Luanda - Eu tenho muitos amigos. Tenho amigos de todos os tipos. Dos mais fechados aos mais abertos. Dos mais alegres aos mais tristonhos. Dos mais rebeldes aos mais pacatos. Mas entre todos os meus amigos há uma coisa em comum. O amor a liberdade. Os meus amigos amam a liberdade. Como eu! Os meus amigos são pássaros em busca do limite do céu, peixes em busca de mares desconhecidos. Talvez por isso eu consiga ser amigo de pessoas tão diferentes. Temos uma paixão comum. Como eu, os meus amigos defendem todos os dias, nas conversas ou no facebook, a liberdade de pensamento. Como eu, os meus amigos defendem a liberdade de expressão. Alguns deles até são pela manifestação.

Fonte: Facebook

Os meus amigos, até os mais jovens que não sofreram na pele, são todos contra o colonialismo, bateram-se contra o Apartheid sul-africano. Os meus amigos apoiam a política do arco-íris de Mandela, amam os princípios da não-violência de Gandhi, partilham o sonho de Luther King, os meus amigos acreditam no projecto de um só povo e uma só nação, lançado por Agostinho Neto, os meus amigos amam a história do país, valorizam os seus costumes e as tradições, mas sonham e lutam todos os dias por uma Angola moderna.

Os meus amigos são juristas que reclamam a igualdade plena entre as pessoas, jornalistas que se batem diariamente pelo direito universal à informação, por uma comunicação plural e inclusiva, músicos que sonham compor a verdadeira canção nacional, actores que ensaiam diariamente para representar a vida nos palcos, produtores musicais, dramaturgos que anseiam produzir um espectáculo mais rico e complexo que a própria humanidade. Os meus amigos são pais, irmãos, são cristãos que propagam todos os dias o amor ao próximo nas suas orações.

Nos últimos dias descobri, por acaso, que grande parte dos meus amigos tem afinal outra coisa em comum. Gostam de assistir Jikulumessu, a nova novela da TPA, que mostrou pela primeira vez um beijo entre dois homens. Por causa disso passei a última semana a ler e a ouvir as reacções dos meus amigos, amantes da liberdade, à volta do primeiro «beijo gay» mostrado pela nossa televisão pública numa obra de ficção nacional. Ouvi dos meus amigos que mostrar um beijo entre dois homens é uma pouca vergonha que vai contra a nossa moral e bons costumes. Ouvi que mostrar essa manifestação de carinho entre pessoas do mesmo sexo é incentivar a homossexualidade e que por causa disso muitas crianças poderão «optar» por ser homossexuais. Alguns inclusive disseram que vão deixar de assistir à novela por causa do beijo. Fiquei chocado. Não estava a reconhecer os meus amigos naquelas palavras. Um dos meus amigos é produtor de teatro, ou seja, pensa, cria e realiza sonhos onde procura mostrar o que vê ou imagina. Este meu amigo sonhador disse que viu com repugnância o beijo entre dois homens na televisão. Ao ler o que este meu amigo escreveu, lembrei-me do tempo em que causava repugnância aos brancos ver um negro representado na televisão. Lembrei-me do tempo em que até os escravos eram representados por brancos pintados com a tinta mais preta, pois o negro verdadeiro não era gente nem coisa dignoa de aparecer na televisão, mesmo como escravo a levar chicotes do patrão. Ao ler o que este meu amigo artista escreveu, lembrei-me da luta dos negros para conseguirem aparecer e vencer em Hollywood, das quotas raciais para a televisão no Brasil, que, apesar da sua história, levou mais de cinquenta anos a colocar um negro no papel principal de uma novela. Ao ler o que este meu amigo, homem do teatro, escreveu, lembrei como os defensores do Apartheid reagiram ao ver pela primeira vez na televisão sul-africana um beijo entre uma branca loira de olhos verdes de Capetown e um negro do Soweto.

Outro meu amigo, crente nas horas vagas, disse que a homossexualidade é pecado. Esquecendo de todos os «pecados» que ele próprio gosta de ver na televisão, mandou-me ler a I de Coríntios, um livro do Antigo testamento, onde se diz que os afemininados e os sodomistas não herdarão o reino dos céus. Mandou-me também ler a Constituição da República para me lembrar da ideia de moral e bons costumes ali consagradas. Dei uma gargalhada enquanto chorava e pensava no tempo em que todas a leis do mundo consideravam que o negro não era gente e que por isso não possuía dignidade. Lembrei-me das minhas aulas de filosofia do direito, onde aprendi que há mais justiça além das leis e que não é justa lei que não reflita a dignidade e igualdade entre as pessoas e que a justiça é um valor inacabado, uma casa evolutiva do Zango em permanente construção. Lembrei-me que na própria bíblia que ele me mandou ler houve um tempo em que era justo apedrejar mulheres adúlteras e imaginei as nossas ruas cheias de cadáveres das nossas irmãs a reclamar de olhos abertos pela nossa justiça; em que era justo ter escravos e inclusive espancá-los e dei graças a Deus por não nascer naquele tempo, onde era de justiça cortar as mãos da mulher que durante a briga apertasse os testículos do marido... rezei pelas nossas mães sem mãos para nos cuidar.

Ao ler o que este meu amigo cristão eventual disse, lembrei-me que certa interpretação bíblica proíbe o trabalho no sábado e imaginei os hospitais sem os pecadores médicos, as unidades policiais vazias no fim-de-semana. Lembrei-me da proibição de comer porco, coelho ou marisco, cumprir serviço militar, tocar em mulher menstruada… mas depois lembrei-me da receita de Jesus sobre a justiça entre os homens: Amai o teu próximo como a ti mesmo. Simples, assim. E decidi me calar.

Mas depois de um tempo calado, a evitar fazer de juiz em causa própria, decidi responder aos meus amigos. Lembrei-lhes que a novela Jikulumessu aborda muitos temas. Temas importantes, sobre os quais a nossa sociedade deve ter coragem de discutir, entre os quais está a questão da poligamia. Com essa intenção, a novela mostra o Ivo Kapala a saltar de casa em casa, levando uma vida dupla, distribuindo filhos, beijando à vontade as duas mulheres, para a alegria de todos nós. E lembrei que não vi ninguém a reclamar a intervenção da OMA, não vi ninguém a levantar a bandeira vermelha da moral e dos bons costumes, não vi ninguém a reclamar que aquele comportamento ofende a dignidade da mulher, que pode ser um mau exemplo para as crianças. Pelo contrário, todos os dias vejo pessoas a manifestarem o seu carinho pelo Ivo Kapala, sem dúvida um dos mais queridos da trama. Não me disseram, mas se calhar os meus amigos preferem ter filhos «mulherengos» do que filhos que respeitem a liberdade sexual das pessoas, que aprendam a conviver com a diferença, no caso de não serem eles próprios os diferentes.

Ao meu amigo dramaturgo não disse, mas gostaria de ter dito que fiquei chocado por ver um artista defender a limitação da própria expressão artística, símbolo supremo da liberdade humana. Imaginei esse meu amigo no tempo da inquisição, obrigado a criar uma peça onde não pudesse usar certas palavras, tratar de certos assuntos, representar certos grupos sociais. Imaginei este meu amigo a viver em Angola nos anos 50 e ter o sonho de produzir uma grande peça de teatro sobre a identidade africana. Imaginei-o no canto escuro de uma cela na cadeia de São Paulo, a chorar com as mãos cheias de sangue enquanto reclama da falta de liberdade criativa.

Aos amigos convenientes da bíblia disse que, como qualquer pessoa, os ‘gays’ têm o direito de ser representados culturalmente quer nas novelas de televisão, quer nas músicas, na literatura, na pintura, em tudo o que seja manifestação artística. Não aceitar isso, não concordar com isso, significa aceitar que por lei sejam definidos os assuntos e a forma de tratamento artístico das nossas ideias.

Disse a eles que não podemos continuar a fingir hipocritamente que em Angola não existem homossexuais, não podemos continuar a acreditar que os homossexuais são produtos importados pela televisão, que são não-pessoas, coisas que em determinado dia da sua existência escolheram ser como são, e que devemos retratá-los como meras sombras que passam pela nossa vida, com as quais nos cruzamos esporadicamente, sem coragem suficiente para os olhar nos olhos, ouvir os seus pensamentos, compreender os seus dramas, os seus medos, os seus anseios. Disse a eles que estamos a tratar os gays como os brancos trataram os negros durante anos, comos os muçulmanos tratam as mulheres ainda hoje, como em certas tribos tratam os albinos. Estamos a tratar os gays como não pessoas, como aberrações da desumanidade, como objectos, animais com menos dignidade que um vira-lata.

Alguns argumentaram que não. Que a ideia não era essa. Que são pela liberdade sexual, que os gays podem ser retratados artisticamente, mas que não se pode mostrar eles a beijarem na televisão, porque a televisão é do povo. Quase sem forças, disse-lhes que os «nossos» gays também são parte desse povo, que não há um país para os gays, um continente, um território onde possamos mandar todos os gays com os alemães queriam fazer com os judeus, e lembrei-me outra vez da imagem da sombra que passa por nós sem lhe vermos os contornos, sem percebermos a sua altura, a forma do corpo, sem lhe sentirmos o cheiro nem ver a cor do cabelo.

Na verdade, não disse, mas tenho a certeza de que nos tornamos uma sociedade de cegos convenientes. Só queremos ver o que nos convém e ignoramos o que não queremos ver. Temos homossexuais nas nossas casas e não queremos ver, crescemos com eles nas nossas ruas, gozamos com eles nos nossos bairros, chamamos-lhes nomes, atiramos-lhes pedras, mas não os queremos ver na «nossa» televisão, não os queremos ouvir na «nossa» música, não os queremos ler nos «nossos» romances. Não os queremos ver. Ponto! Não queremos ver como eles realmente são. Como os pobres que deixamos nos semáforos de mãos estendidas ao sol e à chuva, como os pais velhos que abandonamos no Beiral de pernas amarradas, como as crianças que tapamos as bocas para as prostituir nos becos da cidade sem luz, como os bebés que abandonamos nos braços das mães sem lágrimas, os gays são sombras transparentes da realidade que escolhemos convenientemente ignorar.