Luanda - Para além do jornalismo, se tivesse que escolher uma outra profissão onde consegui coleccionar os melhores amigos ao longo da minha vida vivida, que já ultrapassou a média africana e angolana, diria que foi na medicina que tal recolha aconteceu, com um balanço a todos os títulos positivo para o meu enriquecimento, enquanto ser humano que nunca vou deixar de ser. Prometo que assim será.

Fonte: Vida

Esta promessa parece ser  redundante e algo provocatória, mas diante de algumas estranhas metamorfoses actuais, que se verificam tanto em Angola como lá fora, acho que ela se justifica plenamente.

Os meus amigos médicos são pessoas com as quais mantenho as mesmas relações de amizade, cordialidade e grande respeito que sempre caracterizaram o nosso relacionamento desde que nos conhecemos.

Felizmente para mim e para o próprio país, os meus amigos médicos estão quase todos vivos, tendo já ultrapassado todos eles, de uma forma geral, a barreira dos 60.

Quando os conheci eles eram muito mais velhos/maduros do que eu, mas hoje já somos quase todos da mesma idade, com os netos a aproximarem-nos ainda mais do mesmo estatuto de meios-anciãos que a terceira idade nos reserva.

Não gosto muito de vulgarizar a palavra amizade, embora seja muitas vezes obrigado a tal, por força desta nova e avassaladora onda de ressocialização que está a ser provocada pela “invasão” da Internet/Redes sociais.

No caso em apreço, falo de uma amizade verdadeira, passe o lugar-comum da expressão, que nasceu, desenvolveu-se e fortaleceu-se, num contexto que não tem nada a ver com os tempos modernos e fugazes das novas tecnologias de informação, onde até podemos ter o mundo nas nossas mãos, mas já não temos tempo (nem paciência) para construir amizades sólidas, como acontecia há 40 anos.

Com o país a preparar-se para celebrar em 2015 os 40 anos da Dipanda, de facto tenho nos médicos angolanos o grupo socioprofissional onde encontrei, no pós-independência, as melhores referências em matéria de amizade, solidariedade e exemplos a seguir.

Curiosamente a minha primeira mulher também é médica, embora na altura em que nos conhecemos ela ainda fosse como eu, mais um membro da “tribo” da comunicação social, tendo optado pelos estudos de medicina poucos anos depois do matrimónio.

Em matéria de valores o património ético que consegui amealhar em torno da conta bancária da minha personalidade, em muito se ficou a dever aos meus amigos médicos, por força do seu desempenho profissional mas não só.

Com alguns destes meus amigos continuo a partilhar até hoje a mesma visão do mundo em animadas discussões sempre que é possível, com todas as mudanças já verificadas, particularmente depois das quedas dos vários muros e do rompimento de outras tantas cortinas que pareciam ser de ferro, mas afinal eram mais de fumo, do que de outro material qualquer mais duradouro.

Há 40 anos quando tudo isto, que hoje se chama Angola independente começou, com o 25 de Abril de 1974, estes meus amigos médicos entregaram-se de corpo e alma e foram pau para toda a obra de um país que, no sector da saúde e do ensino da medicina, tinha ficado praticamente de tanga, com a saída dos portugueses.

Em grande medida, foram estes meus amigos que não permitiram que o pouco que tinha sobrado desaparecesse completamente, sobretudo na área da formação de novos médicos, alguns dos quais  hoje já são a nata da nossa medicina especializada com todas as pós-graduações/doutoramentos que depois foram fazer ao estrangeiro.

Alguém tinha que ficar para garantir a continuação da máquina, tendo os meus amigos preferido permanecer no posto, a troco da satisfação de garantirem o mínimo que o Sistema Nacional de Saúde (SNS), em condições casa vez mais debilitadas, ia provendo aos angolanos carentes de cuidados e assistência médica.

Esta semana e depois de muito recentemente ter conversado com alguém afecto ao sector sobre o estado da saúde/medicina em Angola, lembrei-me de escrever sobre os meus amigos médicos.

Devia-lhes esta atenção e este mimo.

Sei que a maior parte deles já se reformou, em condições que não me parece que tenham sido muito pacíficas.

Também não me parece que no interesse do próprio ensino da medicina e da manutenção do SNS, o país que é de todos nós, se possa dar ao luxo de deixar de contar com a valiosa contribuição destes quadros angolanos.

Foram efectivamente muitos os anos em que eles estiveram na linha da frente e souberam emprestar tudo o que sabiam e que tinham para oferecer a custo zero, se comparado com as tabelas que se praticam actualmente.

Esta avaliação é da minha inteira responsabilidade pois ninguém, como é evidente, me encomendou o sermão, já que pelo menos por aqui, por estas colunas, recebo tudo, menos “ordens”, venham elas de onde vieram, seja de cima, de baixo ou mesmo do meio, onde dizem que mora a virtude.

Para mim a virtude ainda mora na minha cabeça e na minha capacidade de decidir o que devo escrever e como o devo fazer.

Lembrei-me dos meus amigos não para meter a “foice em seara alheia” ou para realimentar qualquer “maka” que tenha ficado adormecida.

Não é nada disso, nem pouco mais ou menos.

Lembrei-me deles apenas para os homenagear, como tenho feito nestas colunas com várias personalidades que se destacam na nossa vida social.

Acho, entretanto, que eles, os meus amigos médicos, mereciam (e merecem) uma homenagem da própria Faculdade de Medicina da UAN que, pelo que julgo saber, ainda não lhes foi prestada, como pioneiros do ensino da medicina no pós-independência.

Pioneiros que continuam no activo e ainda têm muito para dar, “after all these years”…

 NA-Texto publicado no semanário “O País/Revista Vida/Secos e Molhados” (10-10-14)