Luanda -  A prisão preventiva do Eng.º José Sócrates, 57 anos, ex-Primeiro Ministro pelo PSD no Governo de Portugal entre 12 de Março de 2005 e 21 de Junho de 2011 (o 117.º Primeiro-Ministro de Portugal até então) ocorrida na segunda-feira (24 de Setembro) em Lisboa por acusação de crime de branqueamento de capitais (lavagem de dinheiro), corrupção e fraude fiscal qualificada agitou a comunidade política angolana, pouco habituada as boas práticas das instituições públicas, e, para além de abalar, representou um claro sinal de sobrevivência ética do povo português, embora fragilizado economicamente.

Fonte: Club-k.net

O caso paradigmático de José Sócrates

Com rumores e evidências a mistura, fica claro que essa prisão carrega consigo uma grande dose da promiscuidade financeira instalada entre os agentes ligados a alta política portuguesa e angolana em que se verifica, desde há um tempo a esta parte, um afluxo de relações pouco claras e ao arrepio dos bons hábitos e bons costumes de que os portugueses antes da crise financeira mundial (e da sua própria crise económica) não se queixavam.

 

A comunidade portuguesa foi abalada, sobretudo, pela medida histórica e, obviamente “inédita” sobre um (ex) Primeiro-Ministro português, que consiste em mantê-lo em prisão preventiva antes do julgamento. Também é certo que José Sócrates figura em vários casos de escândalos merecedores da boa aplicação do Direito que não mereceram tão vigorosa medida tanto ao tempo do seu mandato quanto depois dele.

 

De qualquer modo, a medida preventiva aplicada pelo tribunal da causa, resolveu a dúvida que persistia sobre o vigor e a resistência das instituições que realizam o Direito e a Justiça em Portugal depois de vários episódios sucessivos sobre adiamentos injustificados de julgamentos ou arquivamentos de processos judiciais em Portugal em que estiveram envolvidas personalidades do panorama político angolano sem esquecer altas patentes das forças armadas com fortes interesses económicos naquele país ibérico.

A invasão dos capitais angolanos e o nítido processo de “colonização financeira” de Portugal por Angola parecia demonstrar uma transferência impune de hábitos pelo desrespeito às regras e instituições do Direito e da Justiça de Angola para Portugal. E os desabafos sobre a promiscuidade visível entre membros do Governo português e altas figuras do sector político e financeiro angolano vêem desde então a circular entre a vozes insatisfeitas denunciando a podridão que tomou o ambiente das altas finanças de Portugal (serve de referência a publicação da obra Os donos angolanos de Portugal da autoria, entre vários, do político português Francisco Louçã), sem que fosse possível um forte sinal de contenção desses avanços nefastos no ambiente ético dos portugueses fortemente corroído pelo clima de austeridade financeira de que sem vêm batendo a economia portuguesa. Apesar disso, as finanças angolanas tomaram o mercado empresarial português, grandes aquisições foram feitas registando-se igualmente uma significativa transferência de prejuízos financeiros da débil economia portuguesa aos cofres públicos angolanos (como é o caso do BESA). Finalmente, chegou um sinal de “ajuste de contas” e com ele emergiu a ideia de que Portugal ainda conta com instituições suficientes para preservar o Direito e a Justiça quando a necessidade e a urgência se impõem.

            Entre nós, essa situação não pode ser vista de forma diferente daquela que os portugueses vêem manifestando pela opinião pública em que se discute a força e o vigor do sistema judicial português sobre os poderes públicos. Se em Portugal, será possível falar-se na existência de uma clara separação entre o Poder Judicial e o Poder Executivo, o mesmo não se fala entre nós. É certo que, por um lado, a prisão daquela figura política portuguesa ocorreu depois de ter cumprido com o mandato político sem qualquer perturbação nesse sentido (o que favorece a ideia de algum silêncio da justiça ao tempo da ocorrência dos factos que justificaram a prisão preventiva) e, por outro lado, percebe-se que a justiça portuguesa dificilmente lega à impunidade quaisquer actos que representem verdadeiros escândalos a aplicação do Direito português.

            Não faz tempo, um conhecido “empresário” angolano abordado em Portugal por suspeita de branqueamento de capitais devido ao facto de ter consigo vários milhões de dólares desabafou dizendo que os portugueses perseguem “os angolanos que têm dinheiro”. Com a prisão de José Sócrates os portugueses acabam de mostrar que o problema de perseguição de capitais mal esclarecidos não está na nacionalidade dos indivíduos mas na inflexibilidade da justiça portuguesa. E o sinal de alerta fica no ar, quanto a extensão dos seus tentáculos a futuros dirigentes estrangeiros (angolanos, no caso) que tenham com Portugal uma relação promíscua no domínio financeiro. 

            Sabemos todos o quão permissivo é o nosso sistema judicial, mais do que o sistema jurídico. Milhares de denúncias públicas de casos de crimes já foram feitas sem fazer deslocar os serviços afins da Justiça angolana para uma simples averiguação da veracidade dos factos invocados, quando é certo que em tudo em que se venha a perceber alguma forma de crime público o Ministério Público (PGR) está obrigado por lei a desenvolver as diligências necessárias. Estamos lembrados do desaparecimento dos milhões de dólares do BNA, sem explicações convincentes sobre a identificação dos seus verdadeiros autores, ou das mortes de Mfulumpinga Nlandu Victor, Cassule e Kamulingue ou de Hilbert Ganga, para citar apenas alguns dos cidadãos entre vários que foram vítimas de autênticas execuções sumárias transparecendo um Estado que torna legal a pena de morte. Casos de abusos de autoridade, visíveis com a violação dos direitos e liberdades fundamentais (espancamento de zungueiras ou de manifestantes em marchas pacíficas e lícitas); as falências criminosas de empresas públicas para a transferência dos respectivos patrimónios a entidades privadas; o enriquecimento desenfreado e acelerado de a custa do erário público, entre tantos actos que vagueiam a margem da lei e da ordem pública e com marcas claras de impunidade.

A conduta criminosa de governantes alimenta uma rede que vem desde os remotos anos 80, altura em que a República Popular de Angola iniciava a sua marcha depois da atribulada proclamação da independência em 1975 em meio ao conflito militar desencadeado pelo desentendimento entre o MPLA, a UNITA e a FNLA sobre a aplicação dos princípios dos Acordos de Alvor de 1974. O desvio de petroleiros ou de aviões militares, a “transferência” de bens logísticos das FAPLAs para as FALAs sem registo dos seus autores, o descaminho de bens públicos de vária ordem. Em resumo, era comum a prática corrente e impune de actos de criminalidade económica no mais alto escalão da governação encoberta pela máquina do Partido que governava a margem da lei justificado pelo império ideológico da opção comunista e do totalitarismo do poder político não participado pelos cidadãos.    

            É inegável que em Angola vigora um sistema jurídico suficientemente aparelhado para provocar efeitos semelhantes aos que se projectaram contra José Sócrates na qualidade de figura de topo na classe política portuguesa. Não faltam instrumentos normativos precisos para isso. Aliás, após a aprovação da LC (CRA) de 2010, o maior esforço de adequação normativa entre as normas constitucionais e infraordinárias se verificou no domínio do Direito Público com forte ênfase para o sector patrimonial e financeiro, onde as condutas criminais relevantes foram oportunamente incorporadas. As Leis sobre o Financiamento ao Terrorismo e Branqueamento de Capitais (e posterior aprovação do regulamento correspondente) e a Lei da Probidade Pública são alguns desses exemplos que não deixaram de fora a possibilidade de responsabilização de agentes de topo da governação angolana. As previsões normativas vão desde aos membros do mais alto escalão do poder aos mais básicos na hierarquia do Estado.

Nesse particular a LC (CRA) prevê a responsabilidade criminal do Presidente da República, mesmo no exercício das suas funções (art.º127.º) e estabelece que a condenação pelos crimes ai previstos, entre os quais o crime de suborno, implica a destituição do cargo e a impossibilidade de candidatura para um outro mandato. Já os Ministros de Estado, Ministros, Secretários de Estado e outros altos funcionários da Administração Pública respondem criminalmente no exercício de funções ou fora dele (art.º 140.º). Não estando a produzir quaisquer resultados prácticos, apesar dos altos níveis de corrupção que se verificam em Angola, aqui coloca-se o problema da ineficácia do Direito e da Justiça, visto que o problema não se põe com a inexistência de leis e normas adequadas mas na inoperância de todo um conjunto de instituições ligadas a realização da justiça em Angola. Dixit.