Luanda - A situação de resignação em que se encontra a maioria dos angolanos, que se manifesta em atitudes e comportamentos regidos por chavões do tipo “estuda, trabalha e come o teu funje!” e “Xé, menino não fala política!”, não constitui certamente um “jogo de cintura do povo”. É evidência de uma profunda crise antropológica.

Fonte: Club-k.net

Nuno Dala.jpg - 34.91 KBCrise (do latim crisis, -is, e do grego krísis, -eós) é etimologicamente o “acto de separar, decisão, julgamento, evento, momento decisivo”.

Crise é a “mudança súbita ou agravamento que sobrevém no curso de uma doença aguda; manifestação súbita de um estado emocional ou nervoso; conjuntura ou momento perigoso, difícil ou decisivo; falta de alguma coisa considerada importante; embaraço na marcha regular dos negócios; desacordo ou perturbação que obriga uma instituição ou um organismo a recompor-se ou a demitir-se” (Priberam. DLP, Ed. 2013).

Crise é a “mudança brusca que se produz no estado de um doente e que se deve à luta entre o agente agressor infeccioso e as forças de defesa do organismo; período de manifestação aguda de uma afecção; manifestação violenta, repentina e breve de um sentimento, entusiasmo ou afecto; acesso; momento perigoso ou difícil de uma evolução ou de um processo; período de desordem acompanhado de busca penosa de uma solução; conflito, tensão; ausência, carência, falta, penúria, deficiência; decadência; queda; enfraquecimento; crise económica, ruptura periódica do equilíbrio entre produção e consumo, que traz como consequências como desemprego generalizado, falências, alterações dos preços e depreciação dos valores circulantes” (Online. DLP, ed. 2014).

Infere-se pelo exposto acima que o conceito de crise implica um estado problemático, que consiste em: [1] mudança; [2] perigo; [3] conflito; [4] decadência; [5] perturbação; [6] carência; [7] conjuntura, etc.

Deveras, há uma crise antropológica nos angolanos, ou seja, o Homo Angolensis padece de uma crise: está em perigo, está em conflito, em decadência, está perturbado, está desprovido (carente, empobrecido) tanto eticamente quanto em termos políticos e sociais. O ANGOLANO ESTÁ EM CRISE.

Quais são as razões da crise antropológica dos angolanos?

De facto, são profundas as razões subjacentes à crise. As mesmas remontam à fundação de Angola como estado e continuam a acumular-se até hoje. O país foi fundado numa conjuntura de graves divergências e problemas políticos entre os três movimentos de libertação (FNLA, MPLA e UNITA), que – incapazes de colocar os interesses dos angolanos acima dos seus – passaram a digladiar-se mutuamente, sendo evidências deste facto o fracasso do Governo de Transição, e como tal, do Acordo do Alvor, que previa uma fundação democrática de Angola, ao declarar nos artigos Artigo 40o a 44o: “O Governo de Transição organizará eleições gerais para uma assembleia Constituinte

no prazo de nove meses a partir de 31 de Janeiro de 1975, data da sua Instalação. As candidaturas à Assembleia Constituinte serão apresentadas exclusivamente pelos Moimentos de Libertação — FNLA, MPLA e UNITA — únicos representantes legítimos do povo angolano. Será estabelecida, após a instalação do Governo de Transição, uma comissão central constituída em partes iguais por membros dos Movimentos de Libertação, que elaborará o projecto da Lei Fundamenta) e preparará as eleições para a Assembleia Constituinte. Aprovada pelo Governo de Transição e promulgada pelo Colégio Presidencial a Lei Fundamental, a Comissão Central deverá: a) - Elaborar o projecto de Lei Eleitoral; b) - Organizar os cadernos eleitorais; c) - Registar as listas dos candidatos à eleição da Assembleia Constituinte, apresentadas pelos Movimentos de Libertação. A Lei Fundamental que vigorará até a entrada em vigência da Constituição de Angola não poderá contrariar os termos do [Acordo do Alvor].”

O Governo de Transição fracassou poucos meses depois de ter sido instituído, e o caos tomou conta do país, não havendo de Portugal acções eficientes e eficazes de contorno da situação. De facto, diante de impotência de Portugal, Angola e os angolanos ficaram entregues à mercê das lutas intestinas pelo poder entre FNLA, MPLA e UNITA.

Gozando do apoio militar e logístico de Cuba e da União Soviética e do apoio de sectores importantes da parte portuguesa, que estava claramente à deriva, o MPLA acabou tomando controlo de Luanda, e como tal do país, facto que remeteu a FNLA a desistência, com o exílio de Holden Roberto, seu líder; quanto à UNITA, esta recorreu à guerrilha para sobreviver.

Assim, NÃO HOUVE FUNDAÇÃO DEMOCRÁTICA DO ESTADO ANGOLANO, como previsto e determinado pelo Acordo do Alvor, nos artigos 40o, 41o, 42o, 43o e 44o. O processo ocorreu bem ao estilo socialista ou comunista. Houve sérias implicações: os interesses de um movimento, o MPLA, sobrepuseram-se aos dos angolanos enquanto POVO. Não houve um processo eleitoral, ou seja, o poder não foi delegado pelo povo, mas foi arrancado do povo pelo MPLA de forma violenta.

O Texto da Proclamação da Independência evidencia também a fundação de um estado regida pelo unilateralismo e pela narrativa de um movimento que chegou ao ponto de recorrer à mentira e à anulação da luta dos outros – o MPLA reduziu a FNLA e a UNITA à categoria de párias, distorcendo gravemente própria história da luta pela libertação e independência de Angola. Os angolanos que testemunharam a proclamação da independência ouviram de Agostinho Neto sentenças bárbaras como as seguintes, que realçamos: “Durante o período compreendido entre o encontro do Alvor e esta Proclamação, só o MPLA não violou os acordos assinados [...] Aos lacaios internos do imperialismo de há muito os deixámos de reconhecer como movimentos de libertação [...] Não obstante as organizações fantoches conluiadas com exércitos invasores terem de há muito sido denunciadas pelo Povo angolano e por todas as forças progressistas do mundo, o governo português teimou em considerá-las como movimentos de libertação, tentando empurrar o MPLA para soluções que significariam uma alta traição ao Povo angolano [...] O Povo angolano, sob a direcção do MPLA, venceu finalmente o regime colonial português [...] Os lacaios do imperialismo que nesta ocasião se não nomeiam para não denegrir este momento singular da nossa história [...] As forças dos fantoches angolanos e mercenários de várias origens, que constituem as forçam conjugadas do imperialismo na agressão ao nosso País.”

Pelo exposto, é evidente que a exclusão, a mentira, a diabolização do outro, a deturpação da história e a imposição das narrativas do MPLA marcaram a acto fundacional do estado angolano e sua governação marxista-leninista.

Os angolanos passaram então a viver sob as condições típicas de um regime tirânico e ditatorial, sem liberdades, direitos nem garantias. Além da guerra fracticida, que já estava em andamento, apenas um ano e alguns meses depois, no seio do MPLA surgiram dissensões profundas que resultaram no desastre dos acontecimentos de 27 de Maio de 1977, ocorrendo uma chacina de milhares de angolanos, deixando milhares de pais, mães, esposas, maridos, filhos e filhas, amigos e amigas em luto e na angustia da incerteza do destino daqueles seus entes queridos sem paradeiro.

A guerra fracticida terminou em 2002, e desde então a reconstrução nacional é um facto. Mas a reconstrução humana (a mais importante de todas) não tem sido feita.

A exclusão política, a mentira, a diabolização do outro, a deturpação da história, a imposição das narrativas do MPLA, a guerra fracticida e a chacina de 27 de Maio destruíram o Homo Angolensis, que acabou desenvolvendo uma crise antropológica profunda que se manifesta numa resignação total da vasta maioria do povo. O ANGOLANO DESITIU DE SI MESMO E DE ANGOLA.

Nos últimos 12 anos, ou seja de 2002 para frente, outros problemas agudizaram a crise antropológica do angolano, a saber: a exclusão política do outro, o discurso dos vencedores, a perseguição e os assassinatos de angolanos com posicionamento próprio e dissonante do regime, o nepotismo, a corrupção, o saque do erário público e a pantrocracia de José Eduardo dos Santos.

A crise é ampla (afecta a vasta maioria), é antiga (surgiu com a fundação tirânico-ditatorial de Angola), é transversal (afecta os diversos estratos: instruídos e sem estudos, pobres e ricos, jovens e adultos, etc.) e é profunda (afecta a própria dignidade humana dos angolanos [“os ossos”]).

Os angolanos chegaram ao ponto de aceitar sua situação apocalíptica como realidade ontológica e destino, abrindo mão inclusive ao direito natural que têm de, como povo, se redimirem desta grave crise antropológica. É interessante que o caminho para a redenção (cura) passa pelo exercício do direito à revolução, pois é uma ingenuidade esperar que o regime eduardino devolva voluntariamente Angola aos angolanos. As fracturas e feridas da crise antropológica estão aí, e este regime, que finge estar a sará-las, não está interessado em cura-las, pois é ele mesmo que as criou!

É necessário que os “angolanos falem política sim!”, para que voltem a ser donos do seu próprio país e trabalhem na realização de uma Angola democrática e de bem-estar social, onde possam “comer funje” de qualidade!