Luanda - O novo reitor da Universidade Privada de Angola defende que os alunos das instituições públicas deveriam pagar propinas, porque o ensino custa a todos e Angola já “não é um Estado-providência”. Caetano João afirma que um “filho de pobre não tem hipótese de entrar na universidade”. Há quatro semanas na reitoria da UPRA, o novo reitor admite actualizar a propina, que é de 1998, e confessa, não ver o desenvolvimento de Angola apesar do crescimento de todos os anos.

Fonte: NG
O que tem sido mais difícil na gestão?
O mais difícil tem sido ter professores à altura, com vocação. É como ser pastor, é preciso ter dom. O docente tem de ter dom para captar a atenção e o interesse dos estudantes. Hoje é fácil encher as universidades com muitos alunos, uns bem preparados, outros mal, mas é preciso que quem os abrace sejam os mais indicados.

Como pode ser feita essa selecção?
A minha filosofia é ter os melhores professores no primeiro ano e outros tantos melhores para finalizar o currículo. No meio, posso ter professores a estagiar. O estudante deve ficar marcado pelo primeiro professor com quem estudou na universidade. Há instituições que não permitem que os seus reitores dêem aulas.

Os reitores devem dar aulas?
A profissão não é ser reitor. Reitor é apenas um cargo que se exerce. Lembro-me das aulas que tive com o meu reitor e digo sempre que ele me marcou. Isso é que eu gostaria que os meus estudantes dissessem. Já dei aulas a mais de dois mil estudantes e lembro-me de terem reprovado apenas três ou quatro. Eles passam por várias fases de avaliação, até ao recurso. Não estou aqui para facilitar. Mas aos que sabem dou uma nota de reconhecimento. A experiência, por que não gostaria de voltar a passar, é ter turmas de 100 estudantes. Quero ter apenas 30 a 40 numa turma.

A UPRA vai ter apenas esse número de alunos por turma?
Temos um número um pouco abaixo dos três mil estudantes. Não me move nenhum espírito de duplicar. É impossível duplicar esse número. A UPRA tem uma turma do 2.º ano de arquitectura com 10 estudantes apenas. Esses 10 estudantes não pagam o salário de um professor.

Isso não prejudica a instituição?
A instituição não pode viver de propina. Nenhuma instituição do ensino superior vive de propina.

E vive de quê?
De outras actividades. A universidade tem de fazer investigação, tem de ter laboratório. As instituições de ensino superior privadas não se devem comportar como se fossem públicas que têm tudo à disposição. As nossas universidades fazem um esforço grande.

É possível não viver só da propina?
Com investigação é possível. As coisas estão cada vez mais caras. A propina que a UPRA pratica é a mesma de 1998. Alguém por acaso vive do salário de 1998? Tudo encareceu, para o aluno e para a instituição. Sabe quanto custava um marcador, o combustível para o gerador? Sei que algumas instituições fizeram um ajuste, à semelhança do que ocorreu na Assembleia, ao orçamento às especificidades do momento. Como é que num país como o nosso – considerado com o nível de vida mais caro do mundo – se quer uma formação universitária grátis? Ninguém consegue fazer uma investigação científica grátis. Nenhum outro país pratica essa propina de 200 dólares.

O que quer dizer?
Se queremos ter uma educação superior de nível temos de pensar no ensino médio. Se o ensino médio está a subir a propina para aumentar a qualidade, os estudantes devem chegar preparados. Temos de ter professores à altura, bem pagos, tal como acontece nalguns colégios. E ninguém reclama a propina desses colégios. Quando terminam a formação, esses alunos, filhos de angolanos, não estudam nas nossas universidades. Vão estudar para fora. Regressam mais bem preparados do que os que se formam aqui. Em Angola, corta-se o espaço para uma instituição do ensino superior cumprir com a sua missão. Todo o estudante universitário deveria pagar.

Mesmo as públicas?
Porque não? Todos devem pagar, das instituições públicas e das privadas. Se nos hospitais públicos se paga a consulta, porque não pagar para se ter um bom ensino público? Quem suporta as instituições públicas são os impostos que cobram aos privados. São os estudantes das instituições privadas que pagam o imposto de rendimento de trabalho que vão para o Estado para suportar as instituições públicas. Noutras paragens, os estudantes das instituições públicas também pagam. Isso é para sentir o peso. Como é que se paga no ensino médio e no ensino superior, em que há mais exigências, se quer um ensino gratuito?

Todos devem pagar?
Com certeza! Com certeza! Isso está em documentos oficiais. Nós, das instituições privadas, é que ainda não explorámos bem essa situação.

Isso não tira o carácter público do ensino?
Não temos um Estado-providência. Isso já foi há muito tempo, em que o Estado era centralizado. Hoje tudo custa o esforço de todos.

A propina deveria ser uniformizada?
O país quer técnicos, arquitectos, engenheiros e outros profissionais de qualidade e quer menos gestores. A carga de uma faculdade de Arquitectura ou de Engenharia não é comparável à de uma faculdade de ‘papel e lápis’.
Uma faculdade que requer investigação não pode ser colocada no mesmo escalão que as outras. Se as propinas forem uniformizadas, podemos cortar a possibilidade de formarmos técnicos em Angola. Se um aluno paga, no ensino médio, 500 dólares, é justo que no ensino superior pague mil.
E com esses mil, tenho a possibilidade de colocar condições excepcionais para os docentes e para os próprios estudantes. Se não se criam condições, os estudantes fogem, vão estudar para o estrangeiro. São divisas que saem do país, se tiver o filho no estrangeiro a pagar mensalidades.
A economia de mercado não me faz confusão. Não há regras que estipulem o preço das análises e das consultas nas clínicas. Não há nenhum manual que diga que ‘o salário mínimo dos países subdesenvolvidos deve ser esse’. São as condições exactas de cada país que ditam as regras.
Se eu tivesse a possibilidade de criar uma universidade, seria a instituição que mais docentes teria, desde que lhes pagasse bem, cobrasse bem e tivesse um bom suporte. Por isso, é que a universidade não pode viver da propina. Tem de ter investigação, realizar estudos, conferências, editoras. Sei que esse é um dos aspectos que muito preocupa o Ministério do Ensino Superior. Não se pode criar uma universidade com o intuito de se enriquecer. Isso é mau!

Mas a gratuitidade no público é para facilitar quem não pode pagar…
O filho de pobre não tem hipótese de entrar na universidade. Não é que não deva entrar. Mas se é para o pai pobre custear, este estudante não tem hipótese.

Porquê?
O estudante universitário que não compra livros para ler, além do que recebe da escola, não tem hipótese. O estudante na universidade não pode viver apenas da aula do professor, tem de consultar outras bibliografias.
Muitos estudantes universitários são analfabetos, não porque não saibam ler, mas porque não praticam a leitura. Se não temos propina no sector público, então deixemos a estrutura privada entrar no mercado de concorrência. Os estudantes saberão onde é que a propina é mais barata. Não podemos misturar as coisas.

“Fraudes”

É a favor da turbo-docência?
Já fui turbo-docente. Foi uma época em que não tinha nada para fazer. Trabalhava quatro horas por semana numa instituição, duas horas às segundas-feiras e duas às quintas-feiras. Quem me iria pagar noutros dias? Havia um espaço livre que podia muito bem ser aproveitado. Muitos não fazem isso por livre e espontânea vontade. O custo de vida subiu muito.

Admite professores nessa condição?
Admito! O turbo-docente não faz isso por mera vaidade. Ele preenche o espaço vazio para melhorar a sua vida. Os relatórios apontam para uma subida do custo de vida, mesmo com a estagnação do Produto Interno Bruto (PIB). Não se compreende como é que num país o número de padarias se multiplica, mas o preço do pão não baixa.

Há queixas de falta de quadros qualificados, sobretudo de docentes. O que se passa?
Há queixa de falta de docentes porque esses não são formados para serem docentes. Os licenciados ainda não podem ser docentes, têm licença para trabalhar naquilo em que se formaram. Podem enveredar para a docência. Além da licenciatura, devia haver a obrigatoriedade de as universidades terem cursos de agregação pedagógica de, pelo menos, um ano. Licenciado não pode entrar directamente na docência. Carece de pedagogia. Devemos investir na qualidade dos nossos docentes. O que ganha o docente? Nada! O docente é como quem escreve um livro, não fica rico, apenas ganha prestígio.

Os recém-licenciados não deviam dar aulas?
Quem não tem cão caça com o gato. É um aproveitamento que se faz…

Foi boa a explosão de universidades?
Não há outro caminho. Ficámos parados quase 30 anos e, durante esse período, privámos muitos jovens de ingressar na universidade. Tínhamos uma única universidade que não tinha capacidade para albergar todos os que saíam das escolas secundárias. Havia muita gente sedenta. Mas é necessário que essa massificação seja acompanhada de qualidade.

Como é possível massificar com qualidade?
Inspeccionando rigorosamente as instituições.

Há estudantes que foram admitidos no exame com quatro valores. Pode haver qualidade assim?
Isso é uma fraude. Não é nosso apanágio encher a instituição de estudantes. Antes termos poucos, mas que tenham qualidade. Admitir estudantes para preencher vagas é muito grave. O que também pode ser feito é dar aos candidatos uma segunda oportunidade para melhorar. O que as instituições não querem aceitar é o facto de investirem na construção de salas para 50 alunos e terem de admitir apenas 20 candidatos. Daí que a universidade não pode viver da propina, para não ser forçada a encher as salas.

Ministério prepara normas

A UPRA vai continuar com a propina de 1998?
Se a memória não me falha, quando se apresentou o OGE, aventou-se uma hipótese de haver uma inflação. O cabaz principal também sofre e a educação faz parte disso. Poderemos ajustar, não aumentar a propina para que haja lucros para pagar ao Estado.

Que UPRA recebeu?
A minha missão é melhorar o que deve ser melhorado. Vou cabular e dar continuidade ao trabalho da minha antecessora, a dra. Laurinda Hoygaard, que é uma das mais prestigiadas académicas do país. Vou privilegiar um debate para cooperar com outras instituições no domínio académico. Vou criar um convénio com duas boas universidades angolanas, para intercâmbio de docentes. Esteja em que universidade estiver, um bom docente é sempre um bom docente. Vou aproveitar os bons docentes de duas instituições angolanas para trocarmos experiências, para que o ritmo e a profundidade sejam iguais entre as instituições.

Isso não vai promover a turbo-docência?
Não. Será preferível ter um docente que dê três aulas por semana na minha universidade e pago-lhe como efectivo ou tê-lo como colaborador noutras instituições? O que não pode acontecer é o docente saltitar de um lado para o outro.

“O país não está a desenvolver”

Angola não tem uma única universidade entre as 100 melhores de África. Isso sugere alguma coisa?
Há quanto tempo existem as nossas universidades? Mesmo no tempo do centro de estudos universitários da era colonial, quem podia ter acesso? Foram aqueles que depois iam para Portugal concluir a formação. A UPRA, por exemplo, existe há 15 anos, mas não são 15 anos efectivos. Não posso comparar a UPRA com uma universidade da África do Sul. O ‘apartheid’ acabou, mas os padrões de exigências mantêm-se. Angola precisa de, pelo menos 50 anos, para fazer balanço do que se investiu no ensino superior.

O ensino em Angola é o ideal?
Para um país que viveu 40 anos de instabilidade, ficou mais tempo a comprar armamento, ainda não teve tempo suficiente para atingir o ideal. Temos de ter cuidado quando dizemos que o país está a crescer…

O país está a crescer?
Pelo que vejo, o país está a crescer. Basta dizer que cada ano cresce um ano. Mas em termos de desenvolvimento, já tenho muitas reticências. Não consigo entender como é que há cinco anos fui ao Huambo de carro e a belíssima estrada está danificada. Não consigo entender que há menos de cinco anos fizemos uma via rápida e já está em degradação. Não consigo entender que estejamos a fazer um desenvolvimento com um ‘carnaval de mortes’ naquela via por falta de pontes para peões. Com isso não estamos a progredir.

Sente-se valorizado como professor?
Muito mal, mas é o que podemos dar. Não temos uma tabela bem definida. Falta regular a equivalência dos docentes para todas as instituições. Já discutimos isso, mas ainda não saiu. Quando sair, muitas instituições não vão ter como pagar os professores.

Economista na docência

Augusto Caetano João é doutorado em Ciências Económicas pela Universidade de Agricultura de Praga, na antiga Checoslováquia, hoje República Checa. Foi um dos cinco melhores estudantes com a nota máxima. Hesitou se iria frequentar um curso militar, mas optou por um doutoramento. Está há um mês na Universidade Privada de Angola (UPRA). Foi o primeiro reitor da Universidade Metodista de Angola, director do Instituto Superior Politécnico ‘Alvorecer da Juventude’ (ISPAJ) e decano da Faculdade de Gestão da Universidade Técnica de Angola (UTANGA). Já leccionou nas universidades ‘Agostinho Neto’ (UAN), Lusíada (ULA), ‘Gregório Semedo’ (UGS), CIS e é professor titular na Universidade Católica de Angola (UCAN). Foi o director-geral da Empresa Nacional Açucareira em 1975 e passou também pelos ministérios da Agricultura, Relações Exteriores e pelo Banco Nacional de Angola.