Luanda - O presente artigo é o primeiro de uma série de análises reflexivas e epistemológicas sobre os grandes desafios da Sociologia dos Tribunais na paisagem societal angolana ou, se preferirmos, sobre a orientação do interesse sociológico para as dimensões processuais, institucionais e organizacionais do Direito bem como as complexas interacções entre a administração da justiça e a realidade socio‐economica em que se opera.

Fonte: Club-k.net

Os estudos socio‐jurídicos foram adoptando diversas linhas de pesquisa ao longo dos últimos 30 anos. Na década de 80 analisaram‐se os tribunais considerando‐os como organizações com características específicas e com um papel autónomo que era merecedor de um olhar focado como instituição de poder (Shapiro, 1981). Já nos anos 90 foram sendo estudados os conflitos sociais e os mecanismos de sua resolução fora dos tribunais, enquanto meios alternativos de resolução de conflitos (Mackie, 1991). Posteriormente, os estudos se foram debruçando sobre a administração da justiça como uma instituição profissional e política em mudança permanente, passando a analisar as profissões jurídicas não só ao nível das suas competências, mas também como estas se organizam e se relacionam com os cidadãos (Dias e Pedroso, 2002).

Numa perspectiva mais recente, Boaventura de Sousa Santos (2013) identifica três grandes eixos de abordagem da Sociologia dos Tribunais:

  1. a) O acesso à justiça ‐ A contribuição sociológica consiste em investigar empiricamente os potenciais obstáculos ao acesso afectivo à justiça por parte de grupos vulneráveis e apresentar soluções para os superar. Os obstáculos podem ser culturais, económicos e sociais. Estudos indicam que a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é maior quanto mais baixo o extracto social a que pertencem. Ou seja, os cidadãos de menos recursos tendem a ter mais dificuldades em reconhecer um problema que os afecta como sendo um problema jurídico e podem ignorar os direitos em jogo ou as vias judiciais para solucionar o conflito;

b) A administração da justiça enquanto instituição e organização profissional – Trata‐se de um tema bastante amplo onde são incluídos objectos de análise muito diversificados. Mas aqui evidencia‐se a importância fundamental do sistema de formação e de recrutamento dos magistrados, e a necessidade de os capacitar com conhecimentos culturais, económicos e sociológicos, que os possam esclarecer sobre as suas próprias opções pessoais e sobre o significado social e político do corpo profissional a que pertencem; Os litígios sociais e os mecanismos de sua resolução existentes na sociedade ‐ Do ponto de vista sociológico as sociedades são juridicamente pluralistas na medida em que juntamente com o direito oficial circulam outros direitos não oficiais no âmbito de grupos sociais específicos (família, vizinhança, igrejas, trabalho, ONG’s e outros). O facto de que, geralmente, antes de recorrer aos tribunais as partes em litígio tentam resolvê‐lo (sempre que possível) junto das instâncias não oficiais, mais informais e acessíveis culturalmente, constitui um exemplo visível do panorama das justiças em evidência na sociedade angolana.

c) Para o despertar de uma cultura socio‐jurídica

A análise da importância do ensino do Direito na formação de profissionais afigura‐se como o ponto de partida para uma reflexão mais global sobre o papel das profissões jurídicas no seio da sociedade. A forma como o Direito é concebido e ministrado, bem como a interacção com as dinâmicas sociais e as transformações no mercado de trabalho são, a nosso entender, os alicerces da racionalidade de uma reforma da justiça abrangente e eficaz.

O papel da jurisprudência não pode apenas basear‐se em um mero repositório de ideias multidisciplinares contra a cristalização ortodoxa do ensino do Direito, mas antes consistir numa fonte de pluralismo baseado na disseminação do conhecimento de diferentes perspectivas culturais relativas ao papel do Direito na sociedade, aos seus agentes, à autoridade legal e às várias formas de exercer e experienciar a acção do Direito (Ferreira et al., 2013). Como sustenta Boaventura Santos (2001) na reforma da justiça é imprescindível a formação de um corpo profissional heterogéneo que surja como um espelho da diversidade da sociedade, e capaz de acompanhar e impulsionar as dinâmicas do sistema judicial e que cujo mecanismo de consolidação de conhecimentos não se resuma à mera reprodução das aprendizagens empíricas durante o período de estágio.

Num campo mais abrangente, é importante que as reformas judiciais contemplem as diferentes ideologias profissionais e os valores e representações sociais dos seus actores. É fundamental estudar, compreender e integrar os profissionais nas suas dinâmicas e características no momento de elaborar as reformas judiciais de modo a que os resultados sejam não só os mais consensuais possíveis, mas também que garantam o comprometimento dos profissionais que têm por missão assegurar que a justiça seja feita em nome dos cidadãos.

Obras Citadas

Dias, João Paulo; Pedroso, João (2002). As profissões jurídicas entre a crise e a renovação: o impacto do processo de desjudicialização em Portugal . Revista do Ministério Público, pp. 11‐15.

Ferreira et al. (2013). Contextos e desafios da transformação das magistraturas: contributo dos estudos socio‐jurídicos. Porto: Vida Económica.

Mackie, Karl (1991). A handbook of dispute resolution: ADR in action. Londres: Routledge.

Santos, Boaventura Sousa (2001). O recrutamento e formação de magistrados: uma proposta de renovação ‐ análise comparada de sistemas e do discurso judiciário em Portugal. Coimbra: Centro de Estudos Sociais/ Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

Santos, Boaventura Sousa (2013). Pela mão de Alice: o Social e o Político na Pós‐modernidade. Coimbra: Almedina.

Shapiro, Martin (1981). Courts: a comparative and political analysis. Chicago: University of Chicago Press.