Luanda - A questão das manifestações voltou a dominar a agenda nacional nos últimos dias. Especialistas, políticos e leigos discutem, em surdina ou publicamente, o alcance do artigo 47.º da Constituição da República de Angola, enquadrado no âmbito dos direitos, liberdades e garantias. “É garantida a todos os cidadãos a liberdade de reunião e de manifestação pacífica e sem armas, sem necessidade de qualquer autorização e nos termos da lei”.

Fonte: RA
luisa rogerio1.jpg - 13.01 KbDefine o mesmo artigo que “as reuniões e manifestações em lugares públicos carecem de prévia comunicação à autoridade competente, nos termos e para os efeitos estabelecidos por lei”.

As aspas demarcam a reprodução textual dos dois pontos do citado artigo. Parece claro. Resta perceber o que escapou ao entendimento das vozes contrárias ao emoldurar das manifestações na lógica da repressão.

Muita gente quer compreender os factores que motivaram o nível de violência atribuído a agentes da polícia que acabam de criar mais um mártir. Desta vez, no feminino. Laurinda Gouveia, estudante universitária de 26 anos, é a vítima do momento. Emendando: a heroína!

As declarações da jovem que participou a 22 de Novembro na manifestação convocada pelo Movimento Revolucionário para exigir justiça pela morte de Hilbert Ganga, militante da CASA-CE, não deixam dúvidas. Se deixassem, as fotografias cumpririam integralmente o velho adágio que troca uma imagem por mil palavras.

São imagens esclarecedoras de uma realidade perturbadora. Laurinda Gouveia, ao que consta única rapariga do Movimento, foi espancada com tanta brutalidade que os hematomas do seu corpo poderiam traçar o perfil de um agressor.

Mostrando-se profundamente chocados, membros da sociedade civil, activistas dos direitos humanos e de organizações não-governamentais condenaram a acção, altamente desproporcional às alegadas infracções atribuídas a Laurinda Gouveia. O assunto está no topo dos mais comentados e partilhados nas redes sociais. Ao contrário dos grandes meios de comunicação social que apenas deram destaque às manifestações de organizações conexas ao poder.

O que desencadeou a punição física com barras de ferro que deixou a manifestante numa cadeira de rodas? A jovem revelou que foi detida por agentes dos serviços secretos quando pretendia filmar os seus colegas, os chamados “Revús”, que tinham decidido “invadir” o Largo da Independência, protegido por forte aparato policial. Denunciou que os agentes a ameaçaram que, caso volte a ser vista numa manifestação anti-governamental, poderá ser morta.

Ao receber alta do hospital, Laurinda Gouveia foi aclamada como heroína de carne e osso que, entretanto, não precisava de pagar tão alto preço pelo novo estatuto. As redes sociais que funcionam também como barómetro social, a partir dos comentários dos internautas, reflectem a tensão actual. Há correntes que defendem o uso da força para silenciar os apologistas das manifestações.

Dizem que os “Revús” querem desestabilizar o país ao perturbar a paz duramente alcançada. Os arautos da violência argumentam que direitos salvaguardados pela Constituição não podem ser usados para subverter a ordem.

Imaginemos que os “Revús” reivindiquem mudanças na estrutura do poder em Angola. Imaginemos também que partidos da oposição trabalhem com a sua base de apoio com vista a futuros ganhos eleitorais. Imaginemos igualmente que cidadãos deste país não se revejam na figura do Presidente da República e tenham um discurso claramente oposicionista.

Podemos ainda imaginar que grupos de pressão estejam a agir no sentido de habilitar os jovens para que conheçam os seus direitos e deveres. Imaginemos por último um cenário em que as pessoas se manifestem pacificamente nas ruas contra seja o que for, em respeito aos preceitos constitucionais.

Concebidos os cenários onde caibam as suposições levantadas, onde é que se encaixam os inimigos da paz? A democracia, essa palavra mágica que não serve apenas para embelezar discursos, é intrínseca ao que se designa por Estado de Direito. Práticas democráticas pressupõem debate, contraditório, diversidade e direito a preferências.

Tratando-se de um país, a unanimidade é a hipótese menos desejável, ainda que um partido seja escolhido por noventa e nove por cento da população. Quem conquista a percentagem mínima da confiança do eleitorado continua com direitos iguais aos da maioria.

Alega-se, por outro lado, que alguns manifestantes tentaram alcançar órgãos de soberania. Evidentemente é dever das forças policiais proteger as instituições do Estado. Isso faz-se bloqueando o acesso às estruturas visadas com um cordão de segurança, algo que qualquer agente minimamente preparado tem a obrigação de saber.

Havendo evidências de atentados à soberania em moldes que firam a Constituição e as leis ordinárias, devem accionar-se os mecanismos legais. É para julgar e condenar que servem os tribunais, apesar de, amiúde, se levantarem desconfianças em relação à sua independência e ao respeito pelo princípio da separação de poderes. Cada caso é um caso e para analisá-los existem órgãos de recurso.

Para desfazer eventuais equívocos, entendo que o poder deve ser alcançado por intermédio de eleições, como se espera de democracias multipartidárias e participativas. Não é por isso que defendo a lei do tabefe para quem pensa de modo diferente. De resto, multiplicam-se as tarefas para os partidos políticos, independentemente de pretenderem ser alternância ou de governarem.

Não é crime almejar o poder nem é pecado lutar para o conservar. A diferença reside nos meios. De qualquer modo, não deveria ser dignificante para ninguém ser oriundo do país onde a cidadania se estrutura com barras de ferro.