Lisboa - Escrever sobre autarquias locais, numa clara desarticulação com os postulados constitucionais vigentes que distinguem órgãos da Administração Local do Estado de agentes autónomos da descentralização político-administrativa, com o claro objectivo de induzir pessoas em erro, constitui um dos graves actos de incoerência intelectual e desrespeito pelos cidadãos que alguns responsáveis dos partidos da oposição estão a praticar através de textos que publicam.

Fonte: Club-k.net

A Constituição de 2010 consagra duas variantes de organização do poder administrativo local. E quais são? A primeira é a actual Administração Local do Estado que compreende, nos termos do artigo 201.o, n.o 1 (Título V), os órgãos desconcentrados da administração, aos quais comummente chamamos por municípios e estes podendo ainda estruturar-se em comunas (art. 5.o, n.o 3). E a segunda é a futura organização democrática e territorialmente circunscrita das localidades que, com base no princípio da descentralização político-administrativa, cria órgãos autónomos do poder local (art. 213.o, n.o 1, Título VI), publicamente conhecidos por autarquias (art. 213.o, n.o 2, 217.o até 222.o) e instituições do poder tradicional (art. 223.o, remissível ao n.o 2 do art. 213.o).

Diante do que acabamos de apresentar, torna-se esclarecedor de que no país, à luz da Constituição vigente, existem municípios e também podem ser criadas autarquias locais. Portanto, o facto de o texto constitucional prever a existência da descentralização político-administrativa não significa que os órgãos desconcentrados da administração local do Estado não devam existir, muito menos pode falar-se em “revogação” dos municípios a julgar pelas normas constitucionais que consagram as autarquias locais. O recurso a uma afirmação daquela índole por parte de qualquer jurista da oposição denota um grande ausente de conhecimento jurídico-dogmático sobre a Constituição e o significado da palavra “revogação”.

Neste âmbito, importa explicarmos que revogação existe quando uma lei nova declara revogar a lei anterior (revogação total) ou algumas normas da lei anterior (revogação parcial). As revogações podem ser ainda real, tácita da lei, unilateral, penal e de proposta, mas todas estas não se aplicam ao presente caso sub judice.

Destarte, se a nova Constituição consagra a existência de municípios e autarquias locais ao mesmo tempo, que outro ordenamento constitucional existe em Angola que veio “revogar” os municípios? Com certeza, não há nenhum. No entanto, a nossa Carta Magna de 2010 prevê a organização das autarquias locais nos municípios (art. 218.o, n.o 1), nas áreas supramunicipais (art. 218.o, n.o 2 ) ou inframunicipais (art. 218.o, n.o 3). Tendo em linha de conta que o texto constitucional prevê duas variantes de organização do poder administrativo local, resulta que alguns municípios, ao abrigo do princípio do gradualismo (art. 242.o), vão adoptando, com base em lei específica (art.os 217.o, n.os 2 e 3, 219.o, 222.o, n.o 2), o carácter de autarquias locais, sem prejuízo da contínua existência de outros municípios na província de Luanda como noutras.

Cada autarquia local não constitui uma unidade orçamental autónoma, embora a sua administração tenha autonomia face ao poder central, porque é instituída por acto eleitoral (art. 220.o, n.o 5 da CRA) que apenas cidadãos de cada zona autárquica exercem para a escolha do seu presidente, da assembleia deliberativa e do órgão executivo (art. 220.o, n.os 1, 2, 3 e 4). A margem do art. 215.o, n.os 1 e 2 da CRA, verificamos que o âmbito da autonomia compreende recursos financeiros provenientes do Estado proporcionais às atribuições das administrações autárquicas previstas na Constituição ou na lei, sem embargo de parte das receitas ter origem nos rendimentos e nos impostos arrecadados localmente. Contudo, esta autonomia poderá estar ainda associada ao rigor do controlo orçamental público para manutenção de níveis favoráveis de despesa e endividamento.

As autarquias estão ainda sujeitas aos princípios da solidariedade e cooperação, na medida em que, com o incentivo do Estado e fixação por lei de formas de cooperarem e solidarizarem-se, os órgãos da administração autónoma agem no sentido de contribuírem para a redução das assimetrias locais e regionais.

Os administradores municipais não respondem ao poder central, como afirmam erradamente os responsáveis da UNITA que, somente por desconhecerem a estrutura do Estado angolano e ignorarem a Constituição, podemos perceber que são capazes de cometer tamanha heresia. Em termos administrativos, a administração central ou directa do Estado compreende apenas o Executivo, os Ministérios, os órgãos e serviços centrais.

Assim sendo, perguntar-nos-íamos: que tratamento jurídico-administrativo daremos aos municípios? Antes de responder a questão, importa reafirmar que a Administração do Estado pode ser de nível local, e dentro dela hierarquizam-se as províncias, os municípios, as comunas e outros entes administrativos. Se verificarmos a hierarquia destes três órgãos e por ser do conhecimento comum, chegaremos logo à conclusão de que o Governo Provincial é o único representante da Administração Central na respectiva província, como refere o art. 16.o da Lei 17/10, de 29 de Julho – Lei da Organização e do Funcionamento dos Órgãos de Administração Local do Estado. O Governador é nomeado e exonerado pelo Presidente da República (art.os 17.o, n.o 1 e 18.o, n.o 3 da lei supracitada, bem como o art.119.o, al. k) da CRA) a quem também responde pelas acções e omissões no exercício das suas funções (art. 16.o, n.o 1 da Lei 17/10). Em resposta à pergunta, podemos, portanto, considerar que os termos conjugados dos art.os 43.o e 49.o do mesmo diploma são claros ao definir os municípios como sendo órgãos desconcentrados da administração na província e os administradores municipais como representantes do Governo Provincial a nível da municipalidade. Portanto, os administradores municipais não dependem do Titular do Poder Executivo (art. 108.o, n.o 1), por que são politicamente responsáveis perante os governadores provinciais, a quem compete exonerá-los ou nomeá-los após consulta ao ministro da Administração do Território (art.os 50.o e 19.o, alínea f) da Lei 17/10).

O uso equivocado da expressão “inconstitucionalidade por omissão”

Lê-se, amiúde, nos sítios de internet e nos jornais, afirmações segundo as quais a inexistência de autarquias locais constitui uma inconstitucionalidade por omissão. Para melhor esclarecimento deste ponto, cumpre-nos o dever de clarificar quatro questões fundamentais em torno do assunto: 1) Em que tipo de normas a Constituição consagra as autarquias? 2) A quem compete legislar sobre as autarquias? 3) O que é uma inconstitucionalidade por omissão? 4) Quem pode declarar a existência de inconstitucionalidade por omissão?

Todas Constituições do mundo contêm normas preceptivas e programáticas e a nossa não foge à regra. As normas preceptivas são aquelas de aplicação imediata por causa do teor de pendor completo da sua mensagem, como por exemplo o art. 30.o da CRA sobre o direito à vida, que não carece de nenhuma outra lei para sabermos se o Estado angolano deve respeitar a vida ou não. A norma já diz tudo: a vida é inviolável. Mas matérias sobre autarquias locais, partidos políticos (art. 17.o CRA), nacionalidade (art. 9.o, n.o 5) entre outras, pela sua natureza, são sempre consagradas em normas programáticas. O que elas definem? Segundo os Professores Doutores Jorge Miranda, Gomes Canotilho, assim como os renomados constitucionalistas João Pinto e Carlos Feijó, as normas programáticas não se aplicam de forma imediata, são deferidas, são comandos-valor porque dependem de outras leis específicas para ganharem aplicação prática. Por exemplo, o artigo 217.o CRA que prevê as autarquias locais determina que a sua organização, funcionamento e competências dos respectivos órgãos são regulados por lei. A que lei se refere a Constituição? Trata-se da futura Lei das Autarquias Locais e todos regulamentos que vão assegurar a prática do normal funcionamento dos órgãos autónomos da descentralização político-administrativa.

Na segunda questão, perguntávamo-nos sobre quem compete legislar quanto às autarquias locais. Nos termos do art. 164.o CRA, podemos verificar que cabe, de modo absoluto, à Assembleia Nacional ter a iniciativa legislativa sobre a lei do poder local e as bases do seu sistema de organização e funcionamento. Portanto, qualquer alegação segunda a qual o Titular do Poder Executivo é quem deve ter a iniciativa de legislar sobre autarquias locais representa um juízo errado de quem desconhece as reais competências constitucionalmente previstas do Chefe de Estado (art.os 120.o e 165.o CRA). No âmbito das autarquias locais e respeitando o princípio da separação de poderes (art.os 2.o, 105.o, n.o 3 CRA), cabe apenas ao Presidente da República convocar as eleições autárquicas (art. 119.o CRA) e assegurar a observância da tutela administrativa (art. 221.o), uma vez que os órgãos de soberania (art. 105.o) velam pela legalidade dos actos de entes desconcentrados ou descentralizados do poder local e de outras entidades públicas em geral (art. 6.o, n.os 2 e 3 CRA).

O que é uma inconstitucionalidade por omissão e quem deve declarar? No entendimento sobre esta questão podemos considerar que omitir de forma juridicamente relevante resulta do incumprimento por parte da Assembleia Nacional, do Presidente da República ou do Tribunal Constitucional por não praticarem actos obrigatórios nas condições constitucionalmente exigíveis e dentro de um tempo útil, provocando uma inconstitucionalidade por omissão que depende sempre da declaração requerida por figuras legítimas junto do Tribunal Constitucional.

Fazendo um recorte jurídico da consideração feita, podemos extrair dois grandes indicadores. E quais são? O primeiro prende-se com facto de a Constituição não prever um tempo limite dentro do qual a Assembleia Nacional obriga-se a legislar sobre autarquias locais. O segundo respeita à competência na medida em que somente o Titular do Poder Executivo, 1/5 dos Deputados em efectividade de funções ou o Procurador-Geral da República podem requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade por omissão (art. 232.o CRA). Portanto, constitui uma atitude a todos níveis reprováveis qualquer afirmação sobre existência de inconstitucionalidade por omissão sem que o Tribunal Constitucional declare. Mas a questão da inconstitucionalidade, que recorrente e erradamente alguns juristas da oposição levantam, representa um falso problema. Porquê? Porque não havendo prazos para legislar, a actual inexistência de leis específicas e outros pressupostos formais sobre autarquias locais representam apenas uma omissão legislativa, pelo que não exige qualquer juízo de prognose do Tribunal Constitucional, uma vez que, pelo papel que desempenha, é sempre em pouco tempo que a Assembleia Nacional toma a iniciativa legiferante sobre novas matérias, abrangendo as autarquias locais.