Luanda - As autoridades até agora parecem desdobrar‐se para esclarecer o incidente da prisão dos jovens activistas. A começar pelos treze que foram encontrados de uma só vez, no sábado (20 de Junho), algures na Vila Alice, em Luanda.

Fonte: Club-k.net

Na explicação que o Ministro do Interior deu é que estes cidadãos «de uma ou de outra forma procuravam criar condições para alterar a ordem constitucional estabelecida». Por isso «os órgãos de investigação criminal notificaram o Ministério Público sobre algumas suspeitas». Ângelo Veiga Tavares, disse isso na quarta‐feira (24 de Junho), por meio da Rádio Nacional de Angola (RNA).

No mesmo dia e na mesma emissora radiofónica, o Procurador‐Geral da República, João Maria de Sousa, disse primeiro que a detenção desses jovens aconteceu «na sequência do cumprimento de um mandato de buscas e apreensões que o Serviço de Inteligência Criminal realizou.

No «casamento» dos dois depoimentos, entende‐se que o Serviço Criminal nunca terá saído do encalço desses jovens, total ou parcialmente, desde que estes deram as caras a essas movimentações revolucionárias, que têm acontecido soluçantemente, mais ou menos há cinco anos.

Só assim se entende que o Ministério Público tenha sido notificado sobre «algumas suspeitas», pois terá sido necessário haver um tempo hábil para que se constatasse que tais jovens «procuravam criar condições para alterar a ordem constitucional estabelecida». E no seguimento dessa constatação se teria feito necessário expedir um mandato de buscas e apreensões.

Portanto, aqui o «flagrante delito» não tem configuração convincente (como quem prende, por exemplo, um «batuqueiro» de carros ou um traficante de drogas em flagrante). Só teria uma possível razão de ser, se entre os jovens reunidos estivesse infiltrado algum agente, pois seria esse «bufo» a próprio testemunha do facto de «se estar a criar condições para alterar a ordem constitucional estabelecida».

Assim, fariam sentido as declarações do PGR, na referida entrevista à ARN, segundo as quais «tudo começou com uma denúncia junto da Polícia Nacional» que deu origem à investigação criminal que foi ao local «para constatar a veracidade ou não dos factos que eram denunciados».

No relato do Procurador confirma‐se que «os jovens reunidos estavam a praticar actos preparatórios que poderiam levar a destituição do governo legitimamente constituído». Ou seja, «reuniram‐se para prepara uma sessão de insurreição, de desobediência colectiva, que visava a deposição do governo e a destituição do Presidente da República. Estes actos constituem crime contra segurança do Estado mais propriamente o crime de rebelião».

Tudo isso, no entanto, precisa ser provado e a única «prova» que mostra essa tal «prática de actos preparatórios que poderiam levar a destituição do governo» ‐ facto que está sendo considerado de disposição para um golpe de Estado, é um livro. Mas isso não está sendo admitido pelas autoridades.

Conforme conta o advogado Walter Tavares, que representa o autor do referido livro, o jornalista e activista Domingos da Cruz ‐ detido no domingo no posto fronteiriço de Santa Clara, a caminho da Namíbia para uma consulta médica ‐ os jovens estavam em plena leitura quando a polícia adentrou a sala e os deteve em «flagrante delito» por estarem a preparar «actos tendentes a alterar a ordem e a segurança pública do país».

O título do livro que esses jovens liam é «Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura» com um subtítulo a formar‐lhe um «slogam» igualmente penetrante para as hostes do governo: «Filosofia política da libertação para Angola». No tempo do partido único, de acordo com a ideologia então vigente, realmente esses rapazes estrariam a «cometer» feio.

A obra de Domingos da Cruz, pelo que soubemos, por ser «proibida» circula apenas de forma clandestina. E embora tivéssemos envidado algum esforço para que pudéssemos ter uma cópia até o fecho dessa edição do SA não nos foi possível consegui‐la.

De acordo com o próprio autor, numa entrevista à DW África, em Janeiro deste ano, esse trabalho é inspirado no livro «Da Ditadura à Democracia – Uma Estrutura Conceitual para a Liberdade», lançado em 1993, pelo norte‐americano Gene Sharp.

O escritor «yankee», actualmente um octogenário avançado, é doutor em teoria política pela Universidade de Oxford, pesquisador no Centro de Estudos Internacionais de Harvard e fundador do Instituto Albert Einstein, situado em Boston (EUA), por meio do qual o seu livro está disponibilizado para todo o mundo E já virou um «best seller» traduzido em pelo menos 25 idiomas, sem cobrança de direitos autorais.

Na ausência do livro «proibido» de Domingos da Cruz, pode‐se ter uma ideia do seu conteúdo, por meio da obra de Gene Sharp que é a sua fonte de inspiração. Aliás, o próprio jovem jornalista, na sua convicção de activista, é claro em dizer que o seu livro «revela princípios de desobediência civil para derrubar o regime».

 

Tal como na obra original do estadunidense, o escritor angolano, que se presenta como um férreo defensor dos direitos humanos, também trás enumeradas 168 técnicas e princípios de desobediência civil democrática e pacífica.

Domingos da Cruz, referindo‐se as tais técnicas, faz saber que elas passam pela descredibilização da imagem do governo angolano perante os seus parceiros internos e externos, passam pela realização de manifestações anti‐governamentais colectivas e pela inviabilização do funcionamento das principais instituições públicas.

O activista é autor de outros livros, entre os quais «Quando a guerra é necessária e urgente», obra que lhe rendeu um processo‐crime sob a acusação de incitamento à guerra e violência, movido pela Procuradoria‐geral da República e do qual terá sido absolvido. Agora, pelos vistos e no entender das autoridades, o jovem terá voltado a ousar e a «cometer».

Muita água ainda há‐de correr por baixo dessa ponte. Com o acto de detenção dos jovens que, desde sábado, despertou a atenção da sociedade, sem querer as próprias autoridades chamaram a atenção da população à obra literária envolvida. Sem querer, promoveram o livro «proibido» ‐ a «prova» do crime.