Luanda - Gabo morreu! De “Cem Anos de Solidão” (o único romance que consegui ler duas vezes) até a vibrante “Crónica de Uma Morte Anunciada”, passando pelo apaixonante “Amor em Tempos de Cólera” (o único romance que consegui ler em castelhano) estou diante de mais um dos meus semelhantes a quem tenho de tirar o chapéu, que é um dos gestos públicos que mais tenho economizado ao longo da minha vida.

Fonte: Vida

Uma economia forçada pelas circunstâncias, pois gostaria de fazer recurso muito mais vezes a esta reverencial saudação, o que seria certamente reflexo de melhores notícias, num mundo marcado por personalidades sombrias e pouco visionárias que se consomem nas labaredas das suas ambições de poder pessoal sem qualquer perspectiva mais abrangente da história e do futuro.

O semelhante, que é o autor dos três títulos citados e de muitos mais, chama-se Gabriel Garcia Marquez (GGM), ou melhor chamava-se, porque morreu a semana passada na cidade do México, depois de ter nascido no meu mês e num dia a seguir há 87 anos, numa sonora e quentíssima povoação colombiana, chamada Aracataca.

Por si só, tendo em conta todo o seu ritmo musical e beleza sonora, este nome de Aracataca dava um bom e apelativo título para um monumental e extraordinário romance que teria de ser necessariamente escrito por ele, o Gabo ou Gabito, diminutivos pelos quais GGM também era conhecido.

Tiro o chapéu desta vez com um profundo sentimento de gratidão, respeito e admiração, antes de mais, por ele ter melhorado bastante a minha autoestima, depois de não há muito tempo ter sido confrontado com a história das pessoas que fogem, pelas piores razões que se possam imaginar, quando sabem que há jornalistas por perto.

Gabriel Garcia Marquez fez-me o grande favor de ter sido um dos maiores jornalistas de todos os tempos e a tempo inteiro.

Era sempre o “insaciável jornalista”, mesmo quando escrevia romances e novelas, como “A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada”, outro dos títulos que me ficou na memória e que também acho que li mais do que uma vez.

Sublinho a tempo inteiro, porque ainda temos muita gente por aqui, mas não só, incluindo antigos membros da “tribo”, que entendem que o jornalismo corresponde apenas uma fase da nossa vida, quando somos mais novos, ou na pior das hipóteses, quando nascemos sem o famoso sentimento ( ou vírus?) da ambição.

Fruto da sua proximidade com a política, o jornalismo tem sido efectivamente um trampolim para outros voos “menos rasteiros” para quem tem da profissão uma visão mais instrumental.Gabo morreu!

Este não foi, certamente, o caso de Gabriel Garcia Marquez, apesar de todas as suas simpatias mais a esquerda e de ter andado sempre pela alta roda da política mundial privando com todos os grandes e pequenos “players” da actualidade que cobriu e deu a conhecer ao mundo através das suas reportagens, análises e crónicas.

Angola, como se sabe, também fez parte deste roteiro de GGM nos anos da brasa, tendo o jornalista e escritor visitado Luanda nos primeiros tempos da independência.

Estamos a falar de 75/76 e do extenso texto que ele escreveu sobre a “Operação Carlota”, relacionada com a entrada de Cuba na guerra angolana, trabalho que, certamente, beneficiou da proximidade/amizade que ele manteve com Fidel Castro, que em principio terá sido a sua principal fonte.

Mas também estamos a falar de uma crónica mais social que ele escreveu nessa altura sobre as grandes dificuldades e privações com que os luandenses estavam confrontados, começando pela falta de fósforos, e que ainda ninguém conseguiu encontrar nas pesquisas já feitas.

Com Gabriel Garcia Marquez aprendemos que a realidade dos nossos países, conforme já aqui o dissémos quando abrimos esta quitanda das letras já lá vão dois anos, ultrapassa a ficção, não havendo pois necessidade de inventarmos mais nada.

Para quê?

O que é necessário é descobrir e investigar esta realidade lá onde ela está a acontecer ou já aconteceu e trabalhá-la com toda a liberdade e imaginação que a narrativa nos permite projectar no texto da reportagem, da novela ou do romance.

Quando se fala de GGM é sobre o tal de “realismo mágico” que temos necessariamente de discorrer como a grande moldura literária de um autor que soube desafiar com sucesso as regras do jornalismo clássico e entrar definitivamente para a galeria dos imortais como mais um nobel da história mundial da criatividade artística.

Entre o jornalismo e a literatura, a trajectória de Gabo foi feita de uma cumplicidade permanente, que inspirou gerações e gerações que se dedicaram a escrita como oficio. Uma inspiração que prossegue dentro de momentos.

Gabriel Garcia Marquez em nome de toda a magia que soube emprestar-nos, se calhar não morreu nada, porque na realidade ele apenas deixou de ser visto na cidade do México, onde viveu os seus últimos 40 anos.

A notícia pode ser falsa até porque ainda estamos no mês das petas e ele tem mais um livro para lançar que se poderá chamar “Vemo-nos em Agosto” que é o último manuscrito que foi encontrado na sua gaveta.