Luanda - Aposentado por razões de saúde aos 70 anos de idade, Paulino Pinto João, ou simplesmente PPJ, já foi um dos mais influentes políticos do MPLA, tendo dirigido o seu Departamento de Informação e Propaganda em 1983. Além deste cargo, este político, que se incompatibilizou com os camaradas em 1990 para fundar o partido da oposição Convenção Nacional Democrática de Angola (CNDA), ocupou também os postos de director do Departamento de Reconstrução Nacional (1977), ministro do Comércio Interno (1978), vice-ministro do Comércio Externo (1979) e secretário do Estado da Cooperação (1981).


Fonte: O País
Paulino P Joo.jpg - 161.68 KBÉ com este angolano aposentado, que ainda pensa dar o seu contributo aos mais jovens, que O PAÍS falou de Angola, da reconstrução nacional, eleições e dos seus tempos no MPLA. Para já, não se arrepende do facto de ter sido um dos primeiros a romper com o actual partido no poder quando chegou a democracia. Recuperando de um problema de saúde, Paulino Pinto João, o antigo homem-forte da coligação Partidos da Oposição Civil (POC’s) fez questão de salientar, mesmo sem ter sido questionado, que se hoje está vivo é graças ao apoio que recebe da Presidência da República

Como está Paulino Pinto João hoje?
Eu estou bem, aposentado. Estou a fazer muitas reflexões sobre o passado que quero transmitir em livro. Quero escrever e estou a observa como anda a sociedade. A veia política ainda está comigo, acompanho os acontecimentos diários, faço as minhas análises, comparo o passado com o presente e perspectivo o futuro. Apesar de estar aposentado, não deixei de ser angolano nem ser pensante, nem político. Mas política mesmo, depois de passar pelo MPLA, depois pelos Partidos da Oposição Civil (POC’s), observei muita coisa que posso transmitir se me permitirem.

Se lhe pedissem para resumir a sua carreia política, o que diria?
Posso-lhe dizer que aprendi muito como homem, como ser, porque vivi muitas vicissitudes. Na clandestinidade sempre pertenci ao MPLA, mas antes, no Liceu, fundámos o partido da juventude. A nível de Luanda, porque do MPLA só começou a falar-se em 1962. Penso que só quando o MPLA saiu de Conacri para Brazaville é que começámos a sentir ecos aqui em Luanda. Ingressámos no MPLA por causa das ideias progressistas, a partir do Liceu. Mas isso na clandestinidade, porque não se podia actuar abertamente. Começámos a criar núcleos, cinco pessoas cada. Estas cinco pessoas conheciam-se, mas não conheciam o outro núcleo. Quando a PIDE ocupa um núcleo, não havia necessidade de outros caírem.

Quem recorda o político Paulino Pinto João tem em memória o antigo homem-forte do Departamento de Informação e Propaganda (DIP) do MPLA. Como é que revive estes tempos?
Revivo com saudade. Apesar de ser partido único fizemos muita coisa interessante. Estive a falar com o meu filho e ele disse-me que tem saudades do partido único, porque quando estava na instrução primária cantava-se o hino perfilado e conheciam a insígnia e a bandeira, hoje não se faz isso. Quer dizer que se está a perder o patriotismo. Fiz parte desta gesta, não me arrependo, porque mesmo no partido único fizemos muita coisa interessante para Angola.

Quer citar algumas?
Por exemplo, eu ajudei a formar muitos quadros a nível da informação. Tive na base da formação secundária do curso médio de Jornalismo, mandei estudantes para Cuba, União Soviética e Alemanha para fazerem formação superior. Não sei onde estão agora, porque há muito que não lido com a informação. Quando entrei para o DIP o Jornal de Angola não tinha pessoal, jornalistas, fiz cursos ad-hoc de seis meses onde apareceram alguns jornalistas que hoje são consagrados. Dinamizei a formação da Rádio Escola, então penso que neste aspecto da formação dei um grande contributo.

"A corrupção veio mais rapidamente com o multi-partidarismo"

Não sente saudades do tempo do partido único?
Saudades como tal não, mas há muitas coisas que se passaram no partido único e fazem falta hoje.

O quê?
Penso que nessa altura havia muito mais patriotismo do que hoje, mais espírito de entreajuda. Havia um sentido único de as pessoas caminharem na acção única.

Acha que a democracia trouxe consigo alguns vícios, entre os quais a falta de patriotismo?
Sim. Mesmo naquele tempo havia corrupção. Mas a corrupção veio mais rapidamente com o multi-partidarismo e expôs-se muito mais, porque no tempo do partido único se fosses apanhado a roubar qualquer coisa serias logo expulso e perdias todas as regalias.

O que é que acontece hoje?
(Risos). Agora é só ver.

É a primeira pessoa que depois da adopção do multipartidarismo no país rompeu com o MPLA e fundou o seu partido. Já teve oportunidade de explicar claramente o que esteve na base da sua saída do MPLA?
Já expliquei umas vezes. Sai voluntariamente, não fui coagido nem sancionado. Pensei na altura, pela vivência que tive no DIP, os conhecimentos que tinha sobre a política interna e internacional, achei que podia contribuir melhor estando fora, porque lá dentro não havia discussão séria das questões. Se eu explicitasse algumas questões dentro seria posto de parte.

Que tipo de questões?
Sobre a reconciliação nacional, Agostinho Neto falou em harmonização nacional mas o MPLA não aplicava essa ideia. Eu fui pesquisando, fruto da minha vivência, porque no DIP e no jornalismo há uma vida dinâmica, as ideias surgem a cada momento e vi que caminhando por aí não podia dizer nada. Então resolvi afastar-me para ser mais útil.

Estava consciente dos passos que deu?
Estava consciente. E também estava consciente das consequências que tive de enfrentar pessoalmente, na família e na sociedade.

Quais foram as consequências que enfrentou?
Tive dificuldades materiais, os meus filhos só se estão a formar agora. Não tive nenhum filho formado com bolsa de estudo do Estado.

"Governo só faz sentir os seus efeitos individualizando as pessoas"

Quando olha para o passado, acha que a decisão que tomou em abandonar o MPLA valeu a pena. Conseguiu atingir os seus propósitos?
Eu acho que tenho mais coisas. Embora esteja aposentado, posso contribuir com as minhas ideias. O rumo que o país está a tomar, está a evoluir à sua maneira, mas podia ser melhor. Também a questão da reconciliação nacional! Estive a ler o debate que houve na Assembleia Nacional sobre a reconciliação nacional e quem falou melhor foi o presidente da Assembleia Nacional, porque os deputados estão sempre enclausurados nas suas teses partidárias, não conseguiram tirar as ideias necessárias para haver reconciliação. Então penso que nesta matéria já escrevi muito e também posso dar a minha contribuição.

Acredita que o MPLA se desviou dos seus objectivos iniciais?
Sim. Se for a comparar o Programa Mínimo e o Programa Maior do nosso tempo, da clandestinidade com o dos tempos actuais, desviou-se bastante. Eu não posso dizer em que partes, porque necessitava de uma análise profunda, mas se desviou bastante. Para já, eles abandonaram o sistema socialista, caíram para a social-democracia e isso fez um dano muito grande nos antigos militantes. Então, às vezes nos revíamos naquilo que o MPLA pregava, mas a sociedade evolui. Veio a Perestroika que baralhou tudo, mas penso que se o MPLA tivesse assegurado os passos a que se tinha proposto na sua criação podíamos ter uma sociedade mais justa.

Por exemplo, Agostinho Neto disse que o mais importante era resolver os problemas do povo. Isso é u programa do Governo, económico e tudo. Agora dizem que estão a resolver o problema do povo, mas na minha posição, dos familiares que estão nas aldeias, o que é que eles estão a beneficiar da política do Governo? O Governo só faz sentir os seus efeitos individualizando as pessoas. O que é que eu sinto, o Dani sente ou o outro amigo? Então, penso que fazendo essa análise o MPLA desviou-se bastante, mas a vida é dinâmica, muitos dos meus colegas antigos não estão lá, não te referências.

Refere-se a quem concretamente?
Aos meus colegas, meus contemporâneos. Alguns já morreram. Não quero nomear ninguém porque é muito complicado e depois pode vir alguém contestar.

"O primeiro-secretário da Juventude do MPLA é radical"

Acha que a nova geração do MPLA estará em condições de um dia reverter este quadro?
Não creio, porque o ideal por que nós lutámos não era material, era ideológico. Hoje muita gente vai para o MPLA por interesses materiais e sobretudo a juventude. Não sei, porque mesmo o Rescova, o primeiro-secretário da Juventude do MPLA, é radical. Não sei porquê, mas não tem aquele jogo de cintura para atrair a juventude para a reconciliação nacional. Então tenho dúvidas sobre isso. Pode ser que surja alguém, a juventude do MPLA são milhões de pessoas.

Falou da reconciliação ou harmonização nacional. O senhor jogou um papel importante no regresso dos antigos camaradas da FNLA que se se encontravam nos Estados Unidos da América, como Moisés Kamabaya, Paulo Tuba, HendrickVaal Neto e outros. Os moldes utilizados naquela altura diferem dos actuais? O estado de espírito também?
Naquele tempo íamos directamente às pessoas. Não diria aliciar, porque as pessoas que têm convicções não se deixam aliciar. Por exemplo, eu tenho o exemplo do HendrickVaal Neto. Ele foi abordado e disse que ‘só saio se for autorizado pelo meu presidente Holden Roberto’. Não sei se falou com Holden Roberto ou não, mas disse isso.

Também foram várias etapas, participei na primeira etapa, depois saí do partido e outras pessoas seguiram. Mas foi um processo interessante porque encontrei-me pessoalmente com antigos colegas de Liceu, HendrickVaal Neto foi meu colega de Liceu, trocámos várias ideias e parece que não tinha passado o tempo, nem tinha havido aquele hiato de separação. Mas eu tenho essa referência do Hendrick. Também estive com o meu primo Johnny Pinnock Eduardo, foi muito interessante. Mas só participei na primeira fase, depois fui afastado.

Foi bom o MPLA exigir em plena Assembleia Nacional que a UNITA pedisse perdão pelos erros que cometeu ao retornar à guerra em 1992?
Não vamos por ai, na guerra há dois contendores. Cada um deles comete erros. Por exemplo, há um avião das FAPLA que bombardeou uma escola na Cela, no Kuanza-Sul. Será que o MPLA pediu perdão? São consequências da guerra.

Quando é que se vai ultrapassar o discurso da guerra?
Essa é uma questão que se coloca à reconciliação nacional. Porque para se passar uma borracha a isso tem que haver um novo discurso, uma nova atitude, novos valores. O valor da paz, segurança e deve presidir o diálogo das pessoas e da concertação partidária. O deputado do MPLA diz que a UNITA devia pedir perdão, num debate sobre a reconciliação, não está a fazer nada.

"Não se faz política sem dinheiro"

Depois seguiu-se a sua vida na oposição ou a fazer oposição. Como é que se deu a formação da Convergência Nacional Democrática de Angola (CNDA)? Foi fácil fazer oposição?
A ideia inicial era criar o partido, de contrapor os partidos hegemónicos na altura, MPLA, FNLA e UNITA. E nós conseguimos reunir no seio da CNDA muitos dissidentes destes partidos. Confesso que o ideal era bom, mas fazer política sem dinheiro não se faz. A pessoa tinha que ter dinheiro para materializar o ideal. Eu sei organizar partido, essa é a minha especialidade, estudei na faculdade organização partidária. Sei como se criam células, primeiro na clandestinidade, transportei esta experiência primeiro para o MPLA e depois para a CNDA. Mas fazer política sem dinheiro…Você pode ter boas ideias, mas não avança.

Quando decide formar a CNDA não estava convencido disso?
Tinha esta percepção, mas também pensava que pudesse ter apoios tanto internos como externos. Mas internamente não conseguimos angariar apoios e externamente fomos bloqueados.

Bloqueados de que forma?
Houve vários factores.

Não quer contar?
Prefiro não contar. Mas, por exemplo, eu tinha muitos contactos externos. A primeira coisa que me foi cerceado foram estes contactos. Roubaram-me toda a documentação, então fiquei impedido de fazer qualquer acção. Não tinha dinheiro para me deslocar ao exterior, para poder continuar os contactos, então foi difícil. Penso que essa foi uma das questões que fez com que houvesse muitas pessoas afastadas dos partidos. Não havia meios, mesmo para ir a uma província eram poucos. Eu montava células no Moxico onde não ia, então foi muito difícil.

Essas dificuldades reflectiram-se nos resultados das primeiras eleições?
Sim. Desde que fundei a CNDA só fui a duas ou três províncias como chefe do partido, mas já tinha várias representações. Eram precisos meios e não tinha.

Houve um encontro em que participou no Huambo, entre vários líderes partidários e Jonas Savimbi. Aquilo aconteceu por acaso ou havia uma certa concertação entre os partidos presentes e o antigo líder da UNITA?
Não aconteceu por acaso. Tínhamos realizado uma reunião no Hotel Presidente, em Luanda, onde decidimos que iríamos ao Huambo falar com o líder da UNITA, Jonas Savimbi. Para ver se ele aceitava o resultado das eleições para não haver mais guerra, estávamos à procura de uma solução pacífica. Mas ele estava renitente mesmo, então viemos de lá desolados porque não conseguimos alcançar os objectivos a que nos tínhamos propostos. Mas foi um encontro interessante porque o Dr. Savimbi era um fino político, articulador, muito afável, mas tinha ideias firmes. Não conseguimos demovê-lo e viemos de lá a pensar que a guerra era inevitável, como aconteceu.

O velho Holden Roberto dizia que o ‘homem estava todo furibundo, tipo uma espécie de rastilho a que só faltava pegar fogo’. Dava logo a entender que estava disposto a ir a uma guerra como essa que testemunhámos até 2002?
É verdade. Ele estava determinado. Lembro-me que quando estávamos lá a Margareth Anstee tentou intervir, mas nada. Então a guerra prolongou-se até 2002 quando ele foi eliminado da cena política.

Houve uma série de contradições na altura por causa do encontro. Não havia compromisso nenhum entre os partidos que estiveram na cimeira e a UNITA?
Não havia compromisso nenhum. Nem pela paz nem pela guerra. Nós queríamos a paz, eu tinha saído de uma situação difícil, escapei de ser morto e ainda tenho aqui as marcas dos ferimentos. Eu pessoalmente nunca quis guerra, mesmo os que foram connosco também não queriam guerra. Queriam resolver a questão pela via pacífica. Estou a analisar a trajectória desde que Angola é Angola, só alcançámos a paz agora em 2002, desde o fim da colonização. Angola sempre esteve em guerra, quer os que estavam lá fora como escravos quer os que estavam cá dentro, sempre houve revolta. Então era preciso pôr cobro a isso.

Porquê acha que esta guerra levou tanto tempo? Não havia nenhum ponto comum entre as duas partes, no caso concreto o Governo e a UNITA?
O ponto comum seria Angola e o interesse dos angolanos. Mas cada facção tinha uma maneira diferente de ver a questão. Sabe que os angolanos nunca se uniram, mesmo para lutar contra o colonialismo. Havia sempre três tendências e com o alcance da democracia houve mais outras tendências. Estas tendências sempre foram resolvidas no campo militar. O diálogo só começou a ser efectivado quando houve uma parte declinante na contenda militar.

"Não sei se Jonas Savimbi era um bom patriota"

Acredita que se a UNITA tivesse um poderio militar como nos anos de 1997-1998, podia chegar à mesa das negociações com as Forças governamentais?
Não sei, mas é preciso também hoje ver quem está por detrás. Nós não somos uma ilha, sofremos uma influência exterior. Há quem apoiasse o Governo ou a UNITA. Os racistas sul-africanos apoiavam a UNITA, a direita portuguesa apoiava a UNITA, agora com que interesse? Só pela democracia? Não creio. Penso que eles, para além da democracia, tinham outros interesses económicos.
Era preciso Angola reduzir-se a nada para depois surgirem algumas situações a que o país havia de ceder. Basta ver que depois da paz assinada, em 10 anos os portugueses já estão aqui 100 e tal mil. Porquê isso? Havia interesse, destruir Angola e depois eles surgirem como salvadores da pátria.

Onde é que pensa que o processo eleitoral de 1992 falhou?
Penso que o processo falhou na preparação. Lembro que ainda não se haviam formado as Forças Armadas Angolanas porque havia intransigência. O MPLA propôs uma fórmula que o Savimbi não aceitou, porque pensava que pudesse resolver o problema pela força. Então, os preliminares é que foram causa do conflito armado, porque ninguém faz democracia com dois exércitos. Quando chegámos às eleições tínhamos dois exércitos, dois comandos. Havia um comando unificado mas não funcionou.

Para a oposição, o processo eleitoral de 1992 foi transparente?
Não foi. Quem está no poder procura a todo o custo conservar o poder, mesmo nas democracias actuais mais maduras fazem sempre uma manobra qualquer para conservar o poder. Ou lançam um peão, eles por trás controlam e manejam o poder. Fazem sempre o possível.

A oposição apoiou a ida de Jonas Savimbi às matas?
A oposição não apoiou a ida de Jonas Savimbi às matas nem a guerra. Mas Jonas Savimbi tinha já tentáculos constituídos, as tropas da UNITA não vieram para as cidades, ficaram nas matas.

Pode concluir que o processo de desmobilização não teve os efeitos que se previa?
Não. Aliás, eu próprio propus ao Governo uma fórmula de desmobilizar as tropas. Como havia a perspectiva da reconstrução nacional, era preciso criar batalhões de serviços, tropas uniformizadas, com comando unificado, mas iam trabalhar para as estradas, transportação de energia, desminagem. Depois de concluírem este ciclo tinham formação suficiente e voltavam para as aldeias. Mas o Governo não aceitou a minha proposta.

Como político que é, apesar de estar aposentado, como é que caracteriza Jonas Savimbi?
Olha, não conheci bem Jonas Savimbi pessoalmente porque nunca privei com ele. Estive três vezes com ele e nem deu para tirar ilações. Mas sei que ele era um bom militar, chefe militar, não sei se era um bom patriota. Isso os que seguiram Savimbi é que podem dizer. Umas sombras das acções da UNITA que estão documentadas, a colaboração com o Exército português, tudo isso. Não sei em que circunstâncias é que se deu.

"Angola está em processo de democratização"

Em 2004, durante a conferência ‘Angola na encruzilhada do futuro’, organizada pela Fundação Mário Soares, disse que ‘estávamos a lutar sozinhos pela democracia’. Apesar de supostos apoios que tiveram, porque é que a nossa oposição nunca foi tão forte?
Penso que por vários factores Primeiro, porque a oposição não tinha um rumo certo, sempre esteve fragmentada. Depois, a oposição não tinha meios materiais para trabalhar e disse há bocado que sem meios financeiros, você pode ter boas ideias, mas não as materializa. Depois havia factores externos que influenciaram. Agora nos lutámos sim pela democracia contando com as suas próprias forças. As democracias não se decretam, é um exercício que se ganha à medida que for sendo exercido. Se me perguntar se Angola é democrática, eu digo que não. Angola está em processo de democratização.

Esperavam algum apoio da sociedade portuguesa ou que influenciassem mais o processo de democratização de Angola?
Era de esperar sim, porque estávamos numa sociedade praticamente democrática, a falar para um público aparentemente democrático. Havia vários representantes de outras formações, era preciso exprimirmos a nossa posição, para ver se sensibilizávamos. Na altura, estávamos ainda em guerra, a sair das consequências da guerra e tinha falhado a conferência de Bruxelas. Nem a oposição nem o Governo sabiam o que fazer, até ao descalabro que a situação levou.

"Não há democracia nos partidos da oposiçao"

Dirigiu durante vários anos os POC’s, uma coligação com vários partidos, e mesmo assim não conseguiram um lugar no parlamento. O que é que aconteceu?
Havia bons programas mas, para já, não conseguimos criar um partido único. Trabalhámos muito para juntar os partidos numa só sigla e nada foi feito. Cada chefe de partido considerava-se independente. Podíamos reunir, tomar decisões, mas implementar era difícil. Depois, havia falta de meios também. Todos aquele partidos que constituíam os POC’s não tinham meios, sedes, viaturas. Era muito difícil, só conseguimos actuar politicamente, mas também com certas dificuldades. A experiência foi boa, mas insuficiente. Costumo falar com dirigentes de partidos políticos, digo-lhes que Angola para avançar e a oposição estar no poder é necessário a selecção dos quadros jovens. Arranjar lideranças jovens e formá-las.

Acha que há democracia no seio dos partidos da oposição?
Não, não há democracia.

Porquê?
Porque nunca há congressos e quando há são forjados. As lideranças são sempre as mesmas. Aqueles jovens que devem sobressair são logo abatidos. Vê o caso do Mfuka Muzemba. Inventaram uma estória, não sei se foi verdadeira ou não, mas inventaram uma estória que desqualificou todos os jovens que eram promissores. Então, penso que a oposição tem que rever muito bem a sua maneira de actuar para ver se se firma no panorama político angolano, porque assim como está não sei.

Quem acompanhou a passagem de testemunho nos POC’s dizia-se que o político Paulino Pinto João não quis passar o testemunho ao jovem Manuel Fernandes, hoje deputado da CASA-CE. É verdade?
Quando vim de fora em 2006 já não queria fazer política, então deixei o Manuel Fernandes actuar. E como era presidente dos POC’s tinha de ir, mas fiquei muitos dias aqui. Até que quando organizaram uma conferência nacional resolvi afastar-me para que ele fosse eleito. Só isso.

Falava-se que pretendia ser o candidato único na última conferência dos POC’S?
Na preparação desta conferência não participei.

Os políticos angolanos estão cada vez mais preparados para desenvolver cabalmente as suas funções políticas, sociais e económicas?
Eu digo sempre o seguinte: estive no Brasil muitas vezes e comparo os políticos brasileiros aos angolanos. Um político angolano no Brasil não seria político nem deputado.

Mesmo tendo formação superior?
Mesmo assim.

Porquê?
O político angolano não tem abertura de espírito. A pessoa que faz política tem que ter abertura de espírito, ver vários parâmetros.

Acha que a imprensa tem cumprido o seu papel numa sociedade como a nossa?
Não. (risos). É só ler o editorial do Jornal de Angola de hoje sobre a reconciliação nacional. Em vez de falar de reconciliação nacional, é só bater. Não pode ser. Quando é que vamos ter pacificação de espíritos? Todos nós erramos, quer da oposição como do Governo. Então é preciso pôr uma pedra sobre isso e olhar para o futuro.

Passou pelo DIP, acha que em termos de liberdade de imprensa progredimos ou regredimos?
Em certa medida progredimos, porque quem fez a liberdade de imprensa foram os jornalistas antigos. Adoptaram uma posição diferente, mais realista, mas mesmo assim estas pessoas sofreram, tiveram muitas dificuldades.
Houve quem morreu como o Ricardo de Melo e muita gente, mas penso que os jornalistas estão a fazer um trabalho mais ou menos merecido tirando esta situação que não sei se é próprio da linha editorial do Jornal de Angola. Tenho muito respeito pelo director do Jornal de Angola, mas acho que essa posição não constrói.

‘Monstro Imortal disse-me que os mencheviques venceram’

Se tivermos de regressar um pouco aos tempos do Liceu, quais foram os tempos que lhe marcaram?
Foi a entrada no Liceu, quando entrei pela primeira vez. Aquilo que foi uma cena incrível, porque havia uma política do caloiro. A pessoa entra, é cortado o cabelo, se não tem cuidado davam-te mesmo. E a convivência, porque no Liceu os negros eram poucos e viviam na periferia. Eu vivia na Vila Alice, os outros viviam no Cruzeiro Novo, no Bairro Operário, José Eduardo dos Santos vivia no Sambizanga. Nós entrávamos aí depois da papelaria Sá da Bandeira. Todos nós os negros entrávamos por aí.

Ainda se recorda dos seus companheiro que passavam pelo mesmo portão?
O Ismael Martins, Roberto de Almeida, Garcia Neto, Juca Valentim, que foi um grande activista do MPLA da clandestinidade, António Alberto Neto.

Esse espírito de revolta política deu-se quando entraram no Liceu?
A mim deu antes, porque eu vivia em casa do António Pedro Bengue, que foi o primeiro preso do Processo dos 50. Ele tinha uma organização que reunia os velhos Pascoal da Costa, o pai do Ismael Martins, Deolinda Rodrigues, Noé da Silva Saúde. Então eu já tinha conhecimento. O meu pai que estudou no Congo Belga, onde havia mais liberdade que aqui, lá se podia formar associações profissionais e tudo isso de negro. Então ele trazia essa consciência também que inculcava nos filhos. Nós entramos para o Liceu e já levávamos esse espírito nacionalista, que se alicerçou com o contacto com outras pessoas. Havia muitos brancos que também tinham este espírito, por exemplo o Rui Ramos, Carlos Pacheco, que estavam lá no Liceu também.

Passou o tempo da guerra, Angola vive um clima de paz. Como é que tem acompanhado o processo de reconstrução nacional?
Num processo há sempre equívocos, mas a reconstrução nacional não se faz sem a reconciliação. A reconstrução não é só criar Kilambas, é preciso ter a consciência em paz. Penso que ainda não temos a consciência em paz, ainda não se esbateram as feridas criadas pela guerra. Há muitos progressos, mas disse inicialmente, o que é que estes progressos beneficiam a mim? Estou melhor ou pior. Por exemplo, fui ontem ao mercado da Madeira e vi lá umas coisas! Será que aqueles angolanos constam das
estatísticas?

O que foi que viu?
Miséria. Mas ali é uma bolsa de negócio, mas ninguém liga àquilo, é uma selva com muito dinheiro. O banco BIC tem montado agências em vários pontos da cidade para captar estas poupanças, mas o Estado não está lá. Por exemplo, nós estamos a deixar o comércio nas mãos dos senegaleses que têm uma rede e até fixam preços. Se a lata de chouriço custa X no bairro tal, é X em toda a cidade. Isso tem um comando, será que o Estado conhece este comando? É uma rede e quem domina o comércio a retalho, domina a segurança.

Está aposentado, como é que vive hoje?
Vivo de uma pensão de aposentação de três mil dólares. Do apoio dos meus familiares. O tratamento médico sim, o Presidente da República apoia.

Até ao momento?
Sim, até agora.

É verdade que também pediu apoio à UNITA e recusaram-se?
Quando estava em Lisboa pedi, mas eles negaram. A minha esposa fez diligências aqui em Luanda e os apoios começaram a chegar até hoje. Se estou vivo até hoje devo ao gabinete do Presidente da República.

Disse que vai escrever. O que é que está a escrever?
Sou muito lento a escrever. Tenho muitas informações. Todas as informações que eu fizer tenho que provar.

Vai escrever sobre o 27 de Maio. O que pensa que ainda não foi dito?
Por exemplo, eu escapei de morrer no 27 de Maio. Vou revelar hoje em primeira mão que no dia 30 de Maio um primo meu que trabalhava com Lúcio Lara telefonou-me à noite. ‘Olha, o teu nome apareceu, está aqui’. Eu disse que como era tarde, vou dormir mas amanhã vou lá. De manhã acordei, tomei o pequenoalmoço, cheguei lá e disse que queria falar com o camarada Lúcio Lara. Mandou-me esperar, estava a fazer algo e que depois me podia receber.

Quando chegou a minha vez me recebeu e lhe disse que tinha ido para ser julgado, porque sabia que o meu nome apareceu. E não saio daqui sem saber qual vai ser o meu destino. Ele disse: ‘camarada Pinto João, vai só à sede do partido investigar os colegas seus que foram vistos na Rádio Nacional a participar na manifestação.

Eu disse: ‘está bem’ e fui. Fiz a investigação, vi que não tinham participado em nada daquilo e entreguei o relatório escrito. Disse-lhe que agora queria ser julgado. Ele respondeu: ‘realmente o seu nome apareceu, mas estamos confiantes em si’. Perguntei-lhe três vezes se podia ir embora, ele disse que sim.

Quando ia a sair disseram-me que o Monstro Imortal estava no gabinete ao lado, mas vi já muita gente aí sem camisa, Sihanouk e todos os outros. Dirigi-me ao gabinete de Monstro Imortal, ele já não tinha cinto, bissapas, mas estava fardado. Estava a andar de um lado para o outro, sabia que ia morrer naturalmente. Quando me viu disse: ‘camarada Pinto João, os mencheviques venceram’. Os mencheviques eram os partidários minoritários do partido socialista da União Soviética. Estamos aqui, não sei qual vai ser o nosso destino. E nunca mais o vi.

Que conselhos é que deixa para a geração actual?
A minha geração já foi. A vossa geração pode fazer mais alguma coisa. Lutar, lutar, lutar, porque eu disse há pouco que o patriotismo não se está a cultivar e o espírito de angolanidade não está presente.