Luanda - "As autarquias locais são o melhor parceiro institucional do Estado para promover e garantir tanto os direitos e  liberdades fundamentais dos cidadãos como o desenvolvimento harmonioso do país”.

Fonte: Club-k.net

A Constituição refere-se à existência das autarquias locais como componente da organização democrática do Estado. A autonomia das autarquias locais é, assim, um princípio estruturante da organização política e da organização territorial do Estado. A autonomia local implica descentralização territorial, ou seja, a negação da centralização no Estado de todas as tarefas político-administrativas.

Hoje, não é concebível um Estado Democrático, respeitador dos direitos e liberdades fundamentais da pessoa humana, sem a consagração da autonomia local. O Professor português Freitas do Amaral, é bem claro sobre o conceito e a natureza do Poder Local, quando ensina:

“Em nossa opinião, só há poder local quando as autarquias locais são verdadeiramente autónomas e têm um amplo grau de autonomia administrativa e financeira: isto é, quando forem suficientemente largas as suas atribuições e competências, quando forem dotadas dos meios humanos e técnicos necessários, bem como dos recursos materiais suficientes, para as prosseguir e exercer, e quando não forem excessivamente controladas pela tutela administrativa e financeira do poder central”.

Este é o poder local que a nossa Constituição estabelece no seu Título VI.

Comparando com Portugal, Freitas do Amaral afirma: “Existe poder local sem dúvida na Inglaterra e na Alemanha; talvez exista em França; em Portugal não existe com toda a certeza. Porque  as competências das autarquias locais são restritas, os meios humanos e técnicos disponíveis são escassos, os recursos financeiros claramente insuficientes, e a tutela do Estado sobre as autarquias locais – depois de algum tempo de atenuação – recrudesceu fortemente nos últimos anos através de vários diplomas governamentais de duvidosa constitucionalidade ( por exemplo na área do ordenamento do território e do urbanismo)”. – Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 3ª ed, Vol I, pág. 488.

Esta não foi a opção do nosso legislador constituinte.

O Professor Melo Alexandrino, outro catedrático que estudou profundamente o Poder Local consagrado na nossa Constituição e que organizou o I CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS E GOVERNAÇÃO LOCAL oferecido pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, através do Centro de Pesquisas em Políticas Públicas e Governação Local, afirma que “Angola encontra-se numa situação extraordinariamente favorável ao florescimento do poder local”.

O poder local na CRA, afirma ele, “corresponde a uma expressão constitucional que assinala enfaticamente a presença de uma verdadeira dimensão do poder político (democrático e tradicional). Em contraposição, não estamos na presença de um simples segmento da administração pública (na verdade, tanto a CRP como a CRA colocam a regulação do poder local fora da matéria da Administração Pública, com uma diferença: na CRP, o poder local ainda surge dentro do título sobre a organização do poder político do Estado; na CRA, o poder local surge num título separado do título sobre a organização do poder do Estado). Num caso como no outro, como sustenta o Professor Melo Alexandrino, trata-se de poder político!

Sendo uma dimensão do poder político é, no entanto, um poder político não-soberano (não invade nem pode ameaçar os poderes de soberania reservados ao Estado, que continua unitário); é um poder que tem de conviver com outros poderes, públicos, tradicionais e privados, designadamente com outros poderes administrativos do Estado, em especial os de controlo (artigo 221.º da CRA). Mas é um poder imprescindível para promover o desenvolvimento tanto das pessoas como do território.

Estes poderes locais têm na CRA diversas feições: (i) ora derivam do ordenamento do Estado, mas são democráticos e autónomos; como as autarquias (ii) ora dispõem de um ordenamento originário próprio e exercem poderes tradicionais; e ao Estado cabe apenas reconhecê-los, mas não criá-los, como as autoridades tradicionais (epígrafe do artigo 223 da CRA) (iii) ora são meros poderes legais de participação em actos, procedimentos, órgãos ou instituições.

Já o conceito de autarquia local representa uma realidade totalmente distinta, uma vez que para a sua delimitação não deixam de confluir a história, o Direito comparado, o direito positivo e a doutrina, na medida em que se trata de um conceito universalizável, na base de uma história jurídica muito rica.

Segundo Canotilho, a existência de autarquias locais é uma garantia institucional (art. 213, nº 1): “A organização democrática do Estado ao nível local estrutura-se com base no princípio da descentralização político-administrativa, que compreende a existência de formas organizativas do poder local...As formas organizativas do poder local compreendem as Autarquias Locais...”. e, por isso, transporta um núcleo ou reduto de poder local indisponível pelo Estado. Como dimensões concretas deste núcleo essencial do poder autárquico serão de relevar: 1) o direito à existência; neste sentido, poder local implica autogoverno local, ou seja, “governo próprio” por meio de órgãos representativos eleitos pela colectividade de base, e não por órgãos nomeados do exterior.

Canotilho advoga ainda que a garantia institucional da autonomia local requer, entre outras coisas, que as autarquias disponham de meios financeiros suficientes e autónomos e que gozem de autonomia na gestão desses meios. Concretamente, a autonomia financeira das autarquias locais compreende designadamente o direito de: (1) elaboração, aprovação e alteração de orçamentos próprios e dos planos de actividade; (2) elaboração e aprovação de balanço e contas; (3) arrecadação e disposição de receitas próprias; (4) efectivação de despesas sem necessidade de autorização de terceiros; (5) gestão patrimonial própria. Esta autonomia financeira requer a autodeterminação financeira, de modo que a vida financeira das autarquias não fique dependente de actos discricionários do poder central.

A autonomia financeira, aliada ao leque de atribuições e competências que o legislador constituinte atribui às autarquias, revela de forma inequívoca a sua intenção de fazer das autarquias os principais promotores do desenvolvimento do país e na redução das assimetrias locais e regionais: “Os recursos financeiros das autarquias locais devem ser proporcionais às atribuições previstas pela Constituição ou por lei, bem como aos programas de desenvolvimento aprovados” (Art. 215º e 222º da CRA).

É pois imperioso que, no cumprimento da sua tarefa fundamental de “efectuar investimentos estratégicos, massivos e permanentes no capital humano, com destaque para o desenvolvimento integral das crianças e dos jovens, bem como na educação, na saúde, na economia primária e secundária e noutros sectores estruturantes para o desenvolvimento auto-sustentável”; e de promover o “desenvolvimento tecnológico e económico do País”, como manda a CRA (art. 21º (i), 42º nº4), o Estado o faça em cooperação com as autarquias locais, pois a Constituição impõe-lhes as mesmas obrigações.

De igual modo, o Estado providenciará recursos e coordenará com as autarquias locais a implementação de politicas e programas para promover o desenvolvimento social através de: a) adopção de critérios de redistribuição da riqueza que privilegiem os cidadãos e em particular os extractos sociais mais vulneráveis e carenciados da sociedade; b) Fomento, apoio e regulação da intervenção do sector privado na realização dos direitos sociais; e d) Remoção dos obstáculos de natureza económica, social e cultural que impeçam a real igualdade de oportunidades entre os cidadãos (art. 90º da CRA).

Os auxiliares do Titular do Poder Executivo, a academia, a sociedade civil, a comunicação social, todos prestaremos um bom serviço ao País se contribuirmos activamente para convencer os poderes públicos que as autarquias locais são o melhor parceiro institucional do Estado para promover e garantir tanto os direitos e  liberdades fundamentais dos cidadãos como o desenvolvimento harmonioso do país.

RECOMENDAÇÃO

É urgente que se concretize a orgânica das instituições do Poder Local. Há que criar as autarquias locais como “pessoas colectivas públicas de população e território, correspondentes aos agregados de residentes em diversas circunscrições do território nacional, e que asseguram a prossecução dos interesses comuns resultantes da vizinhança mediante órgãos próprios, representativos dos respectivos habitantes”.

Os Municípios, tal como se apresentam, não são entes territoriais com personalidade jurídica distinta do Estado. Nem dispõem de uma comunidade de residentes politicamente organizada (e como tal reconhecida pelo Direito); nem são definidos pelo território, uma vez que este não passa de uma circunscrição administrativa local do Estado, nem prosseguem interesses próprios da comunidade local, mas sim interesses estaduais. Nem dispõem de órgãos democraticamente eleitos pelas populações, mas sim de órgãos nomeados pelo Estado. Nem, finalmente, exercem poderes locais autónomos, mas sim poderes estaduais. Por tudo isso, os Municípios hoje não constituem autarquias locais, mas meras extensões desconcentradas da Administração local do Estado (artigo 201.º da CRA).

Se não existem autarquias, não se lhes podem atribuir competências, mesmo doseadas. Nem atribuir recursos financeiros. Nem afectar recursos humanos.

Temos de criar primeiro as autarquias como entes distintos do Estado. Depois vamos definir tanto o grau de doseamento das atribuições a transferir do Estado para as autarquias, como os procedimentos de repartição dos recursos entre o Estado e as autarquias.

Portanto, precisamos de aprovar a Lei Orgânica Sobre a Organização e Funcionamento dos órgãos do Poder Local, e todo o restante pacote legislativo. A sua aprovação é uma imposição constitucional. Protelar a sua aprovação é protelar o desenvolvimento do país e violar a lex mater.