Luanda - O presente artigo surge como tentativa de réplica de uma conversa amena havida na nossa página do Facebook (Juristas de Angola e Amigos), suscitada por um dos colegas de formação, que tanto prezo, relativamente ao conceito “Doutor”, em Angola.

Fonte: Club-k.net

A pretensiosa querela em torno do título “doutor” vem já dos tempos de Jesus Cristo cujo ataque enérgico “Doutores da Lei”, se pode ler em Mateus, Capítulo 23: 1-7;23-27.

Surgiram mais tarde os primeiros “Doutores da Igreja” (Católica Apostólica Romana) que são homens e mulheres reverenciados pela Igreja pelo especial valor de seus escritos, de suas pregações e da santidade de suas vidas, dando assim contribuição valiosa à fé, ao entendimento dos Evangelhos e da doutrina cristã. Citam-se entre eles Inácio de Antioquia, Clemente de Roma, Ireneu de Lyon, Santo Agostinho, Santa Catarina de Sena, São Gerónimo, São João Crisóstomo, São João da Cruz, Santa Teresa d’Ávila, São Tomás de Aquino...

Reza a história que o título de "Doutor" surge, pela primeira vez, por uma universidade, a um advogado, em Bolonha, que passou a ostentar o título de "Doctor Legum". Todavia, outras fontes defendem que o título de “doutor” esteve, desde sempre, associado à capacidade, à permissão de leccionar ou ensinar nas universidades, desde a proto-história, antes mesmo dos studia generale, e não à actuação profissional de advogados.

Há que se mencionar, por conseguinte, o Alvará Régio, editado por D. Maria, a Pia, de Portugal, pelo qual os bacharéis em Direito passaram a ter o direito ao tratamento de "doutor".

Quem é “Doutor”, hoje, em Angola? “D”outor ou “d”outor?

Em consonância com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa, a 16 de Dezembro de 1990 sob o DECRETO No 6.583, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008, dispõe o referido Acordo que é facultativo o uso da inicial maiúscula ou

minúscula nos axiônimos ou hagiônimos. Axiônimo é a forma cortês de tratamento, ou a palavra, ou locução com que se presta reverência a determinada pessoa. Por outro lado, hagiônimo é um nome sagrado, como Deus, Jeová, Alá, Ressurreição... Sendo facultativo o emprego da maiúscula ou da minúscula em tais casos é indiferente em “Doutor X” ou “doutor Y”.

Há o hábito, entre nós, de atribuir o título de “Doutor” a todo estudante universitário; a todo o indivíduo “barrigudo” e bem apresentado; aos médicos... A estes, fruto sobretudo da influência netista. Na aldeia verbis gratia e no contexto que veio da independência angolana, em 1975, “Doutor” era ou deveria ser todo o indivíduo que fosse versado em Medicina à guisa de Doutor António Agostinho Neto. E é por isso que não cabia (não cabe até hoje talvez) na cabeça de mais velhos que Dr. Jonas Savimbi fosse doutor, porque não “curava” ninguém e nem aparecia em consultórios médicos. Ignorância de nosso povo? Não tanto assim... Desingane-se quem assim pensa. Não é só o nosso povo. Jornalistas houveram aquando da declaração de Santa Teresinha do Menino Jesus “Doutora da Igreja”, pelo Santo Padre João Paulo II, sugerindo que a mesma se tornasse intercessora em favor dos hospitais públicos brasileiros e em favor dos doentes que são atendidos muito mal. Outros, padroeira da Pastoral da Saúde. Um claro equívoco dos jornalistas ao confundir esse título de "Doutor" com o sentido de "médico".

Há, outrossim, que frisar as conotações que o conceito “doutor” ganhou, em Angola, nos últimos decênios, à semelhança do conceito “amigo”. Quem é, de facto, hoje, seu amigo? Hoje, tudo e todos são “amigos”! Ora é a quitandeira que perpassa pela manhã com seu olhar meigo e hipnotizante: “amigo”, olha o cachucho fresco, compra só... Ora o chinês, procurando por um “biscato”: “amigo”, “não ter tabalho pala eu talabalhá”?... Ora é o/ a amigo/a no Facebook, mandando: oi “amigo/a”, tudo bem?... Ai este Facebook onde o inimigo chega a ser nosso “melhor amigo”; os/as rivais inconscientemente verdadeiros facebookambas...; onde os vizinhos de porta são “amigos” de noite on-line, mas exóticos de manhã, um ao outro, cruzando-se pelas escadas num assustador mutismo como que nada acontecesse entre ambos!

 

Etimologicamente, o vocábulo "doctor" procede do verbo latino "docere" ("ensinar"). Significa, pois, "mestre", "preceptor", "o que ensina". Da mesma família é a palavra "douto"que significa "instruído", "sábio". Será sábio necessariamente Doutor e vice-versa? Dizia um padre negando a uma proposta de seus superiores para este prosseguir os seus estudos de licenciatura na Europa: “Não irei à Europa, pois os livros que lá encontraria já os li”... Talvez houvesse algum exagero nisso! Mas ele é, de facto, um verdadeiro manancial de saber enciclopédico raro em nossos dias. Entretanto, nenhuma licenciatura; nenhum mestrado; nenhum doutoramento feitos... Apenas os cursos (superiores?) de Filosofia, de Teologia (ministrados pelo Seminário Maior de Cristo Rei, no Huambo) e dono de um Autodidatismo como seu vade mecum... Afinal, não é sem razão que Edgar Morin alude que “sem autodidatismo não há didatismo”.

Há-os, contudo, maior parte de nossos “doutores estúpidos”, como dirá alguém, que tudo fazem e exigem para que se lhes tratem por “Doutor” sem as devidas competências, sem as devidas habilidades; sem o devido traquejo nem craquejo... Tão só com a pretensão de se adquirir com esse desiderato um status quo social e academicamente proeminente. São assim alguns de nossos “doutores” que nem um fascículo são capazes de condensar, quando são professores, limitando-se a papaguear os conteúdos decalcados, desajustados de manuais, sem a minima sensura e sem chances de se produzir o minimo conhecimento, tanto dele, quanto de seus discípulos. Por isso é que continuamos a importar tudo: do frango à ciência. Por isso é que somos independentes dependentes. E, quando os estudantes mais ousados questionam algo no decorrer das aulas, o “senhor doutor professor” limita-se a dizer liminarmente: “isto está no manual, é so ler”... Como que o manual fosse próprio.

Se cada árvore produz frutos à sua medida e espécie, então não é muito difícil calcular quanta manga azeda sairá deste “pomar”; quantas inteligências cegas; quantos futuros “doutorzinhos estúpidos” estarão deambulando pelo país amanhã!... Julgo, modéstia à parte, que Angola precisa menos de “doutores” e mais de profissionais que façam mais que o

 

combinado; mais de técnicos com conhecimento pertinente; com conhecimento significativo capazes de mais práxis e menos ataraxia; mais “macacão e capacete na cabeça” e menos gravata e colarinho... Tal como precisa menos de partidos políticos e mais de cidadãos patriotas galvanizados em torno do único sonho: o da consciência nacional. Parece-me ser este um dos males desse país: excesso de “doutores” (em gabinetes, na rua...) e de partidos que só “atrapalham”. Estes (sobretudo os dois graúdos angolanos) não têm facilitado amiúde o processo de conciliação nacional fruto primeiro do seu passado, segundo, porque cada qual puxa a brasa para a própria sardinha e quase ninguém para uma angolanidade genuina disprovida de cores partidárias. De modo que “não sabemos o que acontece e é isso que acontece” (Ortega Y Gasset).

A propósito: “Conciliação nacional” ou em “Reconciliação nacional”?

Bem, voltando à vaca-fria:

No mundo académico "doutor" é quem cursou doutorado e defendeu a respectiva tese. Porém, chamando à colação o supracitado Alvará Régio, editado por D. Maria do qual não se vê nenhuma revogação, estando assim em pleno vigor, chega- se, então, à conclusão de que o título de “doutor” pode, sim, ser usado aos bacharéis de Direito, bem como de outras áreas de saber (segundo o mesmo alvará).

Por outra via, partindo da ideia aristotélica do acto e potência como dois modos diversos de ser, sempre defendi que todo o estudante é “doutor” em potência, dependendo a passagem de potência ao acto do devir; do movimento; da sua perfectividade... “Tudo flui” (Heráclito). O estudante (bacharel de Direito) é, à partida, “doutor” em potência, pelo que nada obsta assim tratá-lo, salvo razões meramente subjectivas (pese embora, particularmente, não goste que assim seja tratado, mesmo que depois defenda o doutorado. Pois, sempre gostei de meu sobrenome, além de pronomes de tratamento que podem muito bem ser usados a meu favor. Não obstante, mea culpa em, algumas vezes, fazê-lo aos outros o que não gostaria que a mim fosse feito!).

 

Vejo, contudo, contraditória e atentatória ao princípio lógico do Terceiro Excluído o conceito de “quase-doutor”. O ser ou é ou não é, não existindo meio-ser; quase-ser. A terceira possibilidade é excluída. Ou se é “doutor” (em potência; em acto) ou se não é “doutor (porque nunca se frequentou o Liceu, no dizer do peripatético)”.

Platão, porém, parece ir mais longe em sua gnoseologia com o seu: “conhecer é recordar”. É douto, sábio, “doutor” todo aquele que recorre à reminiscência a fim de rebuscar o hiperurâneo perdido (mundo das ideias).

Em termos lógicos ainda, os conceitos não negam nem afirmam absolutamente nada... O lugar da verdade e/ou da falsidade lógicas é no juízo. Dizer, portanto, “Doutor fulano”; “Doutor sicrano” não afirma nem nega nada. Como diriam em nosso linguajar (popular): “não aumentam nem diminuem”. Agora, dizer que o “doutor X é ou fez” é juízo lógico; é outra coisa. E é aqui que a “porca torce o rabo”!...

Que os doutores hodiernos, da era planetária, portanto, sejam aqueles que “pensem global, agindo local”; que “pensem local, agindo global” sempre na perspectiva perene de deixar o nosso bem comum (o mundo) melhor do que o encontrámos (Gênesis 2, 15) para as gerações vindouras...

Fernando Kapetango