Luanda - Inevitavelmente as datas levam sempre, querendo ou não, a destapar memórias de acontecimentos e factos ocorridos no passado. Junta-se na força da lembrança o peso ou a dimensão da ocorrência e dos efeitos dela  resultados. Para mim, o mês de Maio, contém também uma mola de lembrança, que rebusca  com alguma rispidez, a memória de um tempestuoso acontecimento tido em Angola, particularmente em Luanda, no dia 27de Maio, no ano de 1977.


Fonte: Mário Santos

Apesar do sol colorido bem despontado, a manhã começou  diferente. Dos rádios saía o estranho mas conhecido sinal sonoro, fechado com as palavras – Kudibanguela, Kudibanguela!... Era o  programa, que a Rádio Nacional de Angola,  tinha sido proíbida de  transmitir!


Nas ruas as pessoas caminhando para o trabalho, cruzavam-se, exclamando, perguntando, comentando – “hoje não se trabalha!...” vamos no palácio!...  “vamos na rádio!... ou a lacônica frase de todos: “A situação está quente!...” Grupos de gente se aglomeravam e rumavam sem saberem exatamente para onde, (se para o palácio, ou para a Rádio). Porém, certos que seria para reclamar um descontentamento que há muito tempo vinha sendo resmungado e agravado dias antes com a expulsão de Nito Alves e José Van-Dúnen, do comitê central do MPLA.


A meio da manhã, o largo situado em frente do edifífio da Rádio Nacional de Angola, estava já preenchida de manifestantes, quando de repente aparece um blindado, com  iniciais “MPLA” pintadas em branco e avançou até ao meio. Parou uns segundos e quando parecia movimentar-se para sair, virou-se de frente para as pessoas. Apenas por breves instantes que não bastaram para se entender bem o que se seguiria, via-se os canos curtos da parte de cima do blindado, baixar suavemente para o chão, na direcção da multidão e disparar duas ou três sequências de rajadas!... Correr, baixar e atirar-se pra o chão, foi a seguir  o espetáculo do pânico e da morte, exibido. Alguns não correram, nem se levantaram mais do chão! A situação estava quente!...


O atrevimento das massas revoltosas instigadas, pelos “fraccionistas”, militantes fervorosos que pretendiam apenas, alertar para os desvios que a revolução  estava a tomar, fora troncada com aquelefogo mortífero. Estava assim  inaugurada, a grande cruzada contra a insolência sobre a “Ditadura popular”.  “Sem contemplações, nem perda de tempo  com julgamentos”, Agostinho Neto, ditava a sentença de uma punição, que se alargou pelo país inteiro e extendeu-se por cerca dois anos, deglutindo homens e mulheres, jovens e adultos. Entre mortos e desaparecidos, os números dessa purga política,  segundo fontes várias, oscila entre 15.000 e 80.000.


São decorridos ora,  38 anos do fatídico dia.  No entanto, para os angolanos que atravessaram uma vida de mais de cinco décadas e consequentemente transpuseram as etapas convulsivas do caminho da nacão independente de hoje, reemerge na memória   a efeméride  – nada pura, nada casta, nada singela - o 27 de Maio! Este dia aparece assim como a marca da quebra da doce monotonia, que até então, caracterizava o mês de Maio. A violência e a intolerância que lhe modificou foram as determinantes, que levaram psicologicamente ao estranho e curioso resultado na complexidade da reacção racional e espiritual de todos, que vai de: - uma abstracção do tipo hipnótico, dos marasmos dos momentos penosos, à exausta resignação  à dor inflingida pelo calor dum acontecimento que produziu efeitos dilacerantes; ao congelamento abrupto das revoltas, (que singular e colectivamente) criaram o olvidamento tácito, ditado pelo cinismo das regras da política; ou simplesmente o ignorar conveniente, compensado ingloriamente pelo desaparecimento de entes chegados.


Desfolho páginas já amareladas de notícias e relatos desta mancha histórica, que se espera ser prescrita pelo juízo de lesados resignados e culpados embaraçados e, dou-me conta uma vez mais, que as cinzas desse Maio de Angola, se mostra fria, simplesmente porque, se  remexida criticamente, como a sua autópsia requeria, soltaria calor para novas reacçöes de inevitável desconforto. Deste modo  uma instintividade óbvia trava as cinzas ainda quentes no fundo, que sendo como os sulcos da combustão, de neuras contidas, lembram simultaneamente a dor duma agonia, não completamente desaparecida, que faz retrair. E assim, tudo se resume a uma frase rápida e seca – como aquela, dita por uma  amada dos tempos ingénuos, porém,  mais verdadeiros, que com a rispidez necessária para expulsar a traição da razão, dizia: “...Eu não quero falar disso!...”  Uma covardia, convertida em sensatez, de que os homens se servem amiúde, para preservar os desígnios singulares duma existência mais virada para os seus egos, representados nas oferendas objectivas da vida.


O 27 de Maio, é  ainda o pesadelo recorrente, que sem precisar de sono, estremece sempre o espírito de muitos e demasiados, assustando-os pela força do efeito aterrador caracterizado numa sanha de mortes e desaparecimentos, que aconselha à sensatez redobrada com expoentes que converte  mesmo,  em posturas de um oportunismo inglório manifestado até em indivíduos cuja perda, jamais lhes saiu da mente e onde a vertigem da revolta pelo que lhes foi tirado, continua a acossar e a agitar o espírito.


Depois de me ver divergir em filosofias, a abordagem dum rememorar, que parecia (e esperava também eu) ser  uma evocaçäo natural e escorrida simplesmente em relatos dos acontecimentos do dia 27 de Maio de 1977 e os apêndices que lhe circundaram. Fica à vista, não só a mim, que tal efeméride, mesmo sem querer enveredar pela ignorância tácita ou absoluta, não necessita mesmo, de muitos mais relatos concisos e exaustivos duma data que pode servir, como título, para um capítulo da História da Angola independente e servir ainda, de matéria para um ensaio sociólogico  sobre as fontes e impulsões que promovem as  transformações comportamentais dos homens, nos ambientes sócio-políticos insuflados de insatisfação.