Luanda - Angola ao implementar os postulados constitucionais sobre as autarquias locais (artigos 213 a 222, CRA) deveria aprender as lições e com os erros cometidos por outros países, nomeadamente em Moçambique, um país cujas instituições de administração local do Estado são parecidas as de Angola. Uma boa parte da explicação do descalabro que se observa em Moçambique hoje encontra-se nos problemas da governação local.

Fonte: Club-k.net

Os problemas de Moçambique têm, em boa parte, a ver com o problema do “gradualismo”, ou seja, à implementação gradual das autarquias. Primeiro, o “gradualismo” perpetuou a distinção histórica entre os cidadãos urbanos e rurais, em que os primeiros puderam eleger o seu governo local e pedir-lhes contas, enquanto os segundos não. Segundo, provocou uma bifurcação do Estado que implicou dois sistemas de governação local, muito diferentes, mas ambos excessivamente partidarizados e ambos sem a importância e a seriedade que se requer para desenvolver uma governação local desenvolvimentista. Terceiro, a reforma gradual favoreceu o controlo do partido do poder central (a Frelimo), e motivou o desinteresse da oposição (a Renamo, principalmente) pelas instituições de governação local.

 

Angola vai implantar as autarquias e realizar eleições autárquicas, pela primeira vez, em breve, fazendo fé nas palavras do Presidente da República angolano que considerou, no seu recente discurso sobre “o estado da Nação”, que “nas actuais condições é inquestionável a importância da institucionalização do poder autárquico”. Daí que haja da parte do Executivo, segundo o Presidente da Republica, “várias iniciativas, com vista a contribuir para a definição das políticas públicas relativas à administração local e autárquica e a criar as condições para apoiar a sua implementação”, não sendo, por isto estranho o debate público sobre as instituições autárquicas e o processo da sua introdução. Vários temas fazem objecto desse debate, sendo os mais importantes a questão do grau das competências a atribuir às autarquias e o modo e grau de realização das eleições autárquicas. Duas questões que podem ser resumidas à questão do gradualismo (geográfico ou funcional) previsto na respectiva disposição transitória (artigo 242º) da Constituição angolana.

 

Nesta série de três artigos, dois versam sobre a experiência de Moçambique, servindo esta de pano de fundo para discutir as reformas a implementar em Angola, no terceiro artigo que vai dar relevo a algumas opções para a introdução das autarquias em Angola, com a intenção de tirar lições dos problemas vivenciados em Moçambique.

 

Autarquias e continuidade hegemónica

 

Em Moçambique, quando o governo da Frelimo assinou o Acordo Geral de Paz, com a Renamo, em 1992, a descentralização fazia parte da agenda política. Nessa altura, Afonso Dhlakama, o líder da guerrilha, certamente esperava que a paz lhe iria garantir, senão todo, pelo menos, uma boa parcela do poder: uns ministérios, uns tantos governos provinciais ou presidências das autarquias locais.

 

Nunca foi assim, apesar da Renamo ter obtido, nas primeiras eleições gerais, em 1994, 38 % dos votos, devido à sua forte implantação nas zonas rurais, do centro e norte, do país, contra os 44% da Frelimo que continuava forte no sul e nas cidades. Esta sua força eleitoral nunca se traduziu em voto local, porque antes mesmo da realização das primeiras eleições locais, a Frelimo, em 1996, tomou a iniciativa de declarar inconstitucional a Lei da Descentralização (Lei 3/94) que atribuía aos distritos (o equivalente aos municípios, em Angola) o estatuto de autarquias e dispunha que, quer a assembleia autárquica, quer o seu executivo, seriam eleitos, em sufrágio local. Isto porque, ao olhar para a geografia eleitoral saída das eleições gerais, facilmente se percebia que a Renamo, ao ser força maioritária em mais do que metade dos distritos rurais, teria garantido, em futuras eleições autárquicas, o governo dessas respectivas autarquias.

 

Então, perante este quadro que evidenciava a capacidade da Renamo para captar o voto maioritário das zonas rurais, a Frelimo, depois da declaração de inconstitucionalidade tomou a iniciativa da aprovação de uma nova Lei da Descentralização (Lei 2/97) para a instalação das autarquias. Esta nova lei estabeleceu o princípio de “introdução gradual” das autarquias, segundo a ideia de que as cidades, vilas e “povoações” somente poderiam constituir-se em autarquias, desde que atingissem um determinado nível de desenvolvimento socioeconómico. Aparentemente, a Renamo não se apercebeu do que estava em curso, pois não se opôs com força e determinação a esta lei. Neste mesmo ano, foram criadas 33 autarquias, das quais 23 nas cidades e 10 em vilas, uma por cada uma das províncias do país.

 

Em Julho de 1998, foram realizadas as primeiras eleições autárquicas mas estas correram mal. A Renamo, já consciente de que “o gradualismo” lhe tirava a sua principal vantagem que era o voto rural, alegou fraude e recorreu à táctica do boicote. A participação eleitoral ficou a menos de 15% dos eleitores. A Frelimo, quase sem oposição, salvo alguns representantes de pequenos partidos e coligações, ganhou estas eleições, em todas essas 33 autarquias. O primeiro mandato de 1998-2003 foi caracterizado pela luta pelo estabelecimento da administração autárquica e das modalidades de cooperação entre a assembleia autárquica e o seu executivo, gerando muitos conflitos no interior da própria Frelimo.

 

Nesta situação, Afonso Dhlakama redobrou a sua atenção em relação as eleições legislativa e presidencial, de 1999. Desta vez a Renamo aumentou o seu score eleitoral para 39% dos votos e Dhlakama obteve 48% dos votos contra 52% de Joaquim Chissano, candidato da Frelimo, para a eleição do Presidente da República. Mais uma vez Dhlakama alegou fraude (no que foi, posteriormente, seguido por muitos) recusou-se a reconhecer o novo governo da Frelimo e convocou manifestações de protesto, no país inteiro, reivindicando a nomeação de governadores da Renamo nas províncias (a maioria) em que a Renamo obteve mais votos do que a Frelimo, em troca desse reconhecimento. Joaquim Chissano ignorou-o e as manifestações foram esmagadas manu militari pela polícia de choque. De novo, a Renamo ficou sem nada.

 

Nas eleições autárquicas de 2003, a Renamo obteve a maioria em cinco autarquias, inclusive em grandes cidades como a Beira e Nacala. A presidência da autarquia da Beira foi o trampolim para a afirmação da liderança de Deviz Simango, que acabou por romper com a Renamo e fundou o MDM, o que se traduziu também num certo debilitar político da Renamo.

 

Em 2008, o número de autarquias, com a inclusão de mais 10 vilas, estendeu-se a 43 localidades. Ainda assim, quase a totalidade do território nacional e talvez dois terços da população continuava sob a administração dos órgãos locais do Estado central, e esta foi mantendo, em grande medida, a situação de controlo da Frelimo e do partido-Estado instaurado com a proclamação da independência (1975), negando à população das zonas rurais a possibilidade de eleger os seus representantes e não lhes prestando contas.

 

Este ano o número de autarquias subiu para 53, mas não alterou propriamente o controlo hegemónico do território e da população por parte do partido de poder (a Frelimo) porquanto as novas localidades que foi implementado o estatuto de autarquia, são cada vez mais pequenas e cada vez menos densamente povoadas. Sendo assim, ao ritmo de “gradualismo” observado, o dia da institucionalização universal das autarquias, nas zonas rurais, parece estar num futuro muito distante, continuando a legislação moçambicana a consolidar a separação administrativa dos cidadãos rurais e urbanos. A mesma separação cidade/campo que foi um instrumento fulcral da dominação colonial.

 

Em consequência desta política de “gradualismo”, determinada por interesses partidários, instalou-se, em Moçambique, um Estado bifurcado que não é muito propenso para o desenvolvimento equilibrado. É sobre isto que vamos falar no próximo artigo.