Luanda - A peça que publicámos nesta edição sobre as manigâncias por que está a passar a dona Adelina Calado num conflito jurídico de sucessão de bens, entre os quais a casa onde ela vivia, adquirida na companhia do seu agora falecido parceiro com quem viveu ininterruptamente durante 31 anos, ganhou novos contornos, mais sombrios, quando a Juíza da causa, da 3.ª Secção do Cível Administrativo, talvez mal influenciada e sem ter analisado bem os contornos do burilado processo, decidiu, antes de fazer a partilha, ordenar o despejo dessa cidadã e entregar a referida casa a uma outra mulher, que se apresenta como viúva, mas que não vivia com o de cujus há mais de 40 anos.

Fonte: Folha8

É o direito positivo no auge da sua bestialidade, mandando às urtigas o costume, enquanto fonte de direito, para além de uma imparcial interpretação da norma, indiciando uma certa parcialidade e exclusão de herdeiros.

A casa foi adquirida conjuntamente por Adelina Calado e o "de cujus" seu parceiro, que sempre ostentou documentos com o estado civil de solteiro, inclusive os que estão nos autos, o que não impede, qualquer leigo em direito em considerar Adelina Calado, como terceira de boa-fé, o que implica não poder ser de modo algum penalizada, beneficiando e enriquecendo alguém sem justa causa.

O mais grave é o facto de a juíza e o procurador estarem a tomar partido, pois vão colocar uma família na rua dando à outra, no cômputo final, duas casas, quando, caricatamente, do outro lado também existem herdeiros com iguais direitos. Mas vejamos de mais perto o que se está a passar a fim de apurar se a juíza está a aplicar a lei, levando em conta o contexto, ou a criminalizar a própria lei...

O processo judicial aqui em análise retrata, como supra mencionado, uma vulgar querela entre herdeiros, que, sem fugir à regra do inevitável acréscimo da ganância, aqui como quase sempre, proporcional ao valor dos montantes monetários, bens imobiliários e outros que se encontram em jogo.

Adelina Calado, ainda intentou a união de facto "pos mortium", regime que visa proteger as pessoas que vivam em economia comum há mais de dois anos. A união de facto só poderá ser reconhecida após o decurso de três anos de coabitação consecutiva e quando se verifiquem os pressupostos legais para celebração do casamento, designadamente quanto a singularidade e capacidade matrimonial.

Ora com base na singularidade atestada no BI do "de cujus" intentou a acção a juíza em posse de outro dado deveria explicar a situação, mas dando provimento a outro pedido, pois diante do quadro legal ela, pode ser considerada meeira e a detentora de parte do imóvel habitacional, pois os seus direitos não podem ser encurtados, quando ela e o "de cujus" Eram um casal assumido, mas sem serem casados.

Mesmo em Portugal, onde muitos juízes se inspiram também é assim desde 2006, sendo-lhes reservado direitos adicionais entre os quais destacamos um que se insere neste caso da dona Adelina Calado, «Protecção da casa de morada de família em caso de falecimento de um dos unidos - em caso de morte do proprietário ou arrendatário da casa, o companheiro/a tem preferência na compra ou continuação do arrendamento durante cinco anos ou período superior, na eventualidade de a união de facto se ter prolongado por período maior que 5 anos», mas ainda, «Protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da Lei.

No Brasil a união de facto, entre duas pessoas que não têm impedimento de se casarem, recebe o nome de "união estável", regulamentando a convivência entre duas pessoas sem que seja oficializado o casamento civil. Note-se que a união de facto, ao contrário do casamento, não tem de ser reconhecida oficialmente pelas duas pessoas para ter efeitos legais: as protecções na lei são aplicáveis por defeito a qualquer união a partir do momento que se cumpram dois anos de vida comum.

No entanto esta convivência factual é tratada de duas formas: união estável, quando duas pessoas convivem sem que haja impedimento de se casarem (artigos 1.723 a 1.726 do Código Civil) e o concubinato, quando homem e mulher têm relações não eventuais mas ao menos um deles é impedido de casar

O novo Código Civil Brasileiro (Lei n. 10.406 de 10 de Janeiro de 2002) aplainou as arestas restantes do instituto da união estável tornando-a um sucedâneo muito semelhante ao casamento civil, a ela aplicáveis quase todas as normas do direito de família. Por outro lado, o concubinato é inferior à união estável.

O que diz o Código Civil de Angola

O nosso Código Civil faz menção alargada ao “negócio jurídico” que, na sua definição, é a união de facto, esclarecendo de entrada que, quando devidamente reconhecida, produz os efeitos jurídicos de um casamento. De acordo com o seu artigo 112º, a união de facto consiste no estabelecimento voluntário de vida em comum entre um homem e uma mulher, que, por razões diversas, decidem voluntariamente, sem necessariamente passar pelo acto do casamento.

O problema é que muitas são as vezes em que tal relação é estabelecida com total inobservância aos requisitos legais, consequentemente a relação não produz os efeitos jurídicos que a união de facto acarreta. Nessa caso de figura a “união de facto” acarreta, sim, a ineficácia jurídica pois na sua formação faltou alguns dos seus elementos essenciais estabelecidos por lei, consequentemente os direitos que a lei confere às partes (homem ou mulher) nestas circunstâncias não serão totais, visto que a relação não estava dentro dos trâmites estabelecidos por lei.

No que concerne a legislação Angolana, a eficácia deste acto ou negócio jurídico (União de Facto) carece dos pressupostos legais estabelecidos no artigo 113º do código civil e do Código de Família.

Segundo a analista Cátia Simão, «surge então a importância para os casais em regime de união de facto obedecerem à forma legal deste acto, de maneira a verem as suas relações e os direitos daí advindos devidamente reconhecidos, evitando assim a ineficácia da relação em sentido restrito perante a nossa legislação».

Mas a ineficácia em sentido restrito não é invalidade ou inexistência jurídica do acto, porque, perante a legislação Angolana no artigo 113º 2) do código civil, caso a união de facto não possa ser reconhecida por falta dos pressupostos legais, ela será atendida para além dos casos previstos nesta lei, designadamente para o efeito de partilha de bens comuns e para atribuição do direito a residência comum. O que significa que embora a união de facto se encontre estabelecida fora dos trâmites da lei será válida para tais efeitos, não obstante os efeitos jurídicos pretendidos carecerem de validade na sua totalidade.

Referindo-nos de novo a Cátia Simão, surge então a questão: vale a pena validar a união de facto perante a lei, se para o efeito de partilha de bens comuns e para atribuição do direito a residência comum a lei atenderá, mesmo que a união não esteja devidamente legalizada?

LEI SONEGADA

A resposta deixo ao critério dos leitores, com base nos extractos da lei n. 1/88 de 20 de Fevereiro que aprova o código da Família, no que diz respeito a união de facto.

Artigo 113º
Pressupostos legais

1- A união de facto só poderá ser reconhecida após o decurso de três anos de coabitação consecutiva e quando se verifiquem os pressupostos legais para celebração do casamento, designadamente quanto a singularidade e capacidade matrimonial.

(Nota: No caso em pauta, o "de cujus" sempre se apresentou com documentos, bilhete de identidade, carta de condução, etc, como solteiro).

2- Caso a união de facto não possa ser reconhecida por falta dos pressupostos legais, ela será atendida para além dos casos previstos nesta lei, designadamente para o efeito de partilha de bens comuns e para atribuição do direito a residência comum.

(Nota: Aqui está o ponto que o procurador e a juíza querem sonegar, para além de descaracterizarem os filhos da mesma, tratando-os como filhos bastardos, logo sem direito a habitação).

Artigo 114 º
Legitimidade

O reconhecimento pode ser pedido:
a) Pelos interessados de mútuo acordo;
b) Por um dos interessados, em caso de morte do outro, ou de ruptura.

Artigo 123º
Legitimidade

Têm legitimidade pra intentar e prosseguir na acção de reconhecimento:
a) O interessado, ou o seu representante legal em caso de incapacidade;
b) Os herdeiros do interessado em caso de morte deste.

Artigo 124º
Prazos

A acção de reconhecimento caduca no prazo de dois anos depois de finda a união.

Artigo 125º
Conselho de Família

Para o reconhecimento da união de facto, o tribunal deverá ouvir o Conselho de família.

(NOTA: O tribunal não convocou o conselho para poder aferir da realidade dos factos, violando desta forma o seu carácter de isenção)

Artigo 126º
Efeitos da sentença

A decisão judicial que reconheça a união de facto produz, consoante o caso, os mesmos efeitos da dissolução do casamento por morte ou divórcio e esta sujeita a registo.

(NOTA: Não houve decisão de reconhecimento, nem de não reconhecimento, pelo que torna dúbia a posição do tribunal, num caso de tanta sensibilidade)

Em conclusão o que a lei, a doutrina e a farta jurisprudência dispõe é que " dissolvida a união estável por morte do companheiro de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado a residência da família. Isto por a "união de facto ocupar um papel de grande relevo e é como foi sempre cada vez mais comum na nossa sociedade, apesar de a lei n.º 1/ 88 de 20 de Fevereiro ter previsto naquela altura no seu preâmbulo a possibilidade de legalização da união de facto por constituir umas das principais conquistas da democracia.

Por esta razão se solicita a juíza e ao procurador que se atenham a lei, para não serem conotados como parciais e causadores de mais uma família sem tecto, fruto da ambição e desonestidade desmedida de quem tem consciência não ter partilhado sentimentos com um homem nos últimos trinta anos e dele só se quer lembrar, recorrendo a justiça, para se apossar indevidamente do seu património.

*Voltaremos.