Luanda – Nos últimos tempos, na sociedade angolana, tem-se verificado a subida do tom sobre a reconciliação nacional, sob o pano de fundo da magnanimidade do José Eduardo dos Santos, Presidente do MPLA e titular do Poder Executivo. Tem-se defendido a tese de que, se não fosse a magnanimidade do JES, no fim da guerra-civil, em 2002, teria havido de novo o genocídio de proporções incalculáveis, com a decapitação total dos dirigentes, quadros e militantes da UNITA, bem como de outras personalidades, fora da corrente dominante do partido no poder.

Fonte: Club-k.net
Para este efeito, mobilizou-se uma campanha politico-cultural, a nível nacional, em torno do aniversário natalício do Presidente do MPLA, sob a bandeira da Fenacult, que custou aos cofres do Estado mais de 35 milhões de dólares norte-americanos. Trazendo para Luanda personalidades como Margareth Anstee, Olusegun Obasanjo e Sam Nujoma, com fim de celebrar a grande festa de culto de personalidade do soberano angolano.

Embora este fenómeno, da evocação da magnanimidade do JES, ter sido uma rotina, desta vez surpreendeu e assustou a sociedade angolana pelo tom agudo e austero com que se realizou esta campanha, na qual o Vice-presidente, Manuel Vicente, saiu a terreiro, na presença de centenas de convidados, da alta elite angolana, no 72º Aniversario do Presidente Angolano, na Cidade Alta.

Além disso, pela amplitude e pelo volume de recursos mobilizados, a nível do País, apenas para enaltecer este suposto facto, da magnanimidade e da grandeza deste Homem, que apenas se compara com o desperdício do Alexandre Magno, o Rei da Macedónia.

A grande questão que se coloca, por vários círculos da sociedade angolana, reside no seguinte:

A guerra-civil terminou em 2002, 12 anos depois. Houve Acordos da Paz celebrados, assente no espirito da igualdade das partes, na irmandade e na reconciliação de todos os angolanos. Não se registou a capitulação, nem a rendição. Houve sim, o patriotismo e o desejo ardente pela paz, e pela estabilidade social, politica e económica. Tratara-se, de facto, do reencontro das famílias angolanas desavindas durante meio século da guerra continua, que mergulhara o país na desgraça e na ruina. Este tivera sido o espirito íntimo que reinou na mente dos angolanos.

Infelizmente, constata-se que afinal o espirito verdadeiro não era este que tivera movido o processo da paz, de 2002, celebrado na Cidade do Luena, na Província do Moxico. Era, sim, o genocídio! Se isso não aconteceu foi devido o espirito de magnanimidade do Eng.º José Eduardo dos Santos, Presidente do MPLA. Afinal, se esta reconciliação nacional baseia-se na magnanimidade de um homem, o JES, o que será dela, na ausência dele? O País não será submetido de novo ao genocídio, ainda de maior magnitude, do que o 27 de Maio de 1977?

Esta preocupação cresce, em todos sectores da sociedade angolana, a medida em que, a Paz está sendo condicionada e posta em dúvida por certos círculos influentes e bastante opulentos no seio do MPLA. Há medo e o clima de insegurança física, moral e espiritual dos cidadãos, que receiam do possível drama sangrento, no fim do consulado do JES. Uma Paz que não assenta nos princípios sagrados da Humanidade, no ordenamento jurídico-legal e nas instituições do Estado, esta Paz é frágil e é vulnerável – é um castelo na areia.

Neste respeito, convém ter em consideração três questões fundamentais:

1. Havia duas escolas de pensamento no seio do MPLA. A Primeira Escola acreditava que, a UNITA era uma estrutura puramente militar, que se apoiava essencialmente na personalidade carismática do Dr. Jonas Malheiro Savimbi. A desarticulação da estrutura militar da UNITA e a eliminação física do Dr. Savimbi, embocar-se-ia no desaparecimento imediato e infalível desta organização. Logo, não haveria a necessidade de proceder ao genocídio, como forma de assegurar a hegemonia do MPLA.

A Segunda Escola de Pensamento defendia a tese da desarticulação total da UNITA e de outras correntes políticas, «por via do genocídio», no sentido de restaurar o «partido-único», com alguns enfeites superficiais, em termos de reformas políticas, sem o risco de enfrentar no futuro uma concorrência política real, activa e efectiva. Garantindo assim a supremacia do MPLA e a eternização do Poder politico.

Pelos vistos, o Presidente do MPLA tivera, de facto, alinhando-se com a primeira escola de pensamento – do desaparecimento da UNITA, sem recurso ao genocídio. É exactamente nesta base que se fundamenta a tese actual da magnanimidade do JES.

2. O sentimento de injustiça, de culpa e de vingança que se manifesta fortemente nas fileiras do MPLA. Além dos massacres do 27 de Maio de 1977, que atingiram todas famílias angolanas, sem excepção, verifica-se muita maldade, injustiça, avareza, egocentrismo e revanchismo no seio das fileiras do MPLA, entre eles próprios, capazes de virem resultar-se nos ajustes de contas. Ali reside o problema principal, que ameaça uma transição ordeira e pacífica do Poder – Pós-JES. O maior problema não consiste na contenda política entre o MPLA e a UNITA; mas sim, nas rivalidades intestinas, que a classe dominante, de modo subtil e engenhoso, procura disfarçar-se junto da opinião pública – interna e externa.
 
3. A política da acumulação primitiva acelerada da riqueza, sob a fórmula da acumulação primitiva de capitais, que não só agrava os níveis da pobreza das camadas desfavorecidas, mas sobretudo cria ruptura na superestrutura e na classe média. Como referência, a Margareth Anstee, durante esta visita, alertou da premência de superar a pobreza extrema que se arrasta no país, no sentido de prevenir-se do possível surgimento do novo conflito em Angola. Infelizmente, a boa vontade da Madame Margareth Anstee não reflecte a realidade do nosso País. Dando o facto de que, um gatuno vicioso é gatuno viciado incorrigível, que dificilmente será capaz de deixar de roubar o erário público.

Pois que, esta fórmula da acumulação primitiva da riqueza em Angola não tem regras e não obedece as normas convencionais do capitalismo ocidental. Ela é brutal, não tem mecanismos reguladores, não permite a concorrência leal, não oferece espaço a ninguém e concentra toda riqueza do país nas mãos de um clique, que rodeia o soberano angolano e sua família. Uma burguesia altamente corrupta, avarenta, aculturada e sem moral, desligada totalmente das comunidades locais, sem uma mínima noção do grau da pobreza da população.

O esquema funciona assim: A mesma entidade é que responsabiliza-se de tudo – planifica, determina o orçamento, adjudica as obras às suas empresas, executa-as, fiscaliza-as ela própria, paga-se a si mesma, apresenta contas a si própria, administra os imoveis públicos e privados como quiser; e é gestor do erário público. É isento, na sua conduta, de toda forma de fiscalização por Órgãos competentes do Estado, como a Assembleia Nacional e o Tribunal de Contas.

A título de exemplo, estive recentemente no Cuando-Cubango, em missão oficial da Assembleia Nacional, onde constatei o carácter monopolista deste sistema, da acumulação primitiva acelerada de capitais. Mais de 95% das obras, em curso, nesta província, estão sendo executadas por duas Empresas que pertencem a mesma pessoa, que representa os interesses do soberano angolano e sua família. Todos os espaços uteis – turísticos – estão sendo ocupados e transformados em propriedades pessoais – afastando à força as comunidades locais.

O Mercado interno da província está dominado pela mesma pessoa que encaminha todo o negócio ao seu Cofre e alberga todos os visitantes nos seus hotéis e nas estâncias de férias e turísticas. Estando, desta forma, os hotéis dos outros empresários-políticos do MPLA às moscas. Este fenómeno, do capitalismo primitivo, está causar o mal-estar e a indignação profunda no seio das fileiras desta organização, com costas viradas.

O processo da acumulação primitiva da riqueza, por uma minoria, para sustentar a sua hegemonia politica tem ramificações internas e externas, cujos efeitos restritivos e exploradores tem tido implicações bastante negativas sobre a transformação politica e a distribuição justa da renda nacional.

O que, de certo modo, não deixará de agravar os atritos e os descontentamentos actuais no país, capazes de se transformar na luta de classe antagónica entre os pobres e os ricos. Pois, a má-distribuição da riqueza sempre tem sido a fonte principal da maior parte dos conflitos que a humanidade tem estado a viver no seu longo percurso, desde a pré-história até a época contemporânea.  

Neste respeito, a História da Humanidade deixou-nos lições bastante ricas, como legado, capazes de iluminar os caminhos conturbados do presente e do futuro. O Filósofo Grego, Péricles, (495 a.C. – 430 a.C.) no seu grande Discurso de homenagem aos mortos na Guerra do Peloponeso, afirmava o seguinte (como matriz da democracia, da boa governação, da liberdade, da igualdade e da justiça social):  

«O Estado, entre nós, é administrado no interesse do povo, e não no de uma minoria. Nós não nos irritamos contra o nosso vizinho que actua como lhe apraz. Para nós, a palavra não prejudica a acção; o que é prejudicial é não se colher informação pela palavra, antes de se avançar para a acção. A lei é igual para todos. Os cargos públicos e privados são distribuídos em razão do mérito de cada um. Interessa mais o valor pessoal do que a classe a que se pertence. Os mais pobres não são afastados, nem prejudicados, se forem capazes de prestar bons serviços à Cidade».

Feita esta abordagem, de forma sucinta, a evocação da «magnanimidade» é apenas a cortina de fumo, que visa essencialmente desviar a atenção da opinião pública, dos problemas reais da classe dominante, em busca da consolidação da hegemonia politica, da partidarização do Estado Angolano e do monopólio económico-financeiro, por via da acumulação primitiva da riqueza.

O grande desafio, desta classe dominante, é a conjuntura mundial que tem repercussões profundas na sociedade angolana; a crescente tomada da consciência da sociedade, sobretudo da camada juvenil; e a vitalização da Oposição cujo dinamismo é evidente no Parlamento e na Sociedade. Isso põe em causa a estratégia da restauração do «partido-único», preconizada no rescaldo da guerra-civil, em 2002, que suscitou as duas escolas de pensamento.

Portanto, é bem provável que, desta vez, a segunda escola de pensamento esteja a formular novas estratégias de como ressuscitar o plano de genocídio – no Pós-JES – através de um «bode expiatório». Portanto, é efectivamente isso que preocupa vários círculos da sociedade angolana e da comunidade internacional.