Luanda -  Por isso, vos espanteis de ver uma nação que mal abriu os olhos e já se volta para a constituição da Inglaterra, querendo segui-la como modelo de tudo. Seria desejável, neste momento, que um bom escritor de nos esclarecer relativamente às duas perguntas seguintes: a constituição britânica é boa em si mesma? E, mesmo que fosse boa, poderia convir à França?

Seyes, In o que é o Terceiro Estado?§7[1]

Fonte: Club-k.net

Com aprovação da Constituição Angolana aos 21, 22 de Janeiro e 3 de Fevereiro de 2010, depois do Acórdão do Tribunal Constitucional, como acto de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade, a fim de apurar-se a conformidade com a Lei Constitucional de 1992 (Constituição material), mormente os limites materiais e formais de revisão constitucional. O Tribunal Constitucional, considerou-a em conformidade, salvo a nomeação do Vice-Presidente da República que era nomeado pelo Presidente da República, quando na Lei Constitucional o Presidente da Assembleia Nacional era o substituto natural por qualquer impedimento do Presidente. Assim se procedeu e o Vice, passou a ser o segundo Cabeça de Lista da Lista de Deputados às eleições do partido mais votado. Embora tradicionalmente os tribunais só se pronunciam nestes processos numa situação de um regime não democrático para o regime democrático, como ocorreu na África do Sul, pós apartheid.

 

A reflexão sobre a “Identidade do Sistema de Governo Angolano”, resulta do exercício do poder político resultante do Sistema de Governo instituído formalmente com aprovação da Constituição de 2010. Procuramos comparar com os Sistemas de Governo existentes clássicos, como os EUA, Brasil e na realidade africana, o Sul-africano, para sabermos como é legitimado o Presidente da República, o exercício do poder executivo, a relação com o Parlamento ou legislativo e o Judicial, como poderes, buscando compreender as especificidades de cada um dos modelos, na óptica Shugart et Duverger. É um estudo sobre as normas constitucionais e o exercício de poder numa análise comparada que não ignora a História, Filosofia Política, Teoria e Ciência Política.

A separação e interdependência de poderes, é uma luta antiga e vem de todas civilizações segundo Fleiner-Gerster[2], desde muito cedo, o poder do monarca ou governante era visto como algo sagrado, simbolizando a força e lei do Estado. Foi Aristóteles que no período clássico defendeu a necessidade de três poderes, o deliberativo ou da assembleia, executivo constituído por magistrados e o judiciário para dirimir os conflitos particulares resultante dos contratos.

O debate sobre a separação de poderes foi defendido por Locke e Montesqueu no período moderno, designado de século das luzes, defendendo a necessidade de limitação dos poderes do Rei, por via de uma lei que devia obediência, esta corrente chamou-se constitucionalista ou liberalismo político. No entanto, Aristóteles já defendera o poder deliberativo, executivo e judiciário, no seu Tratado da Política.

Em Angola, o debate sobre a separação de poderes vem da Segunda República (1991/92) ou com as reformas pós revolução de 1975-1991, dando origem ao multipartidarismo concretizado na Lei Constitucional n.º 23/92, de 16 de Setembro, no entanto, os órgãos de soberania eram o Presidente da República, Assembleia Nacional e os Tribunais.

Com aprovação da Constituição de 2010, consagraram-se os seguintes órgãos de soberania ou de poder: o Presidente da República e Titular do Poder Executivo, eleito como cabeça de lista do partido mais votado; Assembleia Nacional unicameral com duzentos e vinte Deputados, representando os círculos provinciais (cinco deputados para cada Província) e círculo nacional com cento e trinta deputados; os Tribunais locais e superiores ou de jurisdição nacional (Constitucional, Supremo, Contas e Supremo Tribunal Militar).

No Sistema de Governo Angolano a responsabilidade política do Presidente da República é limitada, só excepcionalmente em caso de traição à pátria, suborno e ofensa ao estado de Direito com a destituição do Presidente depois de um processo iniciado por 1/3 dos Deputados em efectividade de funções e a sua aprovação por 2/3 dos Deputados em efectividade de funções. No entanto, só é destituível o Presidente da República, depois de condenado pelo Supremo ou Constitucional, evitando-se a dependência do Chefe do Estado ao Parlamento hostil, pelo facto de ser cabeça de lista da maioria parlamentar.

Seria bom buscamos comparar os sistemas de governo Angolano com o Sul-africano e Americano pela originalidade de cada um deles, sem prejuízo do estudo particularizar os casos sul-africano e americano, com juízos de Ciência Política, sobre pontos fortes e fracos, concluindo o texto sobre a identidade constitucional de cada modelo como resultado da sua cultura jus política, não existindo modelos acabados ou perfeitos.  

Assim sendo, existem todos mecanismos de separação de poderes na Constituição Angolana, nomeadamente:

  • A incompatibilidade de funções no executivo, legislativo e judicial (artigo 149.º)
  • Existência de competências legislativas absolutas e relativas da Assembleia Nacional, salvo as reservadas ao Presidente da República (164.º e 165.º)
  • Existência de um poder judicial comum e especial com poderes de revisão da lei e com decisões de cumprimento obrigatório para todos órgãos públicos ou privados (174.º a 179.º)
  • Existência de um Tribunal constitucional com poderes de anulação total ou imparcial de actos políticos, normativos, administrativos ou judiciais contra a Constituição (artigo 6.º, 180.º e 226.º) é exemplos disto a Fiscalização abstracta sucessiva da Constituição de 2010, aprovada por uma Assembleia Constituinte, sem precedente nacional, salvo na África do Sul pós Apartheid
  • Existência de limites da forma dos actos normativos do Presidente da República, para Decretos Legislativos Presidenciais, Autorizados, Provisórios ou próprios, excluindo o OGE e as reservadas competências legislativas absolutas da Assembleia Nacional (125.º, 126.º e 171.º a 172.º)
  • Existência de Poder de Controlo e Fiscalização Política da Assembleia Nacional ao Titular do Poder Executivo e órgãos da Administração para garantir a boa execução da Constituição e das leis (artigo 162.º)
  • Existência de poderes próprios e partilhados do Presidente da República, face ao Parlamento, mormente nomear Ministros de Estado, Ministros, Secretários de Estado, Vice-Ministros, Altos funcionários militares e de Segurança, servidores públicos e instituições administrativas para realizar os interesses no quadro do OGE, sujeitando-se a fiscalização judicial do Supremo, Constitucional e Contas
  • Existência de poderes de fiscalizar e responsabilização do Titular do Poder Executivo com a destituição do mesmo, o veto, a confirmação do voto da parlamento, auto-demissão, promulgação e o pedido de fiscalização abstracta preventiva ou sucessiva do Presidente e dos Deputados e Grupos Parlamentares (artigos 124.º, 127.º, 128.º, 129.º, 132.º, 228.º a 230.º)
  • A existência de poderes partilhados e próprios, nomeação e indigitação de magistrados judiciais e do Ministério Público, nos termos dos artigos 119.º/e, f, g, h, e i; 180.º/a; 181.º/3; 182.º/2; 183.º/2; 184.º/2; 189.º/4  e 5, 190.º/3. Contrariamente ao sistema Norte Americano, os magistrados judiciais em Angola, são de carreira, ao Presidente cabe apenas confirmar os dos três nomes eleitos pelo Plenário do Tribunal Supremo indicar o Presidente e o Vice, tendo apenas liberdade na nomeação de Conselheiros no Tribunal de Contas que não são de carreira, pois, noutros órgãos colegiais cabe ao Presidente da República, Assembleia Nacional e os respectivos órgãos (Conselhos Superiores da Magistratura do Ministério Público e Judicial, respectivamente).
  • Existência de tipos normativos e actos do legislativo e executivo , requisitos para aprovação, alteração total ou parcial das leis e da Constituição, mormente os limites circunstanciais, formais e matérias (125.º, 166.º, 167.º a 173.º)

Todas dúvidas[3] são razoáveis, resultam da liberdade de opinião de quem as faz, no entanto quer os sujeitos, quer os objectos são sempre vistos por ângulos diferenciados, dependendo da capacidade intelectual que quem analisa. Por isso, o Poder como capacidade de influenciar os outros pode ser exercido por pessoas diferentes mas o efeito dos seus feitos no âmbito das mesmas leis ou costumes, dependerá da autoridade de quem exerce o poder, seja qual for a legitimidade. Por isso, a prática nas instituições faz lei, mas cabe aos mais intuídos ou prudentes clarificar as dúvidas.

Todos sistemas de governos democráticos têm pontos fortes ou fracos, como:

Pontos Fortes do sistema Sul-africano:

 

  1. Presidente da República é o Chefe do Estado e do Governo eleito pelos Deputados (legitimidade quase directa por ser líder do partido com a maioria)
  2. Responsabilidade individual e colectiva do Gabinete (Presidente, Vice e Ministros)
  3. Cultura Judicial sólida
  4. Dependência directa do Presidente ao Congresso do Partido e à respectiva disciplina partidária ou partidocracia
  5. Os Ministros são também Deputados ou acumulam funções no executivo e no legislativo, com excepção de três

 

Pontos fracos do sistema de governo sul-africano

 

  1. Facilidade de conspiração dos colaboradores em matéria de indisciplina partidária
  2. Instabilidade Governativa em caso de um parlamento Hostil
  3. Demissão do Presidente em caso de falta de Confiança na Assembleia
  4. Desconfiança da sociedade civil face as diferenças raciais
  5. Partidarização da administração atendendo a maioria que governa
  6. Desgaste da maioria governativa ou partido no poder em caso altas taxas de desemprego e falta de protecção social

 

Relativamente ao Sistema Angolano, há pontos fortes e fracos face ao sistema Sul Africanos, nomeadamente:

 

Pontos Fortes do Sistema de Governo Angolano:

  1. Presidente da República é o Chefe do executivo, eleito como o cabeça de lista do Partido mais votado, eleição directa por constar do boletim de voto.
  2. Possibilidade de renúncia por razões pessoais ou auto-demissão do Presidente por razões objectivas
  3. O Vice-Presidente é o n.º 2 da Lista de Deputados às eleições gerais
  4. O Presidente delega nos Ministros de Estado e Ministros, que nomeia e exonera livremente
  5. Incompatibilidade com o exercício de Presidente da República ou auxiliar do Titular do executivo com a de Deputado
  6. Inexistência de Moção de Confiança ou Censura, quando muito destituição que deve ser julgado pelos tribunais competentes em caso de suborno, traição à Pátria e ofensa à Constituição
  7. Estabilidade do exercício do poder do Presidente e respeito mútuo salvo em caso de renúncia ou auto demissão e consequente limitação constitucional
  8.  Fiscalização do Parlamento ao Poder Executivo/Administração com aprovação e execução do OGE, autorização legislativa,  aprovação da Conta Geral do Estado e  desde que haja direitos e deveres recíprocos inerentes à legitimidade directa do titular do Executivo que delega nos seus auxiliares a condução da Administração Central e Local.

Pontos Fracos do sistema de Governo Angolano

  1. Mais autonomia do Presidente da República face à maioria parlamentar caso seja o líder do partido maioritário ou mesmo acontece com um Cabeça de Lista que não seja Líder da maioria (actor da agenda política)
  2. Irresponsabilidade directa dos membros auxiliares do executivo e gestores ao Parlamento
  3. Lealdade Política dos Deputados à disciplina Partidária e ao líder do Partido e seus órgãos em caso de conflito entre a liberdade de consciência e a disciplina partidária (autoridade política da liderança)
  4. Incipiente cultura judicial em matéria de fiscalização judicial
  5. Auto-demissão do Presidente que obriga o fim do mandato dos Deputados por hostilidade do Parlamento
  6. Impossibilidade de demissão do Vice-Presidente pelo Presidente em caso de conflitos políticos, salvo auto-demissão, renúncia ou destituição
  7. “Judicialização” da política no Tribunal Constitucional, em caso excesso de processos de fiscalização preventiva ou sucessiva dos actos normativos do Presidente ou da Assembleia Nacional e consequente limitação das políticas pública atendendo a ideologia da maioria governante em caso de oposição radical
  8. “Radicalização ou vitimização” da oposição parlamentar obrigando aproximação contrária à ideologia, face à maioria parlamentar quando a representatividade da oposição é minoritária

  

Pontos Fortes do Sistema de Governo Americano

  1. Presidente eleito por um colégio e não por todos eleitores, evita demagogia e é Comandante em Chefe do Exército, Chefe do Executivo Unipessoal e nomeia todos altos funcionários, Ministros (Secretários de Estado), Juízes para o Supremo e fiscalizado pelo Senado
  2. Poder Legislativo bicameral (Senado e Representantes) com o Senado poder vetar a designação de todos altos funcionários como Procurador-Geral da República, Presidente da Reserva Federal ou Banco Central, Ministros ou Secretários de Estado, Chefe Estado Maior do Exército
  3. Independência dos Congressista face à ideologia do seu partido, prevalecendo a responsabilidade perante os eleitores
  4. Uma Constituição rígida, unitextual, simples e com uma longevidade de mais de dois séculos

 

Pontos Fracos do Sistema de Governo Americano

 

  1. Obstáculo de governação do Presidente e a sua Administração, em caso de uma maioria no Senado e na Câmara dos Representantes hostil à Administração para aprovação do Orçamento de Estado Federal ou a nomeação de juízes ao Supremo e Altos Funcionários
  2. A presidência do Senado pelo Vice-Presidente dos Estados Unidos ou auxiliar do Executivo, quando se trata de um dos órgãos do Poder legislativo, podendo perigar o voto em caso de empate, decidindo para desempatar, estado subordinado ao Presidente ou Executivo Federal (como fica separação de poderes?), há uma interdependência? Votando? Não inquina autonomia por um voto resultante de alguém eleito para o executivo? É uma opção constitucional
  3. O perigo do sectarismo economicista, ideológico ou racial sobre opções políticas ou ideológicas sobre os candidatos para cargos públicos, questionando os seus valores se de direita ou de esquerda, moderado ou radical ou até opção para considerar amigos ou inimigos nações soberanas e provocar guerra contra outras nações
  4. Judicialização das opções políticas do Presidente ou do Executivo por via da revisão judicial do supremo Tribunal Federal dos EUA

Como podemos ver, não existem sistemas políticos ou de governos perfeitos, as democracias podem degenerar em demagogia, as monarquias em tiranias e aristocracias em oligarquias, dizia Aristóteles, interesse que haja moderação e compreensão das funções de cada um, para o bem comum: segurança, bem-estar económico e social para todos ou justiça...

Cada modelo de democracia tem especifidades ou identidade, que resulta da História e prática política e constitucional.

Como Professor de Direito Constitucional e Ciência Política, tenho feito vários estudos sobre o nosso sistema constitucional e vejo que há virtudes e defeitos como em qualquer democracia. Basta lembrar que o Governo Português pratica actos resultantes da excepção económica e que o Tribunal Constitucional, declarou inconstitucional e gerou polémica. Basta lembrar que no caso SME/Estado Angolano versus Joaquina da Silva (ex Directora Nacional) o Tribunal declarou inconstitucional a utilização de provas contra a Constituição de 2010; no caso Suzana Inglês da CNE versus UNITA, esta recorreu ao Supremo e esta instância anulou o processo de designação aquela; no caso das eleições gerais de 2012 a UNITA impugnou  os actos subsequentes da CNE ou Administração Eleitoral e o acto Eleitoral de 2012, foi declarado em conformidade com a Constituição e a lei; no Processo de Fiscalização abstracta Sucessiva do Regimento da Assembleia Nacional, os Deputados pediram ao Tribunal que se pronunciasse sobre o âmbito da fiscalização do Executivo, face ao actual Sistema de Governo Presidencialista-parlamentar, o Tribunal considerou que pode haver fiscalização respeitando apenas o que consagra o artigo 162.º da Constituição, por isso, a interpelação aos Ministros, é inconstitucional por ser um Governo unipessoal. É óbvio que este Acórdão clarificou uma situação, mas não solucionou a questão dos inquéritos que constam na alínea c) do artigo 160.º da Constituição da república de Angola, pois, são competências organizativas internas, se o Plenário pode constituir Comissões Parlamentares de Inquérito é porque pode fazer inquérito como fim da CPI. Assim se faz a execução constitucional com falhas e erros, mas mecanismos há para reconhecer-se o grande salto de uma Democracia vibrante e Plural.

Devemos respeitar as instituições, mesmo quando discordamos das suas decisões. 5 anos depois, a Constituição passou do teste da estabilidade dos processos eleitorais que a Lei constitucional de 1992, não conseguiu. Qualquer perspectiva será sempre de clarificar certos institutos como a fiscalização, órgãos essenciais para realização da democracia e do Estado de Direito, institucionalização das autarquias locais, com as eleições de 2012, nasceu uma nova força política (CASA-CE) e o Parlamento tem uma geografia social e ideológica sui generis, mas não se nega o pluralismo da nossa Democracia e do estado de Direito que se consolida cada dia.

Mestre em Ciências Jurídico-Políticas-UAL-Lisboa

Estudos Avançados em Ciência Política- Universidade de Lisboa

Doutorando em fase de Tese pela Faculdade de Direito de Lisboa

Pós Graduado em Estudos Coloniais e Pós-Coloniais-Uni-Lisboa

Pós Graduação em Direito da Inclusão pela Universidade de Coimbra

Pós-Graduado em Direito Europeu-Uni-Lisboa

 Ex Membro Efectivo da Comissão Constitucional

 



[1] Tradução de Teresa Mendes, Circulo de Leitores, 2009. No calor da Revolução Francesa é uma crítica à Montesquieu e Locke, o autor pretendia dizer cada sociedade tem as instituições jus políticas atendendo a sua História Política ou identidade. Normalmente os sistemas políticos africanos seguem as potências coloniais, raras as vezes inovam, copiam-se instituições que geram fractura social ou política, atendendo o modelo exógeno. O Sistema de Governo Angolano é específico, inovador ou sui generis no sentido de não existir um que seja tout court igual ao Angolano…

 

[2] Thomas, Teoria Geral do Estado, §27.

[3] Jorge Miranda, A Constituição Angolana de 2010, In Ivstitia 2013, n.º 1,  levanta a dúvida sobre o facto do Presidente ser eleito com os Deputados, não haver violação da separação de poderes. É óbvio que como ensina o distinto Mestre, não existe numa Constituição formal normas inconstitucionais...