Luanda - Muitas considerações públicas sobre a proposta de lei de registo eleitoral oficioso, com recurso, desde sempre, a discutíveis interpretações do artigo 107.º (Administração Eleitoral) da Constituição da República de Angola (CRA), carecem de um enquadramento jurídico para melhor esclarecimento como manda o Direito

Fonte: A Capital

A problemática da desinterpretação do registo eleitoral oficioso prende-se com a manifesta insuficiência de domínio de conceitos e fundamento doutrinário dos princípios da oficiosidade e da obrigatoriedade.


Para nos situarmos melhor neste campo jurídico importa estabelecermos, antes de mais, a diferença entre o registo oficioso, que foi objecto de uma proposta de lei recentemente aprovada na generalidade pela Assembleia Nacional (AN) (art. 191.º, Lei 13/12, de 2 de Maio – aprova o Regimento da AN – RAN –) e os processos eleitorais de “per se”.


A diferença, numa leitura diagonal, decorre do simples facto de o primeiro ser um pré-registo de base civil e o segundo tratar-se de processos que envolvem a própria realização de eleições.

Que análise jurídica pode ajudar-nos a perceber melhor?
Em termos jurídicos, um acto administrativo público é oficioso quando o Estado o realiza sem ou com a iniciativa do cidadão supostamente interessado. Por outro lado, um acto não é oficioso, ou seja, é oficial, quando o Estado ou um ente privado o realiza apenas com base na iniciativa do cidadão.


É em sede disto que assenta parte do princípio da oficiosidade administrativa, pelo que podemos chamar à colação o art. 29.º (Decreto-Lei n. 16-A/95, de 15 de Dezembro, sobre as Normas do Procedimento e da Actividade Administrativa), segundo o qual o acto administrativo “inicia-se oficiosamente ou a requerimento dos interessados”.

Em matéria da oficiosidade administrativa penal, podemos lembrar ainda que, por exemplo, crimes públicos ou semipúblicos (posse ilegal de arma, art. 253.º, roubo, art. 432.º, furto, art. 426.º Código Penal – CP –) diz-se que são do conhecimento oficioso, ou seja, não carecem de queixa para a polícia agir se se aperceber ou constatar (art. 5.º, 6.º Código Processual Penal – CPP –). Mas crimes particulares (difamação, art. 407.º, calúnia, art. 409.º, injúria, art. 410.º CP) diz-se que são do conhecimento oficial, porque, para a polícia actuar (art. 7.º, 8.º CPP), eles carecem de denúncia do lesado.

Diferenças em termos práticos
Como podemos diferenciar o registo eleitoral oficioso (art. 107.º, n.º 2 CRA) do processo eleitoral (art. 107.º, n.º 1 CRA)?
Na prática e no cumprimento da oficiosidade administrativa no sistema eleitoral angolano, a diferença resulta que, para a realização de registo oficioso, o Estado passa a recensear automaticamente cidadãos maiores de idade e outros à medida que forem atingindo 18 anos, através do sistema informático que gere a base de dados de identificação civil. Desta forma, o cidadão escusa-se de procurar por um posto para se registar no sentido de participar nas próximas eleições gerais de 2017 e dos anos subsequentes.

Por esta razão, o n.º 2 do art. 107.º CRA prevê que o “registo eleitoral, para além de ser “oficioso”, é ainda “obrigatório”, por inerência da obrigatoriedade de todo cidadão possuir uma identificação civil e participar nas eleições, “e permanente”, fazendo jus ao dever do Estado de garantir que o sistema informático, permanentemente ou “ad eternum”, considere registado para efeitos eleitorais todo angolano tão logo complete a maioridade.

Por outro lado, o “processo eleitoral”, que pode abarcar o registo simplesmente, ocorre quando o cidadão vê-se obrigado a procurar por um posto para se registar, porque a Comissão Nacional Eleitoral (CNE) não realiza o recenseamento de modo automático, ou seja, oficioso, porquanto não possui nem gere a base de dados nacional de identificação civil dos angolanos. Por esta razão, para participarem das eleições gerais de 2012, milhares de angolanos procuraram por um posto da CNE afim de efecturem o seu registo.

Destarte, podemos concluir que somente o Estado pode realizar o registo oficioso de cidadãos para efeitos eleitorais, e não a CNE, por ser a única entidade pública a que compete legalmente criar, autenticar e administrar dados de identificação civil dos angolanos através de conservatórias e outros serviços da administração pública.

O silêncio das leis
A CNE realiza apenas “processos eleitorais”, conforme prevê o n.º 1 do art. 107.º CRA, que define “por lei” como o órgão que executa eleições gerais deve proceder. Prova disso, a Lei Orgânica sobre a Organização e o Funcionamento da CNE (Lei 12/12, 13 de Abril), utiliza 18 vezes a expressão “processos eleitorais” (art. 3.º, 6.º, n.º 1, al. a), n), o), r), t), z), aa), 6.º, n.º 2, 12.º, n.º 2, al. a), g), m), s), z), 25.º, n.º 1, al. l), 29.º, n.º 1, 33.º, 38.º, al. d), mas não se refere e muito menos atribui no seu art. 6.º (Competências da CNE) o processo eleitoral oficioso a esta entidade administrativa não integrada na administração directa e indirecta do Estado.

Um outro diploma legal de capital importância eleitoral é, de facto, a Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais (Lei 36/11, de 21 de Dezembro). Possui 11 títulos, 241 artigos e utiliza 10 vezes a expressão “processos eleitorais” (art. 2.º, 7.º, 139.º, n.º 1, 144.º, n.º 1, al. a), n), q), s), bb), a), 145.º, n.º 1, al. a), no entanto, em nenhuma passagem se refere ao registo oficioso.


Em resumo, a luz da Constituição e de demais legislação, podemos arguir que não compete à CNE realizar o registo eleitoral oficioso previsto no n.º 2, do art. 107.º, porque não faz parte dos “processos eleitorais” que o n.º 1 da mesma norma estabelece, remetendo a sua interpretação e enquadramento nos termos da sua “lei” supra citada.

A quem compete legislar?
Antes de respondermos a esta pergunta, importa formular outra: por que razão a lei da CNE e das eleições gerais não fazem menção ao registo eleitoral oficioso? A resposta reside nos registos civis que, embora possam ser utilizados para questões eleitorais, não se enquadram nas matérias de eleições que cabe apenas à AN legislar (art. 164.º, al. d), 141.º, n.º 1 CRA).

O registo civil, como é do conhecimento geral, faz parte de matérias do fórum administrativo estatal, que cabe ao Presidente da República (art. 108.º, 105.º CRA), enquanto Titular do Poder Executivo e Chefe de Estado, dirigir a sua política geral enquadrada na Administração Pública (art. 120.º, al. b), 108.º, n.ºˢ 1 e 2 CRA).

Na observância do princípio da reserva da Constituição ou da legalidade (art. 117.º, 6.º CRA), o Titular do Poder Executivo, por via de autorização legal para ter iniciativa legislativa (art. 120.º, al. h), 125.º, 126.º, 161.º al. c) CRA e 251.º RAN), apresenta propostas de diplomas legais ao parlamento (art. 169.º, 168.º RAN), que são aceites (art. 170.º, 171.º, 172.º RAN) quando não violam a Carta Magna. Portanto, a apresentação da proposta de lei de registo eleitoral oficioso e a sua aprovação pela AN, respeitaram a letra e o espírito da nossa Constituição.

Por outro lado, a referida proposta, que pode adoptar outras denominações para a sua aprovação, embora a designação Lei do Registo Eleitoral Oficioso seja a mais correcta devido à oficiosidade administrativa do nosso sistema, não compreende a natureza de um diploma orgânico (art. 166.º, n.º 2, al. b) ou de bases (art. 166.º, n.º 2, al. c)), mas conforma-se apenas em lei, em obediência à alínea d), do n.º 2 do art. 166.º).

Assim sendo, podemos admitir que, no centro do debate público, não está em causa o modelo angolano, que é inequivocamente de administração eleitoral independente a luz do art. 107.º CRA, mas um conjunto de conceitos implícitos na clara diferença que a Constituição estabelece entre os n.ºˢ 1 e 2 do referido artigo.

Entrega de dados de identificação civil à CNE
O n.º 3 do art. 69.º (Habeas data) CRA, ao proibir “o acesso a dados pessoais de terceiros, bem como a transferência de dados pessoais de um ficheiro para outro pertencente a serviço ou instituição diversa, salvo nos casos estabelecidos por lei ou por decisão judicial”, impõe a necessidade de existir no país um diploma legal que autorize a entrega à CNE de registos civis de todos angolanos em idade eleitoral.

À semelhança da lei eleitoral (art. 211.º, n.º 1 – disposição transitória –) que dispusera até ao passado dia 15 de Maio de 2012 a entrega do Ficheiro Informático Central do Registo Eleitoral (FICRE) à CNE pelo Ministério da Administração do Território (MAT), a nova proposta legislativa de registo oficioso, no cumprimento do art. 69.º CRA, vem resolver o problema actual de omissão legislativa, uma vez que não existe no país diploma legal que aprove a transferência do Estado de dados civis de todos angolanos maior de idade para o órgão que realiza processos eleitorais.

Apenas em linha com a presente interpretação constitucional e administrativa, podemos entender, no final, por que razão o art. 6.º, n.º 1, al. h) da lei compete a respectiva CNE “conservar e gerir os dados dos cidadãos eleitores obtidos a partir da base de dados de identificação civil”, para que possa “elaborar os cadernos eleitorais” (art. 6.º, n.º 1, al. i).

Afinal, as considerações públicas sobre a proposta de lei do registo eleitoral oficioso podem enquadrar-se num exercício de liberdade de expressão (art. 40.º CRA) de que o povo angolano, de Cabinda ao Cunene, goza e anseia cada vez mais. Contudo, do ponto de vista de enquadramento jurídico para melhor esclarecimento como manda o Direito, muitas declarações e até suposto projecto de lei sobre gestão de processos eleitorais não têm respaldo legal e não representam um contributo justo e coerente para a compreensão das pessoas a respeito da nossa jovem Constituição.

Jurista (Mestre)