Luanda - As dinâmicas sociais, económicas, políticas e culturais das sociedades hodiernas impõem desafios exigentes e contínuos ao ensino superior. Tal asserção é ainda mais relevante e gritante no nosso contexto (sociedade angolana), pois – entendo – estarmos, ainda, no processo de construção do nosso ‘‘modelo de ensino superior’’. E, quer sob o ponto de vista dos desafios societais (latu senso), quer sob o ponto de vista dos desafios que se colocam na construção do nosso ‘‘modelo de ensino superior’’, a partilha de conhecimentos, ideias e opiniões sobre as questões estruturantes do nosso ensino superior revela-se producente, porquanto, augura-se, um ensino superior capaz de responder satisfatoriamente aos desafios que lhe são impostos pela sociedade angolana no limite do seu trinómio ontológico – ensino, investigação e extensão.

Fonte: Club-k.net

Para um ensino holístico

Este texto traduz uma sucinta reflexão suscitada pelo artigo de opinião assinado por Felipe Zau (Historiador, Investigador, Professor, Escritor, Letrista e Músico), publicado no Jornal de Angola (de 23 de Março, Ano 37, n.o 13248), intitulado ‘‘O faz de conta de uma encenação académica quotidiana’’, no qual, o também pedagogo, coloca na centralidade do seu texto a questão da ‘‘necessidade, ou não da formação pedagógica para os professores do ensino superior’’, continua o autor, ‘‘muitas vezes posta em causa por docentes em exercício de funções no nosso país’’.Outrossim, o autor frisa a visibilidade do problema da ausência ou insuficiência da formação pedagógica e da gestão universitária dos professores e dos gestores das instituições de ensino universitário como estando na base da crise estrutural e conjuntural do ensino superior em África, sublinhando a necessidade de, nos países em desenvolvimento, mais do que a competência técnica, é necessário possuir espírito de iniciativa e um certo sentido pedagógico.

Neste diapasão, Filipe Zau assina uma ‘‘cura pedagógico-legalista’’. O autor entende que o que está em causa no ‘‘faz de conta de uma encenação académica quotidiana’’ não é ‘‘somente o nível e qualidade de conhecimentos que os académicos já possuem ou vão adquirindo, mas a forma adequada de como os transmitem aos estudantes, o que apenas é possível mediante a apropriação de uma metodologia específica direccionada para o ensino superior’’. O autor – que subscreve uma pós‐graduanda pela Faculdade de Ciências Humanas, Económicas e da Saúde de Araguaína – vêem proclamar o ‘‘momento de se acabar, de uma vez por todas, com a quotidiana cena teatral dentro da sala de aula, na qual o professor faz de conta que ensina e o aluno faz de conta que aprende’’.

Confesso que tão logo li o título do artigo e o nome do respectivo subscritor, redimensionei a minha atenção para o conteúdo, uma vez que as questões do nosso quotidiano académico sempre me suscitaram interesse, seja enquanto estudante (noutrora), seja como professor (hoje). Todavia, se por um lado, a pertinência da insuficiência ou ausência de formação pedagógica por parte de alguns docentes do ensino superior – porque não me parece pedagogicamente sóbrio tomar algumas árvores pela floresta – traduz-se de revestida importância, por representar um indicador qualitativo para a credibilidade do ensino superior, por outro, o meu espanto foi a perspectiva reducionista do ensino superior proclamada pelo autor, o prisma sob o qual o mesmo entende ser a academia, e a falta de Pedagogia com que trata a questão da formação pedagógica para os professores do ensino superior.

As discussões académicas sobre a necessidade de mudança do paradigma didáctico-pedagógico – de uma concepção monista: centrada no professor como o detentor do conhecimento, e o estudante como um mero recipiente (tábua rasa e passivo) onde o professor por meio da exposição tradicional, procura preencher o depósito vazio, para um paradigma em que o professor é, por excelência, um criador de situações de aprendizagem, em que o estudante passa a ter um papel proactivo na construção dos seus próprios conhecimentos, e todo um conjunto de experiências educativas (formais e informais) passam a ter relevância no processo

ensino‐aprendizagem, uma concepção pluralista e participativa – ganharam maior visibilidade na segunda metade do século XX (ver Libânio, 1994, ‘‘Didáctica’’, Cortez, São Paulo), e a pertinência do domínio das ferramentas metodológicas por parte dos docentes é uma marca dessa viragem paradigmática. Essa mudança de paradigma também invadiu a ‘‘cultura didáctico-pedagógica do ensino superior’’ onde a dimensão do saber fazer pedagógico, era e continua a ser, ainda, relativamente menos determinante – essa é a realidade.

A questão da formação pedagógica dos docentes do ensino superior não pode ser vista como o exclusivo ‘‘santo gral’’ para os problemas e desafios da academia (ensino superior), por uma questão muito sóbria: o ensino superior mais do que o saber fazer pedagógico, é, antes de mais e sobretudo saber fazer técnico-científico. Tão verdade assim é que a avaliação das instituições do ensino superior e dos respectivos docentes é qualitativamente baseada na dimensão do saber fazer técnico. Isto não significa dizer que o docente do ensino superior não precise do saber fazer pedagógico, mas, significa sim, que o ensino superior é mais vocacionado para a profissionalização técnica (quer seja nas áreas das ciências de educação, quer em outras áreas do saber), e a componente didáctica é um ingrediente qualitativo do processo de ensino-aprendizagem no ensino superior (e não só).

Talvez importe não perdermos de vista a consideração de que há pedagogia antes e para além do ensino. Aliás, Libâneo (2005) – na sua obra ‘‘Pedagogia e Pedagogos, para quê?,editora Cortez, São Paulo – reflecte sobre a natureza da Pedagogia e dos pedagogos, e o que distingue, funcionalmente estes, da actividade profissional do professor. Entende este autor que a Pedagogia ocupa-se do estudo sistemático das práticas educativas existentes em todos os contextos da existência individual e social humana (informal e formal), sendo que o pedagogo é o profissional que poderá não ser professor, mas que estude e investigue as práticas educativas (formais e informais) de uma determinada sociedade – geralmente, formados em nível superior de Pedagogia. Já actividade profissional do professor representa uma forma específica do trabalho pedagógico (ensino, neste caso superior): ‘‘todo trabalho docente é trabalho pedagógico, mas nem todo trabalho pedagógico é trabalho docente’’ (Libâneo, 2005:39).

A especificidade da coexistência das actividades de investigação e de ensino no ensino superior, com a sobrevalorização das primeiras, inspira uma abordagem holística sobre as práticas educativas do ensino superior, onde, num primeiro momento o docente tem de dar provas das suas aptidões técnico-científicas, e num segundo, dar provas da sua capacidade de tomar decisões assertivas sobre a forma de ensino porque vai optar ‘‘a transposição didáctica’’ (Chevallard, 1991,‘‘La transposition didactique’’, 2a ed., La Pensée Suavage: Grenoble). O tacto didáctico do docente transcende a mera observação – muitas vezes semânticas e romancistas – das prescrições normativas da didáctica, o tacto pedagógico constrói-se, sobretudo, por meio de uma aprendizagem da acção docente, que pode ser garantida – para além de outros recursos possíveis – por uma socialização da prática profissional supervisionada (ver por exemplo, Chism, 2002, ‘‘Faculty development for teching innovation’’, acessível online: www.findarticules.com). Prova disso é a evidência fácil de que, em todos os sistemas de ensino superior do mundo, uma minoria dos professores possui agregação pedagógica, e o curioso é que na sua maioria, todos os docentes do ensino superior, devem dar provas da sua arte de transposição didáctica, na sua especialidade.

A questão da insuficiência/inexistência de formação pedagógica, scritu senso, da maioria dos professores do ensino superior no mundo não reduz a prática do ensino superior a teatralidade do faz de conta de um processo de ensino-aprendizagem, pelo contrário, o défice de formação didáctico-pedagógica dos docentes do ensino superior resulta da ‘‘path dependence’’ da centralidade do saber fazer técnico-científico no ensino superior que é, ainda, a sua marca indelével (Kogan, 2001, ‘‘Self-evaluation, education of teacher and quality in higer education’’, em: A formação pedagógica dos Professores do Ensino Superior, organizado por I. Romão, edições Colibri, Lisboa), tal julgamento e adjectivação reducionista, revela, curiosamente: desconhecimento pedagógico das práticas educativas do ensino superior.

No caso do nosso ensino superior em concreto – reitero, em construção – mais do que os problemas ligados ao saber fazer pedagógico, temos, ainda desafios do saber fazer técnico‐científico, outrossim, sem deixar de ter em consideração os desafios de natureza estrutural e organizacional (e sua inerente regulação) do nosso ensino superior, e a sua capacidade de responder às demandas sociais, grosso modo. Mormente, tem vindo a crescer a oferta formativa de cursos de agregação pedagógica para docentes do ensino superior. Todavia, não podemos cair na vertigem da prescrição salvífica da agregação pedagógica como uma meta a cortar para a solução dos nossos desafios, pois, mesmo esta, deverá ser encarada como um caminhar que aprende com os obstáculos do caminho percorrido, que concorrerá, entre outros factores, para a qualidade do ensino superior.

A reflexão sobre as práticas educativas no ensino superior não deverá deixar de ter em conta a realidade social, económica, política e cultural do nosso país, numa perspectiva holística, capaz de, em função da nossa realidade, buscar e concretizar as soluções adequadas para um ensino superior credível e proactivo, trata-se apenas do ‘‘teaching to teach’’. Recuso-me a aceitar que até hoje a academia (ensino superior) em Angola não passa de um faz de conta, de uma teatralidade fingida entre professores que fingem que ensinam e alunos que fingem que aprendem. Importa sobriedade pedagógica.