Luanda - Um ano depois da minha amiga e confrade inglesa, a jornalista Lara Pawson (LP), ter publicado o seu “Em nome do Povo- O massacre que Angola silenciou“, que pelo conhecimento que tenho continua a ser o mais recente livro chegado aos escaparates sobre o “27 de Maio”, aproveito mais um “aniversário” da data, o 38º, para debitar as minhas primeiras notas sobre o seu conteúdo, que tanta tinta jaz fez correr ao nível da opinião publicada, a traduzir bem o interesse que o mesmo suscitou e continua a suscitar.

Fonte: SA

Nas prateleiras, o “book” da Pawson já foi encontrar outros livros sobre o mesmo tema, mas muito poucos ainda (talvez mais dois ou três), para a dimensão e profundidade da tragédia que aconteceu neste país há 38 anos, a reflectir bem o apertado cerco de silêncio que foi montado à volta do tormentoso dossier, num país onde o acesso aos arquivos mais sensíveis da história do pós-independência é praticamente impossível, acreditando nós que a maior parte deles já nem existência física deverá ter.

Estamos convencidos que em inglês, o livro da LP terá tido já o grande mérito de ser o primeiro a chegar as livrarias abordando exclusivamente esta temática , o que fará dele uma incontornável referência para os milhões de leitores que se entendem na língua de Shakespeare.

Para já o que trazemos na bagagem são apenas algumas notas avulsas e pessoais resultantes de uma primeira leitura da versão portuguesa, pois não temos a pretensão de irmos mais além e muito menos de apresentar aqui, o que bem gostaríamos, uma recensão devidamente estruturada como mandam os cânones do género.

Ainda não encontramos tempo para tal e talvez não nos sintamos mesmo com capacidade, pois achamos ser já um domínio mais especializado da crítica literária.

Ainda não desistimos, contudo, de optar pela crítica literária mais a sério, com carteira passada, mas sobretudo com o reconhecimento de quem é o verdadeiro juiz desta profissão, que são os leitores.

Mesmo pela rama, pegar neste livro, achamos que foi uma boa solução, para não deixar passar o “27″ em branco nas páginas do Semanário Angolense.

As aspas, que em vez das velas, estão colocadas na palavra aniversário terá sido o melhor eufemismo encontrado para não ter de repetir as referências que já se transformaram num lugar comum, quando se fala desta funesta data.

Pelo interminável número de vítimas civis que a ela está associado, é sem dúvida a mais trágica efeméride destes primeiros 40 anos de dipanda, com a agravante do massacre ter acontecido no mesmo espaço politico-partidário, isto é, dentro da mesma família.

 

Antes de mais sinto-me afectivamente ligado ao livro que aqui me traz, pois fui, certamente, uma das pessoas com quem a Lara falou no âmbito da pesquisa que foi efectuando dentro e fora de Angola, tendo em vista a concretização do projecto que tinha abraçado, sem ainda saber muito no que se estava a meter.

Isto, desde que no inicio deste século decidiu meter mãos à obra num dos terrenos mais movediços/sensíveis da nossa história, para quem nunca tinha ouvido falar do assunto e teria, necessariamente, de observar os parâmetros da sempre recomendável objectividade jornalística.

Esta “receita” pode não resolver todos os problemas de quem procura a verdade, mas pelo menos sempre evita que se incorram em grande parte das tentações que, normalmente, acompanham estas movimentações por territórios desconhecidos tão pedregosos e tão emotivos, como é o caso.

A minha primeira nota sobre este livro da Lara Pawson é a todos os títulos positiva, antes de mais porque acredito que ela terá conseguido de forma bastante atractiva e dinâmica dar a conhecer ao seu imenso público mais específico, o que fala e lê em inglês, a essência de uma realidade que após mais de 35 anos, de facto poucos imaginavam que tivesse sido tão tormentosa.

De facto para o grande público da Lara Pawson dentro e fora das fronteiras do Reino Unido, depois deste livro, Angola não vai ser certamente a mesma.

Continuando a pensar apenas no público que se expressa em inglês, Lara conseguiu rachar completamente este manto de silencio, tendo o seu livro, mesmo para todos nós que sabemos o que aconteceu há 38 anos, trazido algumas novidades ao nível dos factos.

Dividido em vários capítulos que não dependem uns dos outros para se perceber toda a história, sendo de algum modo estanques, o livro é essencialmente uma grande reportagem com muitas reflexões e dúvidas da autora pelo meio a interromperem permanentemente a narrativa.

Se para nós haverá demasiados pormenores marginais ao nível da observação mais ambiental dos contactos que a Lara foi tendo com os seus sucessivos interlocutores, os mesmos terão tido certamente a maior utilidade para quem de longe ouve falar de Angola como mais um dos cinquenta e tal países que fazem parte do sempre problemático continente africano.

Dos 25 capítulos que dão corpo às três partes do livro que tem cerca de 400 páginas, três deles retiveram a minha particular atenção de uma forma mais especial, talvez por conhecer pessoalmente os seus protagonistas e de ter privado com eles.

Lamentavelmente, dois deles já não pertencem ao nosso mundo, tendo a sua partida acontecido antes do livro ter sido publicado, o que não lhes permitiu terem tido contacto com o que a seu respeito foi escrito pela LP e muito menos de poderem reagir ao seu conteúdo, como era provável que o fizessem.

Falo de “O irmão” que tem por base a conversa de LP com o meu falecido confrade e grande amigo João Van-duném , “Metamorfoses do Inimigo” em que o protagonista é Costa Andrade (Ndunduma) e “Como se formam as nossas cabeças”, onde o testemunho recolhido é do jornalista e escritor João Melo.

Nunca perguntei à Lara se eu sou a tal pessoa que ela cita, sem dar a conhecer o nome, logo no inicio do livro, quando fala de “um jornalista ligeiramente mais velho, um homem com pouco mais de 50 anos, junto de quem muitas vezes me aconselhei, que me disse algo extraordinário.”

E prossegue: “Segundo ele, eu acabara de testemunhar a cultura do medo que se vivia em Angola”.

O acontecimento que suscitara a curiosidade jornalística da sempre inquieta/irrequieta Lara Pawson, que na altura era correspondente da BBC em Luanda (1998-2000) tinha sido uma pequena manifestação do PADEPA realizada nas imediações do GPL e que fora duramente reprimida pelas autoridades para não variarem muito o seu relacionamento com os direitos e as liberdades fundamentais, cujo registo é bem conhecido e as consequências também.

Lara descreve este jornalista como tendo ficado “detido durante vários anos sem ir a julgamento e, no entanto, à semelhança da maioria dos que foram presos e mortos, nunca deixara de apoiar o MPLA”.

É aqui que reside a minha dúvida quanto a verdadeira identidade do seu “garganta funda”, sobretudo para muito boa gente que acha que eu sou anti-MPLA até dizer basta, sem conhecerem o meu passado e a minha trajectória profissional.

O “meu” MPLA, costumo dizer meio muito a sério e um bocado, quase nada, a brincar, se é que é possível fazer qualquer tipo de piada com esta maka, está enterrado nas valas comuns que se abriram em todo o país após o 27 de Maio de 1977.

É para nestas valas onde foi atirada uma boa parte das cabeças pensantes daquela juventude generosa que mais brilhava na época.

É nestas valas que eu também me encontro um bocado e sempre à procura das razões que levaram que os angolanos chegassem a um tal extremo de selvajaria.

Aliás, para quem já não se lembra, no final desse ano de 1977, surgiu um outro MPLA sob “olhar silencioso de Lénine” que passou a chamar-se Partido do Trabalho.

Mas antes mesmo dessa transformação ter acontecido, já eu tinha prometido a mim mesmo no silêncio do cárcere para onde tinha sido atirado, sem saber o que me iria acontecer no dia seguinte (aliás ninguém de todos quantos se encontravam na mesma condição o sabia), que se alguém me visse a militar em mais algum partido só podia ser problema dos seus olhos.

Esta promessa mantenho até aos dias de hoje, o que não me impediu de fazer sempre uma diferença entre o espírito MPLA que tinha adquirido por contágio mesmo antes do 25 de Abril de 1974 e o MPLA da dura e “real politik” do pós-independência, sobretudo daquele que conduziu de forma tão implacável os nossos “anos de chumbo”.

Luandino Vieira numa entrevista concedida em meados da década de 90 reconheceu que foi com muito sofrimento que o “seu MPLA”, que já não era o meu, governou o país durante estes anos todos.

Uma dose, ainda seguindo a sua reflexão, que talvez não fosse necessária para se chegar onde se chegou.

“Realmente- disse- podíamos ter feito muito melhor. Sobretudo podíamos ter feito com muito menos sofrimento os mesmos erros para o mesmo resultado. Isso não é perdoável.”

Hoje entendo que o país já precisa mais de espíritos totalmente abertos, abrangentes, tolerantes e visionários, sem questionar quem se mantém nas “trincheiras da militância”, mas valorizando muito mais todos aqueles que funcionam com base na independência de pensamento e na lucidez, sem outros condicionalismos mais visíveis.

A disciplina e a lealdade partidárias não são, garantidamente, as melhores conselheiras quando se quer pensar num país como um todo, sobretudo nas condições do nosso, devastado por mais de três décadas de conflito fratricida, com todas as sequelas que andam por aí, treze anos depois das armas se terem calado.

NA- A versão original deste texto foi publicada no Semanário Angolense (30-05-15), estando a actual sujeita a um processo de actualização/enriquecimento.