Lisboa - Alexander Litvinenko, ex-agente do KGB assassinado com polónio, terá sido envenenado mais do que uma vez. O inquérito começou em Londres - era exigido há anos pela viúva. A investigação promete complicar ainda mais as relações entre a Rússia e o Reino Unido.

Fonte: Expresso

Abriu esta terça-feira em Londres o inquérito público sobre a morte de Alexander Litvinenko. Quase dez anos após um crime que vitimou um inimigo de Vladimir Putin, o Estado britânico vai finalmente proceder a uma investigação prolongada, com audiências públicas e dirigida por um juiz. A polícia já antes tinha chegado a conclusões aparentemente sólidas, mas a extensão e solenidade de um inquérito público assumem um peso único.

Litivinenko foi morto de uma forma invulgar e horrível. No dia 1 de novembro de 2006, encontrou-se com outros dois russos - ex-espiões, tal como ele - no bar do Millennium Hotel em Londres. É um estabelecimento caro, muito popular entre os exilados desse país. Os três homens terão discutido negócios e beberam chá. Quando Litvinenko chegou a casa, sentiu-se mal.

Inicialmente, os médicos pensaram que não era nada grave e desvalorizaram a certeza que ele tinha de que fora envenenado. Gradualmente, porém, acabaram por aceitar que ele tinha razão. Mas só após a sua morte, três semanas depois, souberam qual era o agente fatal: um elemento raro chamado polónio-210. Descoberto pelo casal Curie em 1898, o polónio (cujo nome homenageia a pátria de Madame Curie) existe em doses muito pequenas na natureza. Para matar daquela forma, tem de ser produzido em versão sintética num acelerador de partículas ou num reator - ou seja, em instalações só acessíveis a alguns, poucos Estados. Em especial a Rússia, cujos reatores têm as características adequadas.

Enquanto agente assassino, o polónio tem vantagens importantes. A primeira é a de ser quase indetetável. Uma vez ingerido, atua rapidamente, emitindo radiações alfa que destroem órgãos como os rins, o fígado e a medula. É uma morte dolorosa, mas os vestígios do que a causou só aparecem se se for especificamente à procura deles. Com Litvinenko, valeu o conhecimento que ele tinha dos métodos do FSB (ex-KGB), bem como o próprio facto de ele, sendo uma pessoa forte, ter resistido muito mais tempo do que uma pessoa normal. Se a morte tivesse acontecido uma ou duas semanas antes, seguir-lhe o rasto teria sido mais difícil.


Nascido em 1962, Litvinenko era um ex-agente do FSB (ex-KGB). Desde os seus tempos no serviço, era próximo do magnata Boris Berezovsky, que começou por ser aliado de Putin - terá mesmo sido quem o recomendou ao então presidente Boris Yeltsin para dirigir os serviços secretos - antes de se desentender com ele. Quando os seus chefes lhe pediram que organizasse o assassinato de Berezovsky, não aceitou e fez queixa internamente. Perante a falta de resposta, denunciou o caso numa conferência de imprensa.

Demitido às ordens de Putin e a seguir preso, Litvinenko acabaria por fugir do país, ao que parece por via da Ucrânia. Chegou a Londres e pediu asilo, que lhe foi concedido com base em motivos humanitários. Também nesse país se tinha exilado o seu mentor Berezovsky, que ajudou financeiramente o ex-agente e a sua mulher, Marina, durante esse período.

Nos anos seguintes, Litvinenko multiplicou as denúncias contra o presidente russo. Acusou-o (ou ao FSB, sob as suas ordens) de ter orquestrado as explosões de apartamentos em Moscovo, pretexto para a segunda guerra da Chechénia, que fez explodir a popularidade de Putin em 1999, permitindo-lhe passar de primeiro-ministro a presidente. Acusou-o também de ligações ao crime organizado e à Al-Qaeda, de ter conhecimento prévio do sequestro da escola em Beslan, de envolvimento na morte da jornalista Anna Politkovskaya, de pedofilia... Algumas das alegações pareciam fazer sentido, outras não de todo. Mas o certo é que o ex-agente se havia tornado num entusiástico propagandista antiPutin, ao serviço de Berezovsky e por vontade própria.

Litvinenko também passara a trabalhar para o MI6 e para os serviços secretos espanhóis. O primeiro pagava-lhe um ordenado mensal, algo que anos mais tarde, quando foi conhecido, fez muitos russos pensarem que, mesmo no caso de ter sido Putin a ordenar a morte de Litvinenko, isso fora justificado. Em 2012, o próprio pai do ex-agente pediu desculpa pelas críticas que fizera ao Estado russo. Não as teria feito se soubesse que o filho trabalhava para o MI6, explicou.

Três tentativas?

Quando as autoridades britânicas perceberam o que tinha morto Litvinenko, não perderam tempo. Traços de radioatividade foram encontrados no bar do Millennium e em quartos de hotel usados pelos dois russos com quem o ex-agente se encontrara, bem como nos aviões em que tinham viajado para Londres. Com essas provas, foi feito um pedido de extradição à Rússia, que naturalmente recusou cumpri-lo. Um dos alegados assassinos, Andrey Lugovoi, é atualmente deputado no parlamento russo.

Quem nunca cedeu na sua exigência de justiça foi Marina, a viúva. Ao longo dos anos, insistiu num inquérito público e não desistiu nem quando o governo britânico admitiu que motivos diplomáticos e de interesse público - as relações entre o Reino Unido e a Rússia - o impediam. Com a crise na Ucrânia, a atitude terá mudado. O juiz que inicialmente pediu o inquérito, Robert Owen, vai ser quem o dirige.

Nem todas as audiências serão públicas e algumas conclusões permanecerão secretas, por motivos de "segurança nacional". Mas é um momento importante para o sistema judicial britânico. Afinal, Litvinenko já se naturalizara cidadão do país na altura em que foi morto.

No primeiro dia, o inquérito ouviu um advogado dizer que já teria ocorrido uma tentativa anterior de envenenamento, em outubro de 2006. Há quem fale em três tentativas.