Luanda – Íntegra do discurso proferido pelo vice-presidente da Fundação 27 de Maio, o general José Fragoso, durante  a 20ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, Confederação Suíça.

O genocídio que o mundo esqueceu


Excelências
Minhas Senhoras e meus Senhores  

Antes de tudo, gostaria em nome da organização que aqui represento, saudar e agradecer pelo convite que nos foi formulado para este magno Assembleia, para dar a conhecer ao mundo as nossas inquietações que nos assolam há mais de 37 anos, sobre os trágicos acontecimentos que marcaram indelével a nossa história, da África e quiçá do mundo.

Ponto Prévio: A DISA (1975/79), o aparelho secreto do primeiro presidente de Angola, Agostinho Neto, só a simples pronúncia das iniciais desta sigla tenebrosa, parecidas com a DINA de Pinochet, corre de forma macabra, pejada de terror e luto no imaginário colectivo do povo angolano. São poucas as famílias angolanas que não foram atingidas, directa ou indirectamente, pela sua extrema ferocidade, pois muitas ainda continuam a chorar pelo seu inenarrável rasto de sangue e horror, depois de 35 depois da sua extinção.
 
A 27 de Maio de 1977 ocorreu em Luanda uma manifestação de protesto, a exigir a mudança dos métodos de gestão do país e do MPLA, então partido único, assimilada na linguagem oficial como “Golpe de Estado”, pretexto para que os líderes da contestação e a sua numerosa falange de apoio fosse reprimida e dizimada, na ordem de 80 mil desaparecidos assassinados, fuzilados sem culpa formada nem julgamentos prévios, tal como prometera implacável o então Presidente da República de Angola, Agostinho Neto, ao cair da noite deste mesmo dia, que citamos: “Não haverá perdão. Não vamos perder tempo com julgamentos, seremos breves e implacáveis. Morte aos fracionistas” – sentenciou Agostinho Neto.

Os massacres e perseguições políticas sucederam-se durante cerca de um ano, protagonizados pela DISA, a trágica e tristemente famosa Polícia Política do regime neo-fascista de Agostinho Neto, que viria a extingui-la de vergonha pelos milhares e milhares de mortos, vítimas do genocídio, a maior parte dos quais jovens na flor da idade e que muito teriam dado a sua contribuição para o desenvolvimento do país.

As suas almas continuam a pairar no ar, porquanto não descansam em paz enquanto não forem dados funerais condignos até hoje às ossadas das vítimas, um desiderato por que nós vimos batendo corajosamente há mais de 20 anos, com manifestações e cartas endereçadas a direcção do MPLA e aos órgãos de soberania do Estado angolano, sem sucesso.

Infeliz e desgraçadamente, o mundo, sobretudo o Ocidente, esqueceu este genocídio, dos maiores que ocorreu em África, podendo ser comparado em número de vítimas , em África, à guerra da Biafra, na Nigéria, em África que dizimou milhares e milhares de nigerianos da etnia Igbo,  ou à repressão dos comunistas por Suharto na indonésia, sob pretexto de que eram arautos da reforma agrária, reclamada pelos camponeses ou os massacres dos intelectuais e demais profissionais liberais na Arménia, a pretexto de planearem um Golpe de Estado, com toda brutalidade e selvajaria atinentes. Os matadores da DISA não fugiram à essa regra sanguinolenta, com todo seu requinte de peçonhenta malvadez.

O mundo, sobretudo o Ocidente esqueceu, ou finge omitir e mesmo negligenciar o genocídio do pós-  27 de Maio de 1977, 34 anos depois de terem sido perpetrados os mais horrendos crimes de lesa-humanidade em Angola, que, como se sabe, à luz do direito internacional não prescrevem sendo , portanto passível de acusação, julgamento e condenação no Tribunal Internacional, já que todos os mecanismos movidos no plano interno, tanto a nível político como judicial falharam ou estão sempre mesmo votados ao fracasso, dada a falta de separação de poderes vigente em Angola, em que os poderes judicial e legislativo vivem atrelados ao omnipresente poder Executivo, sem prejuízo do facto de muitos algozes exercerem uma forte influência sobre o aparelho judicial, que se pretende independente, quando não se encontram mesmo entrincheirados nalgumas das suas estruturas.

Isso pelo menos se registava até bem pouco tempo com o Presidente do Tribunal Supremo, que cessou funções recentemente e que foi um destacado algoz da DISA, na fase de repressão mais sangrenta.

Como se vê, os escolhos são muitos para uma resolução a contento deste dossiêr mais negro da nossa história; permanente e mesmo irreconciliável litígio que opõe o Estado angolano às milhares de vítimas (que se revolvem nas tumbas dos cemitérios clandestinos, em valas comuns abertas e fechadas à calada da noite), sobreviventes, viúvas, órfãos e progenitores dos desaparecidos assassinados, muitos dos quais também não resistiram e morreram de tanto sofrimento pelos entes desaparecidos, não resistindo a tromboses e outras doenças cardio-vasculares.

O drama físico e psicológico vivido pelos angolanos é extremamente grave, a maior parte das famílias angolanas continuam a chorar os seus mortos que não tiveram direito à campa nem funeral, como mandam os nossos brandos costumes da terra.

Nestes termos, vimos exigir que justiça seja feita na instancia internacional competente, para que os assassinos morais e materiais sejam levados a juízo, nomeadamente ao Tribunal Internacional de Haia. Agindo assim a Comunidade internacional honrará a memória dessas vítimas, repararão os danos morais e materiais devidos aos familiares directos, bem como, sobretudo, serão devidamente julgados e condenados os criminosos que se passeiam por Luanda e arredores, na mais impressionante e abjecta impunidade.

Com a entrada em acção judicial no Tribunal de Haia deste dossier não só serão julgados os criminosos recalcitrantes, que não confessam os crimes cometidos, buscando a constante manipulação da opinião pública nacional e internacional (com o recurso enfadonho ao eufemismo dos “excessos de zelo” protagonizados pela DISA, procurando de forma provocatória desculpabilizar os mentores da inquisitorial repressão), como será uma atitude preventiva para que o mesmo genocídio não se repita, tanto no presente como no futuro, assegurando –se, assim, não já  uma paz podre dos cemitérios clandestinos, mas um verdadeiro ambiente de harmonia e concórdia entre os angolanos, que tanto precisam da tranquilidade política e segurança jurídica, bem como da estabilidade emocional garantia da sua integridade psicológica,  para viverem e desfrutarem das enormes riquezas que jazem no seu sub-solo e que fez mesmo o Ocidente, sobretudo os Estados Unidos, campeõs da democracia no mundo, esquecerem o maior genocídio da história angolana, sendo que compra a Angola 11% do petróleo bruto que faz mover a energia que sustenta a pujante economia da maior potência mundial.

Na realidade, dissemos isso em boa e sã verdade, o mundo tem o dever moral e judicioso de levar os algozes que protagonizaram o referido genocídio, a juízo para serem punidos à medida da gravidade dos milhares de homicídios cometidos, a bem da consciência jurídica internacional, para que o homem se mostre cada vez mais distante da barbárie, que tem nos assassinatos selectivos do pós-27 de Maio de 1977, um exemplo paradigmático.

Os olhos, os ouvidos e as bocas do mundo não podem ficar indiferentes, porque é preciso disseminar a sua denúncia, por um lado, e, por outro, porquanto estão cumpridos os pressupostos do genocídio previstos pela carta universal dos Direitos Humanos, pois houve a intenção premeditada do regime neo-fascista de Agostinho Neto cuja prática totalitária contra os as vozes dissonantes nos tempos da guerrilha, eliminando os seus adversários políticos no interior do movimento.

Neto pretendeu, assim, desfazer-se mais uma vez, da forma mais brutal e vil, optando por torturas e fuzilamentos sumários de um grupo numeroso de angolanos, com quem não se identificava ideologicamente. Fala-se em 1977/78, na liquidação de 80 mil assassinados, ou seja na linguagem oficial da época, da eliminação dos “fraccionistas do MPLA”, com consequências bastantes nefastas da sociedade angolana, em se tratando do partido dominante, incluindo a execução de milhares e milhares de inocentes que nem tinham nada a ver com a manifestação aludida, nem militância política activa; vítimas sequestradas e presas nas províncias e no estrangeiro, sem qualquer mandato judicial, executadas sem culpa formada nem julgamento prévio, tal como previra, premonitória ou coincidentemente, o líder da manifestação, o lendário comandante da guerrilha da luta de libertação nacional e antigo ministro da Administração Interna do primeiro governo de Angola(1975-1976), Nito Alves, no seu célebre poema “Direito à defesa”, como que antevendo os trágicos e sangrentos acontecimentos, protagonizados pela ala conservadora do MPLA.

Portanto, durante quase um ano (isto e 27 de Maio de 1977 a 22 de Março de 1978) “as cadeias se enchiam  e se esvaziavam de gente” todos os santos e sangrentos dias. Testemunhos idóneos indicam que diariamente eram assassinados pelo menos centenas de angolanos, já que as cadeias se enchiam de gente de dia e eram esvaziadas durante a noite.

Decididamente, hoje por hoje, a reconciliação da vasta família angolana dever-se-á fazer-se com actos concretos e práticos, o que passa pelos funerais condignos devidos às ossadas das vítimas, o ressarcimento das suas famílias pelos danos provocados pelo regime fascista de Agostinho Neto e o julgamento internacional dos executores, muitos dos ainda vivos e a atingirem a morte natural na velhice, sem que sejam julgados, quando sacrificaram a fina flor da juventude angolana, que acreditou na nobreza da revolução social a favor dos mais injustiçados, marginalizados e deserdados da terra, em que transformaram o grosso dos angolanos que vive na miséria mais franciscana, apesar dos abundantes recursos naturais disponíveis e aproveitados por uma minoria privilegiada, cultora de uma corrupção galopante, cleptocracia e gerontocracia reveladoras das mais execráveis do mundo.

Enfim, contamos com o vosso concurso para levar adiante este processo político-jurídico que as últimas três décadas e meia não apagam e o futuro jamais apagará. Apelamos à comunidade internacional que a culpa não deverá nunca morrer solteira, em relação aos massacres selectivos do pós- 27 de Maio de 1977 em Angola. A carnificina aludida pela sua extensão numérica em nada poderá ser comparada aos genocídios cometidos pelos ditadores Valeza, na Argentina, e Pinochet, no Chile.

O sanguinário ditador angolano, Agostinho Neto, em menos de dois a três anos de governação ultrapassou-os de longe, incluindo à PIDE/DGS (polícia política de Salazar e Caetano, do regime fascista português criada nos anos 50 e extinta em 1974); PIDE que, paradoxalmente, poupou na tenebrosa cadeia de São Nicolau (no extremo sudoeste de Angola), cercada de tigres caninos, alguns brilhantes nacionalistas angolanos que não escaparam à sanha assassina do verdugo angolano, “médico e poeta profundamente humano”, - conforme era chamado e sacralizado, na jocosa e abusiva propaganda oficial.

Assim sendo, é preciso que os culpados que ainda continuam vivos sejam levados à Justiça Internacional, tal como Yuro Kenyata responde pela acusação de mais de mil crimes) e que sejam condenados pelas monstruosidades cometidas aos angolanos, pelo que nos disponibilizamos em fornecer as listas dos seus nomes como matadores sanguinários dos intelectuais e jovens angolanos daquela época, cuja energia psíquica e na flor da vida activa, bastante falta fizerem e fazem ao país, que busca hoje os caminhos ascendentes da paz, da reconstrução e do desenvolvimento, pelo que tal demanda de tão gabado crescimento económico não deve ser feito ao arrepio do respeito pelas normas do direito internacional, que consagra o genocídio como crimes de lesa-humanidade, sendo susceptíveis de julgamento a todo tempo; tal como prevêem as competentes normas internacionais, sendo certo que nenhum Estado está acima das leis internas, tais como a Constituição e demais leis ordinárias que punem os homicídios em série e organizados cometidos no seu território pelo aparelho das secretas e similares) e, por maioria da razão, das leis e demais disposições que regem o direito internacional, pelo que insistamos: as vítimas na poeira  das suas tumbas reclamam que se faça justiça, a todo tempo e a todo gás, para que as suas almas descansem em paz e a bem das gerações presentes, afastando-se, assim, o espírito vingativo entre os familiares, incluindo entre as gerações vindouras.

Nestes termos, apelamos mais uma vez aos competentes órgãos judiciais internacionais, para agirem em conformidade, nomeadamente o Tribunal Internacional de Haia, fazendo recurso, se for caso disso já, aos testemunhos disponíveis dos sobreviventes existentes, quer verbais, quer escritos em publicações, em forma de artigos e livros.

Finalmente, haja em vista assinalar que os factos e os números estão aí para demonstrá-lo de forma evidente e vincadamente concludente: os inúmeros mortos sem campa provocados pela ditadura de Agostinho Neto não mentem. As milhares e milhares de vítimas sem certidão de óbito passadas pelos serviços de registo civil que assinalam o seu nascimento e que deveriam dar notícia da sua extinção abrupta não foram notificados, os testemunhos dos sobreviventes, bem como os lamentos lancinantes das viúvas e dos órfãos pelo vazio paterno (e/ou materno, como ocorre nalguns casos) estão aí para prová-los, dando-nos a dimensão exacta do holocausto angolano.

Genebra, aos 30 de Outubro de 2014