Luanda - Caros compatriotas,
Penso que é do conhecimento do público leitor que se interessa por esta questão do 27 de Maio de 1977, que marcou profunda e eternamente os angolanos, que por ter sido vitima directa da tragédia, todos os anos dedico uma singela homenagem aos meus companheiros que não tiveram a mesma sorte de sobreviver ao massacre, como, felizmente, tive.

Fonte: Folha8

Passados 38 anos desde àquele fatídico e histórico dia, em que um grupo de corajosos e valorosos militantes do MPLA ousaram reivindicar algo que achavam não estar bem no seio da organização e do País que ajudaram a libertar e julgaram ser preciso mudar alguma coisa (mau grado a infiltração de agentes dos mentores do massacre para dela tirarem partido da situação), esgotadas todas as hipóteses de diálogo por ausência de democracia interna, cumpre confessar mais uma vez, publicamente, que continuo fiel às ideias que estiveram na base da determinação daqueles valorosos e verdadeiros militantes, que mesmo prevendo a morde preferiram-na.

Esta é, aliás, a razão que me forçou a renunciar estatutariamente a minha militância no MPLA, por não me rever na forma como esta organização está a ser conduzida, porque percebi que a sua liderança está mais interessada em buscar consolo no dinheiro e no poder, em detrimento dos profundos interesses e causas nacionais.

É também do conhecimento público que a minha insistência nesta questão, para além da homenagem que cumpre dedicar aos que desapareceram, visa essencialmente um propósito: que este assunto seja debatido publicamente.

Por mais que a direcção do MPLA teime em minimizar essa questão do 27 de Maio 1977, pela sua magnitude e gravidade, esse assunto tem de ser esclarecido, custe o que custar.

É ainda do conhecimento público que sobre o 27 de Maio ousei escrever alguns livros (atenção, não sou escritor), entre os quais expus as minhas ideias à cerca do que penso sobre as causas profundas que estiveram na base da tragédia. Mesmo que algumas pessoas não concordem comigo, muitas delas, também, vítimas da tragédia, o que considero perfeitamente legítimo e, por isso, respeito. Continuo convicto de não estar muito longe da verdade, sobre a razão profunda da tragédia.

Por incrível que pareça, afirmei algumas vezes, afirmo-o e fá-lo-ei sempre, até mesmo na sepultura, ter sido a acção dos que previamente conceberam, planificaram e executaram o macabro plano de eliminação física de milhares de valorosos angolanos, teve como suporte a figura do Presidente Agostinho Neto, enquanto líder do MPLA e da República Popular de Angola comunista.

Esta é, caros compatriotas, a verdade nua e crua, e por isso mesmo amarguíssima. E fizeram-no explorando dolosamente as debilidades humanas do Presidente Neto. Infelizmente aos olhos do mundo, apenas o Presidente Neto é único responsável da tragédia, enquanto os verdadeiros mentores da tragédia continuam resguardados e quase ninguém deles faz referência, salvo em surdina.

E tudo isso porque o Presidente Neto cometeu um erro político crasso, que lhe foi fatal (já o afirmei noutro lugar), ao não saber ir ao fundo da questão, de uma luta que ele próprio predispôs-se a liderar, mas quando chegou o momento crucial das forças políticas, dentro da organização de que era líder, se posicionarem em defesa dos seus verdadeiros interesses, eis que o Presidente Neto fraquejou. E o mais grave no meio disso tudo foi ter confundido racismo com realismo político.

Vou explicar-me:

O Presidente confundiu racismo com realismo político, porque era de esperar que, Neto, enquanto líder de um Movimento de Libertação Nacional africano, tivesse um conhecimento profundo da história africana que lhe permitisse não ignorar os desenvolvimentos sociais e culturais ocorridos em Angola.

Ao longo de centenas de anos, o colonialismo tinha um projecto destinado a destruir a vontade do povo angolano, deixando, marcas que não podiam ser ultrapassadas de um dia para o outro, como se cinco (5) séculos de tráfico negreiro e discriminação racial pudessem ser erradicados da psique dos negros angolanos sem deixar rasto, como se a política de assimilação que tentara converter uma minoria de angolanos em cidadãos brancos honorários, proibindo-os de falar, as línguas autóctones, de comer a comida tradicional, pudesse simplesmente diluir-se sem consequências de maior numa Angola libertada.

No entanto, o Presidente Neto, infelizmente, no momento crucial da luta, desvalorizou por completo tais aspectos, deixando-se influenciar por um grupo de indivíduos (muitos deles estrangeiros) que o empurraram para um projecto de transformar rápida e imediatamente a sociedade angolana altamente estratificada do ponto de vista racial, noutra de matriz multirracial pura no plano da estruturação do poder político, o que, no mínimo, era utópico. E o resultado dessa opção do Presidente Neto foi a tragédia de 27 de Maio.

Porque àqueles que sempre protegeu e promoveu para lugares estratégicos do exercício do poder, puseram em marcha não o que ele pensava, mas os seus próprios planos.

Passados esses anos todos, gostaria que o Presidente Neto estivesse vivo para constatar, ele próprio, as consequências resultantes da sua opção, que teve como prémio o massacre perpetrado pelos que promoveu e apoiou, vitimando milhares de militantes seus entre os quais dirigentes que lhe eram fiéis e o seguiram desinteressadamente durante anos e cuja responsabilidade lhe é debitada;

Gostaria que o Presidente Neto estivesse vivo para constatar pessoalmente em que estado se encontra o MPLA, uma organização que dizia ser defensora do povo, hoje completamente descaracterizada e desacreditada, transformada numa espécie de empresa, com um Presidente do Conselho de Administração que tem concentrados todos os poderes, e distribui a seu belo prazer os rendimentos daí resultantes aos Administradores do Conselho, entre executivos e não executivos, à sua família, amigos e a um séquito de mendigos que se submetem aos seus desígnios, sem um mínimo de dignidade;

Gostaria que o Presidente Neto estivesse vivo, para perguntar-lhe se valeu a pena a sentença condenatória com trânsito em julgado por si ditada e que serviu de suporte para os mentores do massacre eliminarem os melhores quadros que o MPLA tinha, a ponto de ter dirigentes cuja prática é a que todos constatam, a de privilegiar o dinheiro, o enriquecimento ilícito, a não valorização da cultura angolana incerta nos seus poemas;
Enfim…,

Gostaria que o Presidente Neto estivesse vivo, para constatar com os próprios olhos e perguntar à maioria dos angolanos, àqueles por quem penso, até prova em contrário, sacrificou-se, se o seu sonho genialmente resumido no poema “Havemos de voltar,” está concretizado.

A verdade porém é a de que, décadas depois da proclamação da Independência Nacional, o sonho da verdadeira liberdade está distante. E está distante porque é o próprio líder que substituiu o Presidente Neto, que entende que a juventude não tem o direito de pensar diferente, de reivindicar os seus direitos e aquilo que acha que não está bem, e em vez de escutar as suas reivindicações, é ferozmente reprimida e até morta, chegando ao cúmulo do funeral de uma das vítimas ser reprimido com forças da Polícia de Intervenção Rápida fortemente armadas com carros blindados, helicópteros e toda a sorte de instrumentos de repressão mais sofisticados adquiridos com dinheiro público. É esse fardo que o Presidente Neto deixou como reflexo da tragédia.

É minha firme convicção que tarde ou cedo, mesmo que não tenha o privilégio de testemunhar esse dia, o assunto da tragédia de 27 Maio há-de ser discutido publicamente para que se esclareçam os contornos que estiveram na base do massacre.

E como disse a certa altura Nito Alves ainda em vida, muito antes de ter sido barbaramente assassinado até com requintes de crueldade, “…Um dia, todos nós, num cortejo da História, nos reconciliaremos, enterrando para sempre as nossas mágoas…”


Mas só com a discussão clara, transparente e incondicional, das causas que estiveram na base da tragédia.


Luanda, 27 de Maio de 2015.

*Sobrevivente