Luanda - A detenção há cerca de um mês de uma dúzia e meia de jovens, que se assumem como integrantes de um chamado Movimento Revolucionário, provocou e continua a provocar comoção em muitos sectores da sociedade angolana.

 

Fonte: Rede Angola

Políticos, juristas e jornalistas de reconhecida competência têm denunciado, invocando a Constituição, graves atropelos à legalidade por parte das autoridades policiais e da Procuradoria Geral da República.

 

Nas redes sociais, e não só, intelectuais, artistas e pessoas comuns de todas as idades, assim como governos e organismos internacionais, condenam a forma atabalhoada como as prisões foram feitas e a fragilidade das acusações, exigindo a libertação incondicional dos detidos, por não lhes reconhecerem qualquer culpa ou crime.

 

Há apelos a protestos ‘ruidosos’ e a actos de solidariedade a favor daqueles que só estariam a discutir, dentro da mais estrita legalidade, formas de contestar pela via pacífica um regime com o qual não estão de acordo, por acharem que não é democrático nem satisfaz as necessidades básicas da maioria da população.

 

Enquanto pessoas ligadas ao regime se excedem em argumentos legalistas para justificar a prisão preventiva dos activistas, do lado contrário alguns dos mais solidários oferecem-se para também serem presos… (mesmo estando a vários milhares de quilómetros de distância; mas tudo bem, o que conta é o gesto).

 

Fica difícil, assim, tentar encontrar o equilíbrio entre posições tão extremadas e tão marcadas pela emotividade. Entretanto, no meio de tudo isto, começou a ser dada publicidade ao principal livro que os activistas estavam a estudar em grupo, o qual, segundo a generalidade das opiniões, advoga apenas o pacifismo e a não violência.

 

O livro chama-se ‘Da ditadura à democracia – Uma estrutura conceptual para a libertação’ e é seu autor, Gene Sharp, um simpático octogenário que vive calmamente no seu país natal, mas que acaba por nunca se distanciar dos problemas que a sua obra tem provocado um pouco por toda a parte. Problemas? Que tipo de problemas, se as sugestões nela feitas são pacíficas ou até mesmo artísticas? Por exemplo, ‘sketches’ cómicos ou a encenação pública do funeral do ditador contestado.

 

Não sei se todos os que afirmam que o livro apregoa o pacifismo o leram realmente, pois se o tivessem feito saberiam que é o próprio Sharp que pede logo no primeiro capítulo que não se confunda “pacifismo” com “desafio político”, que é o que ele propõe, adoptando a expressão primeiro introduzida por Robert Hervey, coronel retirado do exército americano, que é tido como o principal braço operativo da Albert Einstein Institution (AEI), criada por Sharp.

 

Escreve Sharp: “Desafio político é luta não violenta (protesto, não cooperação e intervenção) aplicada desafiadora e activamente para fins políticos. O termo surgiu em resposta à confusão e distorção criados por equiparação da luta não violenta ao pacifismo e ‘não violência’ moral ou religiosa. ‘Desafio’ denota uma oposição deliberada à autoridade, por meio de desobediência, não deixando espaço para submissão. Desafio político descreve o ambiente em que a acção é empregada (político), bem como o objectivo (poder político)”.

 

Quem percebeu de imediato o interesse e alcance desta proposta foi o Pentágono norte-americano, que logo após a publicação do livro, decidiu financiar, através da AEI, a difusão das ideias de Gene Sharp por todo o mundo, em especial por aqueles países na contramão dos interesses geoestratégicos norte-americanos.

 

(Questionada a este respeito – na sequência de uma ambígua entrevista do Rede Angola a Gene Sharp, na qual os pressupostos da pergunta praticamente já incluíam a resposta, esperando apenas que ele a confirmasse! – a directora executiva da AEI, Jamila Raqib, desmentiu no passado dia 9 que a instituição seja financiada pelo Pentágono ou pelo governo dos EUA. Ela frisou que desde 2003 – ano em que começou a trabalhar com Sharp – a AEI vive com dificuldades, sendo apoiada apenas por “pequenas fundações familiares” e, nos últimos dois anos, pelo “fundo irrestrito do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Noruega”. E acrescentou: “Antes disso foram sempre fundações privadas e indivíduos a apoiar”. Ficamos sem saber se o “antes disso” se refere à totalidade dos 20 (vinte) anos em que ela não trabalhou na AEI, porque muitas fontes fidedignas referem o financiamento do Pentágono a essa instituição, pelo menos de início. E não se percebe por que razão a senhora Raquib omitiu que a AEI recebeu, de facto, em fins do século passado fundos para a tradução das obras de Sharp da National Endowment for Democracy (NED) e do International Republican Institute (IRI), duas fundações conhecidas por se envolverem de forma activa na desestabilização de regimes tidos pelos EUA como “não amigáveis”.)

 

Nos anos 80, ainda em pleno período da Guerra Fria, vários estudos foram desenvolvidos pela CIA e pela NATO sobre formas de resistência popular à eventualidade de uma invasão comunista vitoriosa, em especial em países da Europa ocidental. O livro de Sharp surgiu nesse contexto, mas, como entretanto já caíra o Muro de Berlim (1990), as ideias nele contidas passaram a ser de preferência utilizadas para acelerar a desagregação da ex-URSS.

 

Uma das vantagens do livro era propor medidas que se realizavam de forma não violenta e por etapas, naquela que é também conhecida por ‘estratégia do golpe suave’, permitindo assim uma progressão segura na obtenção de resultados. Outra mais-valia era o livro ser divulgado pela AEI, já que essa instituição podia obter financiamentos de quem quer que seja, sem ter de prestar contas ao Congresso americano, e era facilmente ‘exportável’ como ONG para qualquer parte do mundo.

 

O que realmente foi acontecendo. Todos os países escolhidos pela AEI para a sua acção viviam, ou passaram a viver, crises de distinta natureza. Por ordem alfabética: Afeganistão, Bielorússia, Birmânia (actual Myanmar), Bolívia, China, Egipto, Geórgia, Honduras, Índia, Irão, Iraque, Kosovo, Líbia, Lituânia, Paraguai, Sérvia, Síria, Taiwan, Tibete, Tunísia, Ucrânia, Venezuela e Zimbabwe.

 

No Médio Oriente, a AEI contribuiu nos anos 90 para a cisão da OLP, altura em que o próprio Sharp colaborou pessoalmente com o coronel Reuven Gal, ex-director da Divisão de Acção Psicológica do exército israelita.

 

Sintomaticamente, a AEI passou a prestar consultoria estratégica a todos os que se opunham não apenas a ditaduras, mas também a regimes com opções contrárias aos interesses dos EUA. As suas práticas reconhecidamente democráticas, como a não violência e a desobediência civil, serviram muitas vezes, no entanto, para encobrir acções secretas de outras forças que acabaram por impor poderes pela via não democrática.

 

Para que não se pense que só agora é que me lembrei de fazer insinuações a respeito de Sharp, reproduzo o que escrevi a respeito das ‘revoltas espontâneas’ que estavam a ocorrer na altura, numa das minhas primeiras crónicas no Rede Angola, publicada em 29 de Março de 2014:

“É de Gene Sharp, octogenário conhecido como o Guru das Revoluções, o Maquiavel do Pacifismo ou o Clausewitz da Não Violência, a ideia de atribuir uma cor ou uma flor imediatamente reconhecível (verde ou laranja; rosa ou jasmim, etc.), entre outras ideias do mesmo género, a essas supostas revoltas espontâneas que só em teoria são pacíficas.

 

“Sintomáticamente, o Pentágono norte-americano, que não é propriamente famoso por ser um grande cultor do pacifismo e da não violência, dispôs-se desde meados dos anos 80 a financiar a criação de uma ONG (a Albert Einstein Institution), que passou a ajudar a promover as ideias de Sharp por todo o mundo. Com tanto ou tão pouco êxito que essas ideias foram adoptadas e levadas à prática nas manifestações ocorridas na Geórgia, na Bielorússia, no Irão, na Tunísia, no Egipto, na Líbia, na Síria, etc.”

 

Numa obra intitulada ‘Manual de auto-ajuda para golpes de Estado suaves’ , o seu autor, Walter Goober, caracterizou e resumiu o “método não violento e passo a passo” de Gene Sharp em cinco etapas, que, aliás, podem ser aplicadas em simultâneo (cf. www.infonews.com):

1ª etapa – Afrouxamento (criar opinião contra défices reais ou potenciais; promover descontentamento e mal estar, denunciando a criminalidade e a corrupção, e intrigas sectárias);

2ª etapa – Deslegitimação (promover campanhas em defesa da liberdade de imprensa, direitos humanos e liberdades públicas e fazer acusações de totalitarismo e pensamento único, criando fractura ético-política);

3ª etapa – Aquecimento nas ruas (fomentar conflitos e mobilizar manifestações, radicalizando a confrontação; gerar protestos expondo falhas e erros governamentais);

4ª etapa – Combinação de diversas formas de luta (organizar marchas e cativar para o seu lado instituições emblemáticas; desenvolver operações de guerra psicológica e acções de força que justifiquem medidas repressivas; criar um clima de ingovernabilidade; inventar boatos no seio das forças militares e desmoralizar a imagem de organismos de segurança);

5ª etapa – Fractura institucional (com base em acções de rua, tomar instituições e fomentar pronunciamentos militares, obrigando assim o líder contestado a renunciar. Em caso de fracasso, preparar terreno para uma intervenção militar do Império ou para o isolamento internacional e o cerco económico do país).

(NOTA: Quem estiver interessado em aprofundar o assunto, basta consultar o site www.mailstar.net/Sharp-Soros-NED-CIA, no qual Peter Myers reuniu, a favor e contra Gene Sharp, artigos de pelo menos quinze autores).

*

Quer tudo isto dizer que sou de opinião que os jovens activistas angolanos estão mancomunados com esta estratégia global e pretendiam também adoptar este tipo de acções e atentar, de facto, contra a segurança do Estado angolano? Não tenho qualquer razão para acreditar ou para deixar de acreditar nisso. Sei apenas o que foi divulgado e não foi desmentido: que eles estavam a estudar em grupo o livro de Sharp.

 

Com que motivações ou objectivos o faziam, cabe-lhes apenas a eles próprios esclarecer. Enquanto isso, como a instrução preparatória do processo contra eles se continua a arrastar e não foi ainda encaminhada para tribunal, todos eles continuam a gozar da presunção de ser inocentes e merecem ser tratados como tal.

 

Aqueles que protestam ou mesmo ironizam, dizendo que ler um livro não é crime nem é cometer nenhum acto de rebelião, têm razão. De facto, NÃO É! Mas como importa falar claro e parto do princípio de que aqui ninguém é ingénuo, afirmo-o com a máxima convicção (mesmo suportando o ónus de ser uma vez mais acusado de ser adepto de teorias da conspiração):

Se alguma vez vier a ser posta em prática em Angola, SEJA POR QUEM FOR!, a escalada de acções (são 198!) segundo o modelo proposto por Gene Sharp na sua obra (nas cinco etapas em que Myers o resumiu), as mesmas forças que comprovadamente fomentam ou simplesmente manipulam o descontentamento noutras paragens vão de certeza empenhar-se em apoiá-las por todos os meios. Com as consequências conhecidas.

 

O que há de concreto e indesmentível na situação em apreço, no entanto, é que essas acções NUNCA foram postas em prática pelos jovens activistas detidos. Assim, se outras razões não existiram, parece ser precipitada e exagerada a precaução por parte das autoridades, tanto mais que não há qualquer exemplo de um movimento de resistência civil desta natureza ter alguma vez derrubado um governo sufragado pela grande maioria dos eleitores do país, como é o caso do angolano.

 

A medida repressiva imediatamente adoptada, cuja legalidade tem vindo a ser posta em causa e que poderá ser por essa razão injusta, acabou por criar o actual impasse jurídico e conferir visibilidade a algo que (quando muito!) existiria apenas em potência. Na contracorrente das intenções da polícia, a detenção deu aos chamados ‘revús’ um trunfo essencial – publicidade para a sua causa à custa do adversário. Exactamente uma das tácticas que Sharp ensina!

Na crónica já referida, eu transcrevia também a lúcida posição do ex-presidente do Uruguai, Pepe Mujica, a respeito dos protestos que se generalizavam um pouco por todo o mundo:

“Eu simpatizo com os protestos, mas não levam a lugar nenhum. Não construíram nada. Para construir, há de se criar uma mente política, colectiva, de longo prazo, com ideias, disciplina, e com método. Isso é antigo, ou parece antigo. Mas sem interesses colectivos, é difícil mudar. Não são os grandes homens que mudam as sociedades, estas mudam quando os protestos se organizam, disciplinam, têm métodos de longo prazo. Esses movimentos de protesto têm a vantagem do novo, e tentam alguma coisa nova porque desconfiam de todos os velhos, especialmente dos partidos, porque perderam a confiança neles. Mas as primaveras têm-se transformado em inverno porque não sabem para onde ir”.

Em reacção a isto, alguns poderão defender-se com base nos versos do poeta português José Régio: “Não sei por onde vou, não sei para onde vou; sei que não vou por aí!”. Sendo o “por aí” a actual política do MPLA e do Governo. Têm todo esse direito, claro!

 

PS: Na eventualidade de qualquer crítica a esta crónica, e dada a delicadeza do seu tema, agradeço que se cinjam ao que escrevi e que fundamentem os seus argumentos de forma convincente, sem recurso aos habituais ataques pessoais e insinuações grosseiras.

Muito obrigado!