Luanda - Ao segundo telefonema, desabei em prantos. A tua morte, Alfredo Júnior, foi daqueles eventos que preferíamos dele não ter conhecimento. Ou mesmo que nos apanhasse, sei lá, nos confins do Mundo. Num lugar, sem qualquer sinal de civilização, sem telemóveis, rádio ou televisão. Permaneceríamos, assim, alheios ao infausto acontecimento e sempre com as nossas memórias intactas.

Fonte: SA

Memórias que nos hão-de acompanhar para sempre: para já, da tua rica trajectória, como homem de alta cultura, polido, cavalheiro. Foste, sobretudo, para nós, que tivemos a sorte de convivermos contigo, ao longo de uma vida, breve, entretanto, um humanista. Pede-me a Mana Dacy, tua companheira de toda a vida, que escreva umas palavras. Penso logo na Velha Júlia. Penso logo no teu sorriso luminoso. Até nisso eras, meu irmão, uma pessoa invulgar. Penso de imediato na Naty. Olha, acaba de chegar, nem cumpriu a sua agenda médica lá em Lisboa, para estar sentada, e nós também, na missa que tua esposa manda rezar em tua memória.

Penso nos teus filhos. Nos teus irmãos e irmãs, que deixastes assim tão repentinamente, nem mesmo a pior das previsões poderia prever. Os teus amigos. Muitos deles, como nós, a quem educastes, sobretudo com o teu exemplo de vida, recta e impoluta. Militavas por todas as sagradas causas do Nacionalismo angolano. Mas, para já, deixa-me perguntar ao Buca, em que estado de alma se encontrava no dia em que recebeu a notícia da tua morte? Para quê perguntar? Sei de antemão a resposta.

O texto de homenagem que escreveu sobre a tua trajectória, é bastante para adivinharmos a sua profunda dor. Assim como todos nós nos sentimos. Faltou-nos chão. Nesta altura, passou pela minha, e na cabeça de outros teus companheiros de luta, o poema de Agostinho Neto: «Criar/Criar amor/Com os olhos secos (...)». Porque soubestes criar amor em toda a tua vida.

E o teu senso estricto de justiça tocou-nos a todos: tinhas, com efeito, horror a injustiças. Abominavas, como ninguém, a pobreza, o analfabetismo, o obscurantismo, a vaidade pueril. O nada sobre o qual, folcloricamente, o absurdo da intolerância assenta, só merecia, da tua parte, o desprezo. Nem mesmo reclamaste o pedestal em que, gloriosamente, te quisemos alçar, com justiça. Não aceitastes.

Gostavas mesmo é de vir sentar, aos sábados, na C-5, para comer mufete de espada, com farofa, molho de jindungo de cahombo, beber kissângua e deixares-te ficar, horas a fio, em diálogos que se perdiam nos mais ricos e escondidos detalhes da história da nossa infância. Zulas contra Zuatas. Os do mato contra os da cidade. Aqueles, tendo como baliza a porta da tua velha Júlia, e estes, a da D. Rosa, do Toy Vilhena, da Zinóbia, da Chinha, do Lito e do Bino. Estou a ver-vos: tu e o Evaristo, de lados opostos. Mas só nestas circunstâncias.

O Brito e o Lito, a levarem aqueles jogos com bola de mica, com um profissionalismo fervoroso. Jack, Bill & Sam, lá pela calada da noite, a plateia sentada no muro da casa da Velha Lelela. O narrador, o Arlindo da velha Amélia, a por toda a sua emoção nos episódios de que nos oferecia a releitura. Havia ainda o Mendonza Colt e Rabieta.

E o velho Eugénio Bárber e os seus «garrés» de marca «Juca», após um palheto. O Velho Chico Kamuzequezeque em confidências com a vizinha. Gritos e sussurros, na casa do sô Kambamba. Enfim. O quintal da velha Mariana, de onde vinham os acordes da viola do Duia. Na casa da Nina, muitos partiram cedo para as europas do futebol: Jacinto João, Conceição, José Maria. Olha, o Pinho, o nosso Pinho da bês, estiveste com ele, aí no Ceu? Bom, chegou a independência.

Antes disso. O grande movimento estudantil no Salvador Correia, Escola Comercial, Escola Industrial e nos liceus (masculinos e femininos) Paulo Dias de Novaes e D. Guiomar de Lencastre. A dado trecho da marcha dos acontecimentos, fica aqui montada a velha máquina de policopiar e no seu comando o histórico Fogaça. Intermináveis reuniões nocturnas no já baptizado «Bula Matadi» (homenagem que alguém fundamentou com os seus conhecimentos da nossa História). Na torre, esconde-se um tesouro: a Biblioteca da Escola. É por nós tomada de assalto e num gesto de irreverência, são pintados os murais na fachada principal. Levamos cultura ao proletariado: distribuímos, eu, a Arlete, o Jordão, entre outros, panfletos às fábricas têxteis da Boavista e da Petrangol (se não me engano).

Eleições para a Associação dos Estudantes do Ensino Médio de Luanda, sucedânea da Pró-AEESL, dirigida pelo Timóteo ( o Jesus Cristo, como lhe chamavam). É a primeira associação estudantil, com endereço e corpo directivo. O Jaime é eleito Presidente e de repente vejo-me nas vestes de 1.o Vice-Presidente, e uma mulher é a 2.a Vice-Presidente. Onde andará ela? - pergunto-me sempre. O Buca é o Presidente do Conselho Fiscal.

O mais velho Diógenes Boavida, histórico Ministro da Justiça, solidariza-se connosco, numa espécie de pioneirismo filantrópico, e cede-nos a sua casa, para servir de sede. Reuniões, debates, cafés atrás de cafés, bolachas dos mantimentos dos cubanos e pouco sono. Segue-se a Campanha de Produção. Tudo isso funciona com o génio da tua infinita capacidade de organização, Alfredo Júnior, que depois levas para o MPLA, no seio do qual nasceste, politicamente e te dedicastes a até ao dia 16 de Agosto de2013, fazendo assim hoje, exactamente, um ano desde que ascendestes. Podia-se discordar de ti. Mas foste um pensador e organizador com o qual, no final das contas, era entusiasmante trabalhar e prezar. E isso nunca saberei lhe pagar, meu caro Kudjinga. Nunca!

(*) Jornalista e escritor