionamento da Assembleia Revolucionária, seguiu-se a Espanha, em 1812, com novas experiências no âmbito do direito parlamentar.

Nesta fase, a discussão sobre quem elaboraria o regimento também estava no centro de reflexão dos jurisconsultos. O britânico Edward Coke defendia ser uma competência do Tribunal de Justiça. Na França, as doutrinas "roussonianas" atribuem tal competência à expressão formal do próprio “pacto social”.

Contrariando estas, surge Siéyés com o argumento de que uma assembleia não podia receber normas de fontes estranhas. Somente mais tarde, no período das monarquias limitadas, passou a prevalecer o princípio da auto-regulamentação do parlamento, reforçado pela teoria da divisão de poderes de Montesquieu, para quem, a autonomia parlamentar seria necessária para se assegurar o equilíbrio político.
 
AS MAIORES DOUTRINAS CONTRADITÓRIAS E A SOLUÇÃO DE ESTUDO CONTÍNUO

Para uma melhor descrição das doutrinas, importa dividi-las em Teses Unitária e Dualistas. O destaque da doutrina unitária reside no facto de atribuir ao regimento uma eficácia interna e externa. Ou seja, o referido diploma normativo produz efeitos sobre os deputados, funcionários e entidades extra-parlamentar.

Uma segunda doutrina denominada Norma Interna não Jurídica, de 1906, cuja autoria atribui-se a Santi Romano, não reconhece relevância jurídica ao regimento. O autor desconsidera o regimento como fonte de direito e alega que não emana de nenhum poder soberano e não têm as características da norma jurídica, como a generalidade ou abstracção.

No entanto, esta teoria, que só se aplica na monocracia dos séculos passados, peca não só por não observar a totalidade das características normativas do regimento, como não previu a realidade que consagra hoje os Parlamentos como órgãos constitucionais e titulares de soberania.

Em 1917, Poudra e Pierre, Brunialti, Esmei, Romano defenderam a teoria da Norma Interna Jurídica e defenderem a juridicidade das normas do regimento. Contudo, tal teoria não escapa a críticas, porquanto a Constituição não define o regimento como tal, assim como algumas normas que a compõem não têm eficácia jurídica.

Soma de Resoluções: esta é uma das teorias internística pela qual, Julius Hastechek, Maurice Hauriou e Barthémely e Duez reduziram o regimento a meras regras convencionais, como o costume, tornando-o obrigatório apenas quando transformado em norma consuetudinária.

Vista ao fundo a questão, diremos que se trata de uma teoria associada à classificação britânica do regimento, e não continental, como já nos tínhamos referido.

Por força disso, tal teoria censura a imperatividade da publicação do regimento. Ou seja, a promulgação não é um elemento constitutivo da norma: só a aperfeiçoa, é um trâmite de controlo. Mais adiante, surge a Teoria do Regulamento Técnico. Esta encara o regimento como regulamento em sentido técnico, de Direito Administrativo.

Apesar de rebuscada, esta concepção de Mohl e Pérez Serrano afigura-se incorrecta na medida em que não podemos atribuir a uma assembleia o carácter de órgão da administração pública, muito menos relacionar os processos de criação normativa e os campos de aplicação com os efeitos do regimento, leis e regulamentos.

Ao olharmos para a extensa lista doutrinária da tese unitária, ressaltam ainda à vista a teoria da Norma Reservatória, Exclusiva e Total, Norma Interposta (parâmetro da constitucionalidade), Norma “sui generis”, Teoria da Norma Estatutária, apenas para citar estas.

Do outro lado da fronteira da doutrina unitária, existem as teses dualistas, às quais atribui-se a autoria de reconhecer ao regimento um sentido de normas com natureza diversa. Não sendo de menor relevância o resto das teorias dualistas, elegemos apenas a mais citada: Norma Mista: “interna” e “externa corporis”.

A importância desta teoria resulta, primeiro, do facto de analisar o regimento como conjunto de normas jurídicas, fixando-se na sua natureza e na sua ligação à constituição.

Em segundo lugar, considera o regimento como normas reguladoras de relações entre membros parlamentares e com quem estes se relacionam. Por último, o encara o regimento como normas que visam a auto-organização interna do parlamento (não jurídicas).

Os reparos a esta teoria convergem nas críticas já apresentadas, tanto quanto se afirma que atribuir ao regimento uma vertente interpretativa difusa torna a identificação da natureza do regimento ainda mais difícil.

Qual seria, após toda esta análise, a natureza jurídica do regimento? Para respondermos à questão, importa recuarmos à Tese Unitária e debruçarmo-nos sobre a teoria da Norma “sui generis”. O constitucionalista Jorge Miranda considera, em defesa desta teoria, que o regimento é uma verdadeira regra jurídica, obrigatória e sancionatória, determinando a sua preterição uma irregularidade formal.

O professor catedrático admite que o regimento não é lei no sentido geral, pois não tem como destinatários directos os cidadãos, nem precisa de promulgação. Mas também não é regulamento ou resolução, pois trata-se, sem dúvida, de um acto normativo que, de alguma forma, se impõe às leis, regulando parcialmente o seu processo de criação.

A teoria da Norma “sui generis” tenta resolver a concorrência entre as fontes através do princípio da preferência do regimento ou suplectividade da lei ou, ainda, flexibilidade desta última em caso de conflito.

A crítica que fazemos, segunda a qual a diferente forma de aprovação da lei e do regimento não permite tal fungibilidade entre elas, é imediatamente refutável se termos em linha de conta que não se pode equiparar a eficácia das fontes das leis através de coincidências ou não de momentos procedimentais.

Assim sendo, se a natureza do regimento é uma norma “sui generis”, ou seja, que não se enquadra em nenhuma categoria de que se revestem as formas dos actos normativos da Assembleia Nacional, ou da República, Parlamentos ou Congresso, não é menos verdade que a reflexão em torno do assunto aspira o surgimento de futuras doutrinas.   
 
Bibliografia
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in Revista de las Cortes Generales, n.º 6
 
*Mestrando em Ciências jurídico-política