Luanda - O Club-K publica na íntegra a entrevista que Domingos da Cruz concedeu ao portal brasileiro “Por Dentro da África”. A entrevista foi concedida à propósito do seu livro, publicado recentemente no Brasil, com título “África e Direitos Humanos”.


Fonte: Por Dentro da África

Natalia da Luz - Por que ainda hoje as perspectivas e teorias de pensadores e autores europeus são tão utilizadas e reproduzidas quando falamos de direitos humanos na África?
Domingos da Cruz - Eu diria que não é só na esfera dos Direitos Humanos. Estende-se para outros campos epistémicos e práticos, ou seja, é sobre quase toda Africologia (estudos africanos). Existem inúmeras razões para esta atitude    A falta de políticas em muitos países do continente que visem publicitar o pensamento e seus pensadores, a falta de liberdade científica, de ensino e académica. A isto associa-se uma história e visão do mundo sobre África, construída desde uma lógica unilateral, extremamente parcial e catastrofista. Como deve calcular, quando se retracta todo um continente de maneira indistinta e com categorias negativas, não há dúvidas que o mundo não acreditará que lá tem cientistas. Uma vez que há a ideia de que África é lugar de negros, logo, na cabeça da mulher e do homem brancos, negros não fazem ciência, pelo que parece-me que o racismo também contribui para a “guetização” do saber produzido em África. Um facto que ajuda a perceber isto é: entre os cientistas e escritores africanos de grande referência mundial, são maioritariamente negros, mas no Brasil os mais divulgados são brancos.
Mas eu responsabilizo, antes de mais os detentores de cargos de responsabilidade pública por esta situação. Certamente muitos diriam que a colonização e a escravidão também contribuíram. Para mim escudar-se nestas razões é infantilismo racional e ausência de lucidez. Não se trata de negar seus efeitos negativos na situação global do continente e na forma como é tratada a ciência africana. Simplesmente, entendo que passados mais de 50 anos em que muitos países tornaram-se independentes, a colonização já não colhe. Agora, os únicos responsáveis pelos aspectos bons e maus de África são os africanos.

 

Você acredita que existe certa dificuldade para falar/pesquisar/estudar sobre o tema na África?
Não falarei sobre África, mas alguns países de África. É fácil falar, pesquisar, estudar e publicar sobre Direitos Humanos em inúmeros países do continente, por exemplo Botswana, Ghana, Ilhas Maurícias, Cabo-Verde, Ilhas Cheicheles, Moçambique, Namíbia, Ruanda, Nigéria, África do Sul, Quénia, etc. Paralelemente à estes países, onde as autoridade disponibilizam recursos e incentivam a investigação científica sobre o tema e dão publicidades aos resultados das pesquisas, tem outros onde a situação é brutal: Angola, Guiné Equatorial, Suazilândia, Gâmbia, etc. Nestes países, debruçar-se sobre o assunto pode redundar em morte, cooptação ou perseguição sistemática que se traduz no sequestro do exercício da cidadania.
 

Direitos Humanos é muito recorrente em obras de ficção e poesias de autores africanos como Mia Couto. Uma infinidade de autobiografias de activistas africanos também relatam atrocidades e ajudam a costurar a história de seus países. A experiência de violação de direitos dos homens (mulheres e crianças) tão comum nas autobiografias africanas tem feito parte do universo académico contemporâneo?
Esta questão parece relevante. É relevante porque refere-se à uma narrativa que efectivamente preencheu o mapa mental do mundo sobre África. É isto que tem acolhimento na academia, nas prateleiras de bibliotecas e livrarias. As editoras adoptaram a lógica da geopolítica da midia, no sentido de que o critério para publicar um trabalho de ficção ou de investigação científica, não é a qualidade ou o mérito da obra, mas sim, a resposta do mercado. É o que campeia na mente dos possíveis leitores, ou seja, o que vende à fast food para maximizar o lucro. Isto sim é publicado, uma vez que o mundo tem na  África, fonte de drama e terror distribuído em pacotes pela midia a partir do centro. As editoras dificilmente publicariam uma história de amor escrita por um romancista da Serra Leoa, mas se contar uma história sobre pessoas assassinadas no norte da RDC, publicariam às pressas.  A romancista nigeriana, Chimamanda Adichie, numa conferência subordinada ao tema “ O Perigo de Uma Única História”, conta que um professor numa universidade dos EUA, depois de ler um dos seus livros, afirmou que esta novela não é autenticamente africana porque as personagens são pessoas polidas, educadas, nutridas e cultas. Um livro autenticamente Africano tem de falar de sofrimento. Como deve calcular, esta mentalidade toma conta também das editoras, dali que uma história ou uma investigação fora desta lógica é rejeitada. Os escritores e cientista africanos que desejam publicar entraram nesta lógica e contribuem para o aprofundamento de uma imagem extremamente parcial de África. Mais uma vez atribuo responsabilidade aos africanos por este facto. Resolver este problema é simples. Tal como a União Europeia criou a Euronews para divulgar essencialmente factos da Europa para o mundo, a África deve criar um ou mais canais de dimensão mundial em Português, Inglês, Francês e Árabe para divulgar os feitos do continente, onde a ciência e a tecnologia tenha destaque. Mas isto pressupõe acordos de cooperação permanente com as editoras, universidades e centros de investigação científica de África. Digo sempre, o seguinte: se eu for o melhor romancista do mundo e publicar um livro na cidade de  Kotonu no Benim, provavelmente darei uma entrevista na rádio nacional daquele país e dali a minha voz, ideias e meu livro não serão conhecidos sequer no continente. Mas se um  Inglês de capacidade intelectual abaixo da mediana, publicar um livro de culinária com receitas colectadas no Paquistão ou na Mongólia, e conceder uma entrevista na BBC, ele torna-se conhecido à nível mundial e um mês depois uma revista americana o coloca na lista das personalidades mais influentes e poderosas do mundo porque o livro vendeu 70 milhões de cópias!   Hoje, o ser é aparecer, por isso, aqueles países de África que não fazem, devem, desde agora, divulgar os seus pensadores que escrevem sobre todas as matérias e visões sem excepção, para uma concepção equilibrada sobre nós. Não só sobre como somos vistos de fora, mas também sobre como nossa auto percepção poderá mudar.


Você conseguiria enumerar autores africanos debruçados sobre o tema?
São inúmeros. Convidaria a jornalista e o leitor a verificarem os autores nas referências bibliográficas do livro que é causa desta entrevista.


Actualmente, acompanhamos genocídios em diferentes países como República Centro-Africana e Sudão do Sul. O conflito étnico seria um dos pilares das violações de direitos humanos na África?
Tecnicamente não há genocídio, nem na República Centro Africana, menos ainda no Sudão do Sul. Sei da existência de genocídio que ocorreu no Sudão, cuja capital é Cartum. Algumas pessoas chamam Sudão do Norte, mas na realidade sempre chamou-se simplesmente Sudão. Mas com a independência do território do Sul, para efeito de distinção acresceram “do norte”. À luz do Direito Internacional Público, através da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948), define-se o genocídio da seguinte forma (Art. 2º): “qualquer dos seguintes actos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como: (a) assassinato de membros do grupo; (b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; (c) submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; (d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; (e) transferência forçada de menores do grupo para outro grupo.” Neste quadro da Convenção acima expressa, parece não ser genocídio o que assistimos na República Centro Africana e no Sudão do Sul, mas a linha que separa o que ocorre na RCA e o genocídio é bastante ténue. 
Com toda honestidade, não diria que o conflito étnico é um dos pilares de violações dos Direitos Humanos no continente, uma vez que muitos conflitos rotulados pela midia como sendo étnicos, são na realidade divergências política e social decorrentes da má distribuição dos rendimentos nacionais. Por isso, a questão que se segue é chave  Para além dos conflitos rotulados como étnicos e religiosos na Nigéria, na Somália, na República Centro Africana e do Egipto antes da queda de Mubarak, quais são os outros? Estes conflitos citados violam e põem em causa a dignidade humana, mas não são um dos pilares tal como sucedia à 20 anos. No caso da RCA em particular, não há dúvidas que sucedem crimes passíveis de serem submetidos à justiça penal internacional, mas de outro tipo que não seja genocídio. Apesar desta minha análise, salvo uma interpretação diferente, pode-se falar em genocídio num plano estritamente gnosiológico, mas com sérias dificuldades de ser acolhido pelo direito positivo.

 

Após a Primavera Árabe e o golpe de Estado pelos militares, o Egipto protagonizou uma sequência de violações de direitos humanos. O cenário atual no Egito se apresenta como um grande retrocesso. Como ele pode contribuir para o debate de direitos humanos na África?  
A Realidade como a que o Egipto vive leva a reflectir seriamente a situação dos Direitos Humanos naquele país e na África em geral.  Todo momento de tensão como a do Egipto estimula ideias, tanto na academia quanto na política, e certamente resultará em muitos actos de pensamento.
 

Após um golpe de estado os militares prenderam o então Presidente e seus partidários, consideraram o partido terrorista e agora condenaram a morte os presos. Como você classifica esse cenário?
À luz da concepção universalista do Direito que constitui um consenso ético minimalista de dimensão global, esta sentença é violação brutal e inaceitável da dignidade humana. Sem querer justificar nem defender, gostaria recordar que esta decisão judicial resulta duma mixagem entre a concepção islâmica do direito e as instituições jurídicas modernas, pelo menos no plano infrastrutural. Isto leva-nos à peleja académica e realista sobre as duas visões de Direitos Humanos   Particularista/culturalista e universalista/liberal  Até ao momento aparentemente irreconciliáveis.


Quais as consequências para o país em termos de direitos humanos?
Parece que a primeira consequência imediata é de desespero e angústia da parte daqueles que se bateram para o fim do antigo regime autoritário. Este cenário não ajuda a construir uma cultura de Direitos Humanos de acordo com as exigências éticas do mundo contemporâneo. Por outro lado, a classificação do Egipto cai irremediavelmente nas avaliações internacionais sobre Direitos Humanos, tanto multilaterais quanto bilaterais. E ainda temos a opinião pública global que terá um olhar negativo para com o país. E a prova desta afirmação está na petição global, promovida pelo Avaaz.org.omundoemacção, contra a referida sentença.
Há um aspecto importantíssimo à lembrar. É que os que detêm o “poder de jure e de facto” não são os que puseram fim ao “Terror de Estado” de Mubarak, mas sim, os antigos colaboradores do regime. Parece-me que é exactamente aqui onde estão os dois erros que pude identificar na revolução e seus artífices. O primeiro erro reside no facto dos revolucionários partirem para o fim do regime mas não tinham um “projecto político-filosófico e económico-social de nação”, para substituir na prática o estado das coisas à fim de construir um Egipto novo aos olhos da população em geral, dos antigos algozes, dos militares e da comunidade internacional. Os revolucionários sabiam o que não queriam: Mubarak e seu regime. Mas não sabiam o que queriam para o país pós-ditadura. A prova de que não havia um projecto está no facto de após a queda da ditadura, não terem reclamado assumir o poder. Só com poder, você que sonha uma sociedade diferente poderás fazer! A prova está em Lula da Silva. Quero dizer que não havia um projecto. Não havia um rascunho do novo tipo de país que queriam.
Diante do vazio de alternativa e perspectiva, mais uma vez os militares e antigos colaboradores assumiram o poder real. Penso que os jovens revolucionários deveriam apresentar um projecto político-filosófico… e um candidato às eleições para disputar na altura contra Mohamed Morsi, e talvez chegariam ao poder, evitando que antigos velhos delinquentes assumissem o destino do país que se traduz nesta barbárie. O mesmo erro verifica-se na Líbia.


Ao longo da sua pesquisa você teve conhecimento se, na Swazilândia, uma monarquia absoluta na África, há uma percepção diferente em relação aos direitos humanos?
Não conheço a realidade daquele país. Da noção sobre ele, sei que há a negação mais ou menos absoluta dos direitos e liberdades fundamentais, no plano político. Mas uma leitura racional, não pode surpreender-nos pela forma como o país é conduzido em matéria de Direitos Humanos, uma vez que só numa Democracia Liberal é que os direitos e garantias fundamentais são o centro da vida política e seu respeito e concretização o instrumento de legitimação da autoridade. Não sendo uma Democracia, o reino da Swazilândia é o que é. 


A repressão e criminalização da homossexualidade se apresenta como um grande desafio para a África em relação aos direitos humanos? 
Sim é um grande desafio. Mas parece-me ser um grande desafio mundial. Para mim é inaceitável criar leis que põem em causa a dignidade da pessoa homossexual. Ela tem o direito de exercer a sua cidadania como qualquer outra.


Uma pergunta recorrente entre os activistas é: “Como um continente que passou por tanta discriminação, apartheid, colonização ainda é tão intolerante quando o assunto é homossexualidade?”
De facto há intolerância contra homossexualidade em alguns países de África, não é em África. Assim como há intolerantes contra homossexualidade nos EUA, na América Latina, na Europa. Se a intolerância fosse só em países africanos não haveria manifestações noutros continentes, contra as leis que favorecem o grupo LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e travestis). Por outro lado, a homossexualidade não seria factor de disputa eleitoral. Não quero de modo nenhum defender que porque noutras partes do mundo comportam-se de forma errada contra a homossexualidade nós também devemos fazer o mesmo. Só estou a chamar atenção para que haja uma leitura justa e equilibrada. Entre os países que legalizaram positivamente o casamento gay está a África do Sul, mas isto não é divulgado. Está em África e está entre os primeiros. 


Em muitos casos, as justificativas dos combatentes da homossexualidade na África dizem que "a colonização foi responsável por disseminar a homossexualidade na África", dizem que "a aceitação da orientação sexual é algo que o Ocidente quer impor ao africano". Por outro lado, representantes de igrejas ditas “Ocidentais” partem para a África em uma campanha contra a homossexualidade. Qual seria o maior inimigo da luta contra a homofobia na África?
Qual é o maior inimigo na luta contra a homofobia em alguns países africanos? Sinceramente não sei. Se a homossexualidade praticava-se antes ou depois da colonização, também não sei. A única certeza que tenho é que os membros do grupo vulnerável LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e travestis), têm todos os direitos como qualquer um de nós.