Waku-Kungu - Em declarações ao Club-K, o conhecido activista Bernardo Castro revelou a ocorrência de conflitos entre gente ligada à presidência da República  e sobas que se mostram resistentes pela ocupação das suas terras no município do Waku-Kungu com vista ao alargamento do perímetro da fazenda Lupupa  para um mega projecto turístico. 

Fonte: Club-k.net

Ck. O Sr. Bernardo Castr (BC) é activista para os Direitos Humanos, sobretudo, em matéria do direito à terra. Angola independente no próximo ano comemorará 40 anos e faz 12 anos de paz. Como vê o direito à terra em Angola?

BC. Obrigado pela oportunidade. Existem várias formas e disciplinas de abordar a terra. Em matéria de legislação o país está bem servido. Contudo, a terra deve ser vista, acima de tudo, na perspectiva cultura enquanto repositório da história dos povos de Angola e nas dimensões sócio-económica e ambiental. No plano formal existe um grande fosso entre a realidade legal e vivida. Trabalhamos mais com as comunidades cujas terras integram o domínio consuetudinário e a realidade é marcada por incumprimentos, desrespeito à legislação fundiária e conflitos. No plano sócio-económico é notória a segregação sócio-espacial, sobretudo, em áreas urbanas. Existe um elevado défice do direito à informação e participação do cidadão em processos de formação e tomada de grandes decisões em matéria do direito à terra. Quanto à perspectiva cultural impôs- se um modelo de desenvolvimento que, claramente, não respeita as especificidades culturais dos povos.

Ck. O país foi forçado pela guerra.

BC. Sem dúvidas, mas a guerra não pode justificar tudo. Ao longo dos últimos 12 anos de paz nada se fez para que se respeitassem as terras rurais comunitárias à luz da al.e) do art. 4o da Lei 9/04 e da Constituição de Angola.

CK. Temos assistido a julgamentos de pessoas que ocupam de forma anárquica as terras. Não reconhece que é uma forma de desencorajar tais práticas.

BC. Prender ou julgar não é a melhor solução para um universo de conflitos de terras existentes em Angola, mas silenciados.

CK. Quem silencia os conflitos de terras em Angola?

BC. Existem várias formas de silenciar um problema, meu caro. São casos, por exemplo, de prisões arbitrárias, ameaças, corrupção, marginalização ou não dar visibilidade de casos de conflitos pelos meios de informação, não dar seguimento de casos de denúncias, etc. o medo em Angola, é ainda, uma realidade.

CK. Então qual é a solução? O Sr. Trabalha com as comunidades. O que dizem?

BC. Hoje, para a gestão da coisa pública não ricos ou pobres; homens da cidade ou do campo; partido A ou B. portanto, não existem epistemologias do Sul ou do Norte. Todos são importantes. Está em causa a sustentabilidade ou não do património natural e cultural de Angola. Não há neste país a cultura de um diálogo desinteressado. Temos de mudar esse quadro. Diríamos que este é o primeiro cenário. O segundo, prende-se com o ordenamento e planeamento do território. E vamos entender o ordenamento como

a compreensão de políticas sociais, culturais, económicas e ambientais no espaço que com o planeamento é possível situar através de diversas acções no tempo tais políticas. Temos de convir que a res publica não ser governada de forma parcelar ou segmentada. Hoje o conceito de gestão integrada do território é uma realidade em muitas partes do mundo. O terceiro cenário é a transparência na gestão do negócio de terras em Angola. Ninguém sabe o que Angola vendeu ou emprestou através de certos protocolos ao país A ou B ou a empresas X ou Y. Muitos Bairros, hoje, estão sob o cerco do arame ou conflituando as suas áreas com várias empresas. Portanto, em várias comunidades rurais o sentimento é de insegurança de posse do direito à terra.

CK. O Sr. Sabe de algum caso de conflito nesta altura?

BC. Existem vários conflitos reportados, mas o caso mais recente é o da Lupupa no Waku.kumgu.

CK. Qual a causa do conflito?

BC. Segundo a informação que recebemos por escrito e confirmada quando fomos ao Waku-Kungu a fazenda da Lupupa foi comprada por uma família, eventualmente, ligada à presidência da República. Até, aqui, é muito normal que alguém uma fazenda. De acordo com a informação existe um intermediário que já reuniu com a Administração local e os Sobas para convencer estes no sentido proceder-se ao alargamento do perímetro da fazenda para um mega projecto turístico que poderá envolver 27 Aldeias e mais ou menos 11 mil pessoas. Dos encontros havidos ambas partes desentenderam-se e os Sobas andam revoltados com a situação.

CK. O que pensa fazer?

BC. Existem várias soluções e procedimentos legais. Não há razão para a força ou a intimidação. Abriu-se o diálogo e vamos aguardando que o caso tenha o melhor desfecho. Se fôssemos ouvidos pela Assembleia Nacional quando submetemos ao Ex- Presidente dessa instituição de soberania em audiência do ano antepassado a proposta de resolução de conflitos de terras em comunidades rurais talvez, hoje, o quadro de abordagem seria diferente. Trabalhamos em diferentes cantos do país com todas as dificuldades e o cenário não é muito diferente do que estamos a reportar. Estamos sem recursos financeiros para prestarmos a nossa contribuição na resolução de conflitos de terras no país, mas tratando-se de um acto de cidadania não vamos desistir dos passos que o país vai dando rumo ao desenvolvimento e paz social.

CK. É um risco ser activista para os Direitos Humanos?

BC. Viver em si é já um risco. O risco de ser activista para os Direitos Humanos depende muito de regimes políticos. Existem sociedades mais abertas e outras mais fechadas que encaram os Direitos Humanos como uma pedra no sapato. Como activista e não trabalhador de uma ONG vejo esse exercício como um acto de calar as injustiças de que a Humanidade está cansada. Não há como calar uma injustiça sob pena de consenti-la. Às vezes somos mal-interpretados pelos detentores do poder, mas o que são vítima de injustiças estão do nosso lado. Por isso, é consolador. O Frei João Domingos citando um Santo disse-me no seu último ano de vida: mano, temos de lutar porque a verdade é a nossa força. Quando damos de comer quem tem fome os políticos aplaudem, mas se perguntarmos a eles porque é que há tanta gente com fome somos perseguidos. Portanto, estou calmo e certo que o país só tem a ganhar com os que indicam o curso do pais para os valores da verdade, justiça e dignificação do Homem sem defender cores partidárias ou religiosas. As pessoas podem não ser ricas em dinheiro, mas precisam de tranquilidade em suas terras de onde tiram o que comer. A terra é o seu livro de memórias.

CK. A questão de dar títulos de reconhecimento ás terras rurais comunitárias como ficou?

BC. Existe um órgão técnico competente para o efeito. É o Instituto Geográfico e Cadastral de Angola. Tudo quanto sei é que não pode fazer nada sem recursos, embora, jurista Bessa afecto a essa instituição tenha defendido o contrário. O certo é que o processo de reconhecimento quanto a nós é simples. Cada comunidade sabe quais as fronteiras e a realidade do seu património geo-histórico. Portanto, é fazer o levantamento local dessa realidade que confrontada com o grau de sustentabilidade desse património pode o governo conferir, ainda, que provisoriamente, títulos de reconhecimento para conter o elevado índice de esbulho e descaracterização das terras rurais comunitárias. Não queremos que se incorra no erro do tempo colonial. Lutou-se para a Independência Nacional para que ninguém fosse humilhado nem subtraído em sua própria terra.