Luanda - As autarquias não são um negócio de cantina. Realizar eleições autárquicas não é o mesmo que instalar, do dia para a noite, uma cantina e começar a vender os mais variados produtos com o fim de obter lucros imediatos. Qualquer político esclarecido sabe que não é assim que as coisas funcionam, menos, é óbvio, os que querem lucros políticos imediatos.

Fonte: JA

Com o devido respeito que tenho por todos os pequenos comerciantes e pela função útil que desempenham na sociedade, começar este texto assim não tem por objectivo depreciar a sua profissão. O objectivo é, antes de mais, destrinçar a complexidade que vai entre montar um negócio de cantina e a instalação e o exercício do poder autárquico, que não se resume à realização de eleições para umas quantas pessoas passarem a dirigir os destinos de um determinado município.

Comecemos por dizer que quando se fala de autarquias é apenas nas eleições que se concentram os interesses de muitos políticos, não se importando com as grandes questões que se levantam à sua implementação, no caso de Angola agravadas pelos anos de guerra que o país viveu, pelo êxodo populacional que se verificou do campo para a cidade e, sobretudo, pelo crescimento desordenado que a cidade capital conheceu.

De facto, entre outras questões por abordar, aqui começa um dos grandes problemas para a criação das autarquias. Muitos bairros em vários municípios não estão infra-estruturados e a sua construção não obedeceu a um plano de urbanização. O número de polícia de incontáveis habitações (que identifica as casas num determinado espaço público) não existe e em éne casos é impraticável a sua fixação. A guerra empurrou milhares de cidadãos para a capital do país e Luanda não podia negar-lhes abrigo. Quando se pensava que com o fim do conflito militar a situação iria inverter-se, a verdade é que o fluxo não parou e estima-se que Luanda tenha hoje mais de sete milhões de habitantes.

Como frisou o Presidente da República na sua intervenção segunda-feira na sede do Governo Provincial de Luanda, “aumentou a construção informal de bairros periféricos sem infra-estrutura mínima indispensável e sem condições de habitabilidade e salubridade. Muitos bairros com carência de serviços básicos como saúde e educação, abastecimento de água potável e energia eléctrica, esgotos, limpeza regular e recolha de lixo”. É dever do Executivo levar a essas pessoas o bem estar e dar-lhes condições para que possam ter uma vida digna.

Precisamos de saber quantos habitantes tem o Cazenga, o Sambizanga, o Rangel, o Cacuaco, o Prenda e por aí adiante e só o Censo Geral da População e Habitação nos vai fornecer, nos próximos tempos, números mais fiáveis. Pois é preciso saber também qual a população votante de um determinado município e definir em lei onde ela pode votar nas eleições autárquicas, para garantir que o sufrágio local vai corresponder ao que legalmente for definido e reflectir a expressão da vontade dos eleitores desse espaço.

As autarquias requerem uma reorganização profunda do país e o Executivo está atento à questão, de tal sorte que, de um tempo a esta parte, tem vindo a dedicar horas e horas de palestras e abordagens sobre o assunto, de modo a que a sociedade entenda da melhor forma possível a importância da sua implementação e, em particular, os ganhos que podem ser obtidos para o desenvolvimento do país se elas forem implementadas da melhor maneira, da forma mais correcta. Assim é que académicos de Portugal, Brasil, Moçambique e Argentina estiveram o ano passado no nosso país. Em conjunto com angolanos foram unânimes em considerar que o processo de concretização das autarquias em Angola deverá ser efectuado de forma gradual e progressiva, respeitando as assimetrias geográficas, culturais e o desenvolvimento económico de cada região.

As palestras foram realizadas porque, como assunto político de certa forma novo para os angolanos, e porque nem todo o mundo conhece a fundo o fenómeno autárquico, é necessário acautelar para que não nos deixemos levar pelas emoções do discurso. Alguns políticos pensam que as autarquias vão resolver todos os seus problemas quando, se o processo não for bem conduzido, pode desembocar no caos com evidentes prejuízos para a população.

Este fiapo de introdução tem como propósito trazer à baila as declarações do líder da UNITA que, em conferência de imprensa quinta-feira, afirmou que “Angola precisa de organizar as suas autarquias locais e de eleger com urgência os três órgãos do poder autárquico que a Constituição prescreve no seu artigo 220º.” Ao refutar a iniciativa do Presidente da República, de lançar um “processo de desconcentração administrativa de Luanda, de uma maneira profunda e mobilizadora”, com o objectivo de “pôr a funcionar o aparelho da administração provincial e das administrações municipais em pleno, de modo a superar o atraso em que Luanda se encontra e ajustar o passo da governação ao crescimento da procura de serviços públicos”, fica evidente que o líder da UNITA preferia ver o Executivo ter uma atitude de imobilismo.

Samakuva considera o passo dado como sendo “inconstitucional”, mas a verdade é que a Constituição angolana só é citada em leituras apressadas e quando lhe convém à si e à UNITA. O presidente do maior partido da oposição desdobrou-se mesmo em referências a alguns artigos da Constituição para falar de descentralização e de desconcentração de poderes, fazendo recurso a definições doutrinais de um e de outro conceito. Porém, preferiu ignorar propositadamente o artigo 215º, o qual no seu ponto 2 estabelece que “uma parte dos recursos financeiros das autarquias locais deve ser proveniente de impostos e recursos locais”. Ou seja, que é preciso criar condições de auto-financiamento para as autarquias, pois o seu funcionamento não deve depender do Orçamento Geral do Estado. E como disse em tempos uma voz autorizada, “sem orçamento, a autarquia fecha no dia seguinte. E o dinheiro tem de provir da contribuição dos cidadãos e, nesse aspecto, é importante a arrecadação de impostos”. A importância do poder central na viabilização do processo é incontornável, e é isso que faz o Executivo estar empenhado, embora Samakuva se tenha esforçado em dar a entender que só há democracia aí onde há descentralização de poder, o que é errado.

Tal como é errado pensar que a instalação das autarquias é, de per si, garantia de participação democrática dos cidadãos na gestão transparente dos recursos alocados. Os exemplos de recentralização desmentem esse ponto de vista. As autarquias devem servir o progresso e não o contrário. Defender a instauração do poder autárquico com urgência tem mais de desespero do que de realismo e é querer ver Luanda a caminhar para o abismo.