Luanda - O Caso Cassule e Kamulingue está na recta final. Os advogados estão ávidos para esgrimirem os últimos argumentos em defesa dos seus constituintes, a assistência à procurar assegurar-se de que os supostos assassinos serão devidamente punidos e os juízes a estudarem o processo. Enquanto aguardam pelo regresso do tenente-general Filó

*Paulo Sérgio e Chila Sebastião
Fonte: Opais

‘General Filó devia estar entre os réus’

A Procuradoria Geral da República, representada por Manuel Bambi junto da 6ª Secção de Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, defendeu, nesta quarta-feira, 4, a condenação dos efectivos da Polícia Nacional e do Serviço de Informação e Segurança do Estado (SINSE) acusados de assassinarem os activistas cívicos Isaías Cassule e Alves Kamulingue, em Maio de 2012.

O digno representante do Ministério Público defendeu ainda que o Estado deve indemnizar os familiares das vítimas pelo crime praticado pelos seus agentes no exercício das suas funções e que sejam orientadas a emissão das certidões de óbitos, por parte de uma das Conservatórias de Registo Civil. Apesar de não ter sido especificada a soma monetária, este pronunciamento satisfez os parentes dos malogrados que se encontravam na sala de audiência.

Manuel Bambi defendeu que ficou provado que o co-réu António Vieira Lopes (ex-delegado do SINSE de Luanda) solicitou, por telefone, ao então comandante em exercício, comissário Dias do Nascimento, o auxílio do seu efectivo para participarem de uma operação que tinha como propósito impedir a realização de uma manifestação que chegaria até ao Palácio Presidencial.

No seu entender, foi assim que os arguidos Manuel Miranda, Luís Miranda, Edvaldo dos Santos Gustavo e Francisco Tenda Daniel, vulgo Kiko, efectivos da Polícia destacados no serviço de sector, acabaram por participar desta operação que foi planeada e coordenada pelos agentes da secreta angolana.

Para sustentar esta posição, recorreu os argumentos apresentados pelo director de Investigação Criminal de Luanda, Amaro Neto, durante a sua passagem pelo Tribunal, segundo a qual havia sido ordenado pelo comissário de Dias do Nascimento a enviar os seus colegas ao encontro de António Vieira Lopes, do qual haveriam de ser informados sobre a respectiva operação. Foi assim que, ao chegarem no local onde se encontrava a viatura deste, passaram a trabalhar sob a orientação de Paulo Mota que permaneceu no interior da sua viatura com Manuel Miranda, enquanto os três dirigiram-se ao encontro de Alves Kamulingue nos arredores do Largo do 1º de Maio.

Explicou que só o conseguiram identificar graças às informações que receberam do “líder” da operação que mais tarde, já na Via Expresso, foi ao seu encontro confirmar se haviam raptado a pessoa certa. Dai, rumaram até ao Ramiros.

Segundo ele, as provas evidenciadas nos autos apontam que ao longo do trajecto, Paulo Mota recebia orientações do seu superior hierárquico sob como deviam proceder. “Ao chegarem nas imediações da Barra do Kwanza, ordenaram ao arguido Edvaldo dos Santos Gustavo que permanecesse junto as bombas de combustível, enquanto os quatros seguiam por uma picada por onde o Chevrolet Spark não poderia passar. Ele permaneceu aí durante 30 a 40 minutos e quando regressaram já não estavam com o infeliz”, disse mais ou menos nestes termos.

Em função dos depoimentos dos acusados Luís Miranda, Manuel Miranda e Francisco Daniel, o procurador concluiu ter ficado provado de que foi o então chefe da secreta que orientou o seu adjunto, no sentido de mandá-los disparar contra Alves Kamulingue. Disse que o Kiko mostrou inicialmente resistência, mas acabou por aceitar por se tratar de uma ordem superior e os seus dois colegas, entre os quais o seu chefe directo, o Manuel Miranda, não se havia oposto.

Manuel Bambi esclareceu aos presentes que, com isso, não pretendia ilibar os efectivos da Polícia da acusação que pesam sobre os mesmos. Embora, mais adiante, tenha solicitado que o arguido Edvaldo dos Santos, que está a ser julgado a revelia por se encontrar foragido, deve ser inocentado por não ter participado directamente na execução do referido activista cívico.

Quanto a participação de Isaías Cassule, o Ministério Público demonstrou não ter restado dúvidas de que José Fragoso, ex-chefe de operações do SINSE de Luanda, e de Júnior Maurício “Cheu”, então chefe em exercício do departamento de Protecção a Individualidades, afecto ao Comando de Protecção a Individualidades Protocolares (CPIP), destacado no Comité Provincial de Luanda do MPLA, foram os seus algozes.

Para sustentar a sua tese, defendeu que Júnior Maurício tentou enganar o tribunal, passando a mensagem de que a morte de Isaías Cassule foi unicamente da responsabilidade do seu colega Pedro Veloso Gabriel Antunes, que já não se encontra no mundo dos vivos. Mas que o mesmo acabou por revelar o seu envolvimento ao afirmar que recebeu uma mensagem telefónica de José Fragoso a orientá-lo que fizesse “deslizar” a vítima, tendo respondido que não seria mais preciso porque já estava morto.

Por outro lado, disse ter ficado provado que Júnior Maurício recebeu a ordem do ex-chefe de operações dos Serviços Secretos para reunir uma equipa de operativos para participarem na operação que tinha como propósito deter o epicentro da manifestação que seria Isaías Cassule.

Descreveu o malogrado como sendo uma figura bastante emblemática no seio dos manifestantes e com enorme capacidade de mobilização, por isso terá sido classificado como um alvo a abater.

Recorreu ainda aos autos para precisar que, alguns dias após o homicídio, Júnior Maurício ainda circulava com o interior da sua viatura Toyota Hilux, com os bancos e o tejadilho sujos de sangue de Isaías Cassule.

Com base nos dados recolhidos durante as sessões, demostrou ter ficado convencido de que para raptarem o prófugo, Cheu contou com a colaboração do agente secreto Benilson Bruno Pereira, vulgo Tukayano, que estava infiltrado no Movimento Revolucionário Estudantil para atrailo ao local onde foi desencadeada tal acção.

Por este motivo, classificou que o jovem Tukayano, que também está a ser julgado à revelia, tem uma quota parte no desaparecimento físico de Cassule. Quanto ao co-arguido José Fragoso, disse terem sido produzidas provas suficientes de que o mesmo está envolvido na morte do mesmo.

Pede menos de dez anos para o autor dos disparos

David Mendes, líder da instância de assistência, defendeu a condenação de Francisco Tenda Daniel “Kiko”, o autor confesso dos dois disparos que vitimaram Alves Kamulingue, a uma pena inferior a dez anos com a justificativa de que se limitou a cumprir uma orientação superior.

No seu intender, ficou mais do que evidente de que o arguido negou por três vezes consecutiva a ordem que o foi dada pelo co-réu Paulo Mota para que efectuasse os disparos e só aceitou fazê-lo, depois de o seu superior hierárquico o ter convencido a fazê-lo por se tratar de uma orientação superior.

Advogou a aplicação da pena máxima, isto é de 24 anos, aos arguidos Paulo Mota, e Júnior Maurício por considerar ter ficado provado o envolvimento dos próprios nos crimes de que são acusados.

Pediu a condenação do réu Manuel Miranda e deixou o destino de Luís Miranda sob o critério do elenco de juízes, comandado por Carlos Baltazar. David Mendes alinhou no mesmo diapasão que o procurador, pedindo que Edvaldo dos Santos seja declarado inocente por considerar que não cometeu crime ao convidar o malogrado Kamulingue a os acompanhar e muito menos por conduzir a viatura em que seguiam.

No que concerne aos arguidos António Vieira Lopes e José Fragoso, não propôs pena por considerar que os indícios de que estiveram envolvidos na morte dos dois cidadãos ainda permanecem difusos. Isto porque, no caso do primeiro a única coisa que aco liga ao crime foi o facto de ter falado diversas vezes com Paulo Mota por telefone, mas em algum momento este confirmou em julgamento ter sido a partir daí que recebeu a ordem para mandar matar Kamulingue.

Já o arguido José Fragoso teve o seu nome fora da lista de exigências de David Mendes, também considerado como advogado do povo, pelo facto de a única prova que o poderia incriminar não consta nos autos, no caso a mensagem telefónica que supostamente enviou ao co-réu Cheu, ordenando-o que fizesse “deslizar” Isaías Cassule.

‘Vieira Lopes é inocente’

Benja Satula, advogado de Vieira Lopes, apelou ao corpo de jurado a não cometer o erro de condenar sem existirem provas materiais de que foi ele quem, efectivamente ordenou o assassinato de Kamulingue.

No seu entender, durante a passagem pelo tribunal do então director dos SINSE, Sebastião Martins, ficou mais do que evidente que os efectivos deste órgão de segurança não exercem poder algum sobre os efectivos da Polícia Nacional, mas sim de colaboração. “Ouvimos aqui o próprio Sebastião Martins dizer que muitas vezes tive que escrever para ele próprio, na qualidade de ministro do Interior, a informar sobre determinadas acções que seriam realizadas”, recordou.

Para sustentar mais ainda a sua tese, recorreu à fotocópia da carta enviada pelos integrantes do Movimento Patriótico Unidos ao Governo Provincial de Luanda, dando a conhecer que a manifestação seria realizada da Mutamba ao Palácio Presidencial. Num outro documento, lido na ocasião, os manifestantes pediam apoio da comunidade internacional para que tivesse protecção durante a marcha que pretendiam realizar com o propósito de destituir o Chefe de Estado Angolano.

“Caríssimos, com este documento em sua posse penso que os serviços secretos deviam manter-se indiferentes e não tomar medidas para assegurar a ordem e a tranquilidade? É importante referir que nesta época estava em voga a primavera árabe”, especificou.

Mostrou-se comovido com a morte dos dois jovens que, no seu ponto de vista, ainda tinham muito a contribuir para o desenvolvimento do país e solidário com os seus familiares. Entretanto, descreveu o seu constituinte como um bom cidadão e que fez de tudo por amor à pátria sem incluir, claro, a morte dos activistas que descreveu ter tido mais coragens do que muitos dos seus contemporâneos.

Reafirmou que em nenhum momento ficou provado que foi o Vieira Lopes que ordenou a morte de Kamulingue. Ao ouvir os pronunciamentos do seu advogado, o ex-delegado do SINSE começou a lagrimar.

João Manuel: ‘General Filó devia estar entre os réus’

O advogado João Manuel Lourenço, defensor de Paulo Mota e José Fragoso, considerou que o tenentegeneral José Pérez Afonso, vulgo Filó, devia também estar sentando no banco dos réus pelo facto de ter entrado em contacto por diversas vezes com o co-réu Júnior Maurício “Cheu”, antes, no momento e depois da morte da Cassule.

No seu entender, o facto de José Fragoso ter sido arrolado no processo por ter entrado em contacto com Cheu em igual período, não devia ser considerado pelo procurador que instruiu o processo como motivo suficiente para o acusar de estar ligado ao homicídio. Ao proceder de tal maneira, demonstrou que houve tratamento diferenciado para as pessoas que suspeitavam estar envolvidas neste caso, o que constitui uma flagrante violação à lei.

Para sustentar o seu parecer, recorreu a extractos da chamada telefónica de Cheu onde foi possível constatar que entrara diversas vezes em contacto com o tenente general e que tal não aconteceu da forma que contou ao ser ouvido durante a fase de instrução processual.

Nos depoimentos de Filó lido antes de se passar para as alegações finais, consta que ele não entrava permanentemente em contacto com o Cheu e que, na qualidade de dirigente dos serviços de inteligência militar, era do seu interesse acompanhar simplesmente as manifestações em que estivessem envolvidos ex-militares. O seu contacto com o réu acima mencionado foi unicamente num encontro em que estiveram presentes integrantes dos vários órgãos que velam pela segurança e ordem pública nacional.

Os extractos telefónicos demonstraram que o oficial superior das FAA terá faltado com a verdade. O seu nome foi parar em julgamento, pelo facto de o Cheu o ter indicado, durante uma das sessões, como a pessoa que financiava as acções com vista a deter os manifestantes.

Por outro lado, João Manuel defendeu que a ausência dos corpos das vítimas não significa taxativamente que estejam mortos.

Justificada ausência do general

O juiz-presidente da 6ª Secção de Crimes Comuns do Tribunal Provincial de Luanda, Carlos Baltazar procedeu, logo no início da audiência, à leitura de uma carta proveniente do Gabinete do Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas Angolanas, Geraldo Sachipengo Nunda, informando que o mesmo não poderia comparecer por estar a ser recuperar de uma cirurgia que fez num dos joelhos na África do Sul. Este documento foi acompanhado de outro da direcção principal dos Serviços de Inteligência e Segurança Militar em que anunciava ainda que o mesmo deverá permanecer por mais 30 dias neste país, mas que assim regressar ao país se fará presente ao Tribunal. O documento trazia em anexo o repouso médico emitido por um consultório médico sul-africano em duas versões, uma em inglês e a outra em português.