Luanda - O presente texto com carácter exegético e hermenêutico, não tem qualquer interesse de fé. A minha visão sobre Maria e a bíblia é meramente humana com interesse nas ideias expressas pelo famoso hino de Maria, o Magnificat. Aliás, não tenho qualquer compromisso de fé ou religioso.


Fonte: Club-k.net

O Magnificat de Maria é de uma beleza literária extraordinária. Com uma cadência rítmica que revela a capacidade cognitiva afinada e uma sabedoria humana digna de admiração e respeito. Digna de respeito porque não está virada somente para interesses egoístas, mas olha para a comunidade à sua volta e critica os poderes, dizendo claramente que a qualquer momento cairão dos seus tronos da opressão. Eis o extracto do hino de crítica social, económica, ética e política:


“ […]

Com o Seu braço agiu mui valorosamente

Dispersou os que no coração têm pensamentos soberbos

Derrubou dos seus tronos os poderosos

Exaltou os humildes, encheu de bens os famintos

Despediu vazios os ricos

[….] ” - Lucas, 1:46-55 & 1 Samuel 2:1-10.

 

Numa leitura hermenêutico-teológica, o especialista em Teologia Moral, Raul Tati, na sua obra  “… Percurso histórico de uma Igreja entre Deus e César…”, afirma que “O cântico […] profético de Maria (o Magnificat) é um dos textos mais revolucionários que encontrei na Biblia. Nele está bem patente a força libertadora […] que olha para os pobres e humildes e abomina os de coração soberbo” (2013, p.40).


De acordo com a leitura exegética de A. Cury (2010, p.79), o Magnificat aborda três grandes questões: i) relação de Maria com a transcendência; ii) uma síntese do antigo testamento; iii) sua visão crítica sobre a situação política e social da época e iv) seu entendimento sobre os fenómenos psíquicos. Importa recordar, que o interesse aqui é a visão de Maria sobre a opressão política, económica e social. Maria vivia num contexto político e social de indigência. A máquina feroz de Roma Antiga com a sua política de pax romana espoliava e humilhava os povos. Maria estava atenta a situação e todas as informações que tinha acesso eram preciosas para transformá-las em saber. A sua crítica indomável se sustenta na condição da época. Ela sabia que o jovem da época não tinha inclinação para o saber, porque a sobrevivência sobrepujava a sede de conhecer.  


Cury continua a sua hermenêutica afirmando que “[...] Maria exultou os valores psíquicos e a justiça social. Reconheceu as limitações da existência, inclusive a sua. Criticou a necessidade neurótica de estar sempre com razão, que bloqueia a mente humana, e a necessidade neurótica de poder, que corrói a sociedade. (2010, p.81).
 

Esta visão psicológica do poder, conforme a análise de Cury em relação ao Magnificat, leva-me a defender que a ditadura é uma condição patológica e extrema que expressa o estado mental do tirano ― que adoptou a ética do mal ― código moral que se traduz inevitavelmente em carnificina em determinados momentos históricos.


Embora Maria tenha sido muito crítica em relação a situação política, social e económica da época, as informações e a sua experiência de vida lhe permitiram construir uma sabedoria tal que não a permitiu instigar a violência, a guerra. Pelo contrário, a sua crítica é uma pedagogia, é uma escola da paz. Isto não significa que as pessoas não devem usar o direito à manifestação e a revolução pacífica nos moldes do desafio político ou a desobediência civil para derrubar os tiranos como está claro no hino: “Derrubou dos seus tronos os poderosos”.


Na sua análise exegética ao Magnificat, o teólogo namibiano Paul John Isaak (2010, p.1236) assevera: “Essa é a única secção em todos os evangelhos, na qual se dá as mulheres a oportunidade de fazer longos discursos. Honramos as pessoas ouvindo o que elas têm a dizer. Nas culturas africana e judaica, respeitamos o mandamento de honrar pai e mãe, incluindo os ancestrais quanto aqueles que ainda estão vivos. Expressamos esta honra nunca nos dirigindo as pessoas que são mais velhas que nós (inclusive nossos irmãos e irmãs) ou casadas usando o seu primeiro nome. Ao contrário, usamos os títulos que lhes são próprios, em sinal de respeito e honra. Maria é uma mulher independente que fala de tópicos controversos e delicados: ele derrubou do seu trono os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu vazios os ricos (1:46-56). Ela faz estas declarações revolucionárias e fala o que pensa sem ser interrompida ou corrigida. Karl Marx considerava a religião o ópio do povo, mas é claro que ele não prestou a devida atenção ao discurso de Maria, o qual não é apenas pessoal, mas trata também da teologia, ética social, política e economia. Questões éticas e teológicas são tratadas em 1:50-1: A sua misericórdia vai de geração em geração sobre os que o temem [...] Dispersou os que, no coração, alimentavam pensamentos soberbos.


Temas políticos são analisados na afirmação de que a [transcendência] derrubou do seu trono os poderosos (1:52), e as questões económicas na declaração de que ele encheu de bens os famintos (1:53). Esses são os temas-chaves que serão desenvolvidos no evangelho, especialmente a proclamação das boas novas aos pobres (4:18-19). Reafirmando, o Magnificat é o grande cântico de libertação do novo testamento, um documento revolucionário de intenso conflito e vitória, produzido por uma mulher que proclama as virtudes e os valores de paz, justiça, humanidade, compaixão e igualdade da espécie humana. O poema louva as acções libertadoras [da transcendência] em favor das mulheres e de outros explorados cujos direitos são diariamente violados.


Na ordem social e economicamente transformada, a violência é superada, e o alimento é fornecido aos famintos. No plano espiritual, o foco está no poder, na santidade e na misericórdia [da transcendência], o qual promete solidariedade para com os que sofrem. Isabel e Maria tiveram, cada uma, sua própria jornada teológica. Isabel precisou aprender a lidar com a vergonha, e as mulheres precisam tratar de questões que envergonham as mulheres e lhes roubam a honra. Isso inclui a violência sob forma de estupro, assédio sexual e agressão física às esposas. Tais questões são muito sensíveis, pois tocam o centro do ego masculino. Por exemplo, diz-se que um líder religioso afirmou ter ― disciplinado a esposa e, mais tarde, recebido dela um agradecimento, enquanto outros tentaram distinguir entre violência que resulta em morte e ― apenas bater (Kanyoro, 1995). As mulheres devem confrontar firmemente essa sensível questão. Maria inspirou-se no seu conhecimento das escrituras (ex., o cântico de Ana, 1Sm 2:1-10) ao formular suas considerações no Magnificat. (Kanyoro, 1997:40).


A crítica que Paul Isaak expressa contra Karl Marx, demonstra que não percebeu a Filosofia da Religião de Marx. O pensamento de Marx sobre a religião não é transcendente. Não é a leitura que visa compreender o sexo dos anjos. Marx olha a religião numa lógica eclesiológica ― Institucional ― Como estrutura e mecanismo de poder na sua lógica puramente psicológica e suas manifestações terrenas, sem olhar para floreados e jargões dogmáticos puramente transcendentes. Neste sentido, Marx e toda a tradição neo-marxista estão cobertos de razoabilidade nas suas análises ao fenómeno religioso como instrumentos de opressão.


Penso que os ditos cristãos devem reler o Magnificat e confrontarem com a sua posição na sociedade. Vivem como Maria que propõe romper com as estruturas de opressão, derrubar o tirano ou são instrumentos para aprofundar a subalternidade?