Cabinda - Arão Bula Tempo, 52 anos, é advogado, presidente do Conselho Provincial de Cabinda da Ordem dos Advogados, facto que não impediu as autoridades de o terem detido durante dois meses na prisão, acusado de sedição, alegadamente por ter-se deslocado à fronteira com o Congo-Brazzaville para receber uns jornalistas para assistir à marcha que havia sido convocada.

 

Fonte: RA
Libertado em Maio da Cadeia Civil de Cabinda, ao contrário de outro advogado e defensor dos direitos humanos, José Marcos Mavungo, detido no mesmo dia mas ainda preso, a Arão Tempo foi aconselhado a não participar em reuniões ou prestar quaisquer declarações, decidiu, no entanto, dar esta entrevista ao Rede Angola.

 

Uma conversa em que o advogado descreve as circunstâncias da sua detenção, o tempo que passou na cadeia e garante que ainda continua a ser perseguido politicamente devido ao facto de defender pessoas acusadas de crime contra a segurança do Estado.

 

Garantindo que não pertence, nem nunca pertenceu, à Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC), como as autoridades o acusam, Arão Tempo explica que o seu é um caso demonstrativo da falta de direitos que ainda existe em Cabinda, onde quem não alinha com as posições de Luanda é considerado independentista e próximo da FLEC.

Quanto tempo esteve detido e em que circunstâncias é que foi detido?
Estive dois meses e alguns dias na prisão. A detenção ocorreu no dia 14 de Março, na fronteira de Massabe, quando acompanhava um cliente, Manuel Biongo, para podermos tratar de um assunto de cessação de quota com o sócio dele, residente em Ponta Negra. Chegamos à fronteira por volta das 7h30 e os guardas disseram que teríamos que esperar. A seguir, apareceu um cidadão não identificado pedindo para falar comigo. Desci do carro e fomos ao seu escritório, quando entro vejo DNIC [Direcção Nacional de Investigação Criminal] escrito na porta. Perguntou-me onde ia. Expliquei-lhe que estava em trabalho. E ele não soube me dizer porque me estavam a impedir de passar. Daí surgiu o comandante comunal informando-me que o comandante provincial queria conversar comigo juntamente com uma delegação vinda de Luanda. Pedi que aguardassem para estar com o meu cliente mas impediram-me dizendo que o delegado e a comitiva estavam a chegar. Disseram-me inclusive que o meu cliente me acompanhasse. Fomos escoltados pela viatura que conduzia o comandante provincial da Polícia Nacional, Alberto Sebastião Mendes. Na esquadra da Lândala, os polícias meteram-me na caserna, as casas onde eles dormem. O comandante municipal da esquadra ofereceu-nos água e perguntei-lhe porque estava a ser submetido a esse tratamento. Ele disse que não sabia e colocaram-me numa viatura e transportaram-me como um homem altamente criminoso até a DPIC [Direcção Provincial de Investigação Criminal], na cidade de Cabinda.

 

O que aconteceu ao chegar à sede da DPIC?
Fui conduzido ao gabinete do director-adjunto de Investigação Criminal, Agostinho da Cruz Agostinho, e colocaram um elemento do Serviço de Inteligência e Segurança do Estado para me guardar. Perguntei o que estava a acontecer e nunca me disseram nada. O meu cliente tentou mostrar os documentos para justificar a nossa viagem, recusou-se a ver e disse que não estávamos presos, estava a aguardar o seu superior para mantermos uma conversa e depois da qual poderíamos regressar para casa. Mais tarde retirou-nos o telefone. Chegamos ao gabinete às 11h e ficamos até às 22h. Quando fomos transferidos do gabinete do director-adjunto para a sala de reuniões encontramos o doutor Marcos Mavungo e um aparato de polícias e disseram-nos para esperar até a delegação chegar. Ficamos e dormimos nas cadeiras, uma para sentar e outra para esticar as pernas. À uma hora da madrugada fui chamado pelo investigador. Disse-me que não sabia de nada também, só podia adiantar que havia recebido a informação de que eu tinha ido buscar jornalistas na fronteira de Massabe para cobrirem a marcha prevista para acontecer no dia 14 de Março. Pediu-me os dados pessoais. Isto sempre acompanhado do aparato de polícias, mesmo para irmos à casa de banho.



Quando é que foi informado do motivo da detenção?
Fiquei sábado e domingo sem comer e sem direito a visita. Segunda-feira, por volta das 11h, um funcionário da procuradoria informou-nos que devíamos ir ao tribunal, o meu cliente, eu e o Marcos Mavungo. Disse que não podia ir sem que me explicassem o motivo, porque, apesar de ser um cidadão comum, sou presidente do conselho provincial da Ordem dos Advogados em Cabinda. O procurador geral de Cabinda disse-me que estava a ser indiciado pelo crime de sedição. Mais tarde disse-se que o meu processo tinha que voltar à Investigação Criminal para efeito de instrução. Aí passei mais uma noite e o Marcos Mavungo foi transferido para a Unidade Penitenciária de Yabi. Fiquei de novo na sala de reuniões sem portas, nem janelas e dormimos de novo nas cadeiras. Fui chamado de novo na terça-feira para o primeiro interrogatório acompanhado dos meus advogados, Francisco Luemba, Luís Nascimento e José Vuluquize. Afirmei que não ia prestar nenhuma declaração porque não sabia o que estava a acontecer, mas os meus colegas disseram-me que era melhor prestar o depoimento.

Como foi esse primeiro depoimento?
O procurador fez a leitura da participação, que eu tinha ido à fronteira buscar jornalistas e, simultaneamente, estava em contacto com o Leandro para recrutar membros do Movimento Revolucionário para desestabilizar Angola a partir da província de Cabinda e não fosse a intervenção e prontidão da Polícia Nacional teria consumado o meu propósito.

Quem é Leandro?
No dia 9 de Março, estava a defender um processo de alguns militares da FLEC que foram detidos há muito tempo nas matas e conduzidos ao quartel general em Cabinda, onde ficaram três meses sem contacto com as famílias. Foram julgados sem advogado e o procurador limitou-se a acusá-los de crime de rebelião e atentado contra a segurança do Estado. Aceitei defender esses homens. Na audiência só estavam pessoas ligadas à segurança. E como sempre tenho defendido pessoas acusadas de crimes contra a segurança do Estado, começaram a insinuar que eu devia estar ligado com o exterior, que era suspeito. Naquele processo ouvi falar do Leandro. Nunca tive contacto, não o conheço. É uma pessoa que foi da FLEC há muito tempo. Sempre que há problemas, acusam o Leandro, só para justificar. É um elemento que não aparece e tem sido acusado de estar a recrutar mercenários e estrangeiros para desestabilizar Angola.

 

O seu nome aparece associado à FLEC em alguns artigos. Tem alguma ligação à organização?
Nunca fui militar da FLEC, nem político da FLEC. Queria esclarecer que todo o natural de Cabinda é associado à FLEC. Tendo em conta a situação política da região e a história de que somos independentistas, e como é um problema que ainda persiste na região, quem não puder aliar-se ao sistema político sofre de perseguição, prisões, detenções e até execuções sumárias.

 


Mas voltando ao interrogatório.
O procurador perguntou-me se conhecia o Leandro e se fui recrutar jornalistas. Perguntou-me ainda se reconhecia as mensagens do meu telefone, como desde sábado o aparelho estava desligado, disse que não confirmava, a menos que eu as visse. Mais tarde apresentou umas entrevistas que eu tinha dado. Numa delas dizia que a Constituição da República está suspensa em Cabinda por estar vedado o direito de liberdade de expressão. Disse que reconhecia até porque se estava na prisão era exactamente por falta de liberdade de expressão, porque uma entrevista não pode ser objecto de prisão. Apresentou-me um panfleto da FLEC, que não sei onde o foram buscar. Também o meteram no meu processo para me incriminar. Havia outro panfleto do programa da marcha de 14 de Março. Por fim, o procurador Dongala, deu o seguinte despacho: “A detenção foi efectuada fora de flagrante delito, mas atendendo à situação política do território, valido a mesma tendo em conta o comportamento assumido pelo arguido de ter contactos com o exterior para desestabilizar Angola a partir da província de Cabinda e de ter recrutado jornalistas para cobrir a marcha.”



Qual a sua ligação com os organizadores da marcha prevista para 14 de Março?
Sou activista dos direitos humanos e defendo pessoas acusadas de crimes contra a segurança do Estado, as igrejas e as pessoas que sofreram de demolições de suas casas. Como advogado estou submetido a uma deontologia e como profissional não posso revelar quaisquer questões que digam respeito à privacidade dos clientes. Como advogado não tenho nada a dizer se dei assessoria ou não ou se tive contacto com os organizadores da marcha.

“Dormia no chão, sem telefone, nem direito a ler jornal ou livro”

Como foram os dois meses detido?
Na Cadeia Civil, dormia no chão, sem telefone, nem direito a ler um jornal ou livro. Só podia aperceber-me que já estava a amanhecer quando os passarinhos começavam a cantar. De dia não tinha direito nem de ver a hora. Fiquei lá dois meses. Quando cheguei, alguns detidos vieram para me agredir, bandidos altamente perigosos, elementos que o antigo director provincial de Investigação Criminal, Oliveira da Silva, usa para irem fazer assaltos nos bairros.

 

Como assim?
É um grupo de prisioneiros a que ele dava armas para cometerem crimes. Saíam à noite para promoverem assaltos. Dividiam o dinheiro entre eles. Lá na cadeia assumiram isso. Só não me agrediram porque houve intervenção dos outros prisioneiros políticos que lá estavam e me defenderam. Mas a todo o momento havia barulho, confusão, queriam agredir-me.



Foi a primeira vez que foi preso?
Foi a primeira vez, mas tenho passado situações terríveis, perseguições, até polícias a introduzirem-se em minha casa à noite – levo uma vida infernal. Dia 16 de Julho, quando regressei a casa, os vizinhos contaram-me que um cidadão introduziu-se no quintal, disfarçado de alguém que queria arrendar uma casa, e começou a fazer perguntas sobre a minha rotina. Quando sentiu que as pessoas estavam a desconfiar, saiu sem se despedir. No dia a seguir, recebi um telefonema de que a mesma pessoa estava novamente no meu quintal. Voltei para casa, encontrei a pessoa, interceptei-a e pedi que fôssemos à polícia. Ele fugiu, mas os vizinhos conseguiram apanhar o cidadão e fomos à Investigação Criminal. Quando lá chegámos descobri que a pessoa pertence ao Sinfo [actual Serviço de Inteligência e Segurança do Estado]. Deixei-o lá e não sei o que vai acontecer. Ainda não me chamaram.

 

Antes da sua prisão alguma vez se sentiu ameaçado?
Antes dessa detenção, no dia 12 de Março, pessoas introduziram-se no meu quintal e tentaram forçar a porta, queriam entrar para me surpreender. Mesmo no julgamento daqueles elementos da FLEC, começaram a ameaçar-me. Estou sendo perseguido por causa do meu perfil, porque dizem que sou pessoa do povo e isso torna-se uma ameaça, por causa do meu dinamismo e dedicação em defesa da liberdade, direitos e garantia da justiça do cidadão.



Quando foi libertado e porquê?
A minha libertação foi no dia 13 de Maio. Não houve provas suficientes. Sei que o processo continua, mas não há provas suficientes para me acusar.


 
Em Junho foi impedido de deslocar-se a Benguela para uma palestra sobre direitos humanos.
Quando me concederam a liberdade provisória disseram que não podia sair da província sem autorização prévia. Recebi uma convocatória para a reunião do Conselho Nacional de Advocacia, no Namibe, e enviei uma carta a informar, mas nunca recebi autorização, nem despacho para o pedido. Dias depois, recebi o convite da OMUNGA para dar uma conferência em Benguela. Liguei ao procurador junto à DNIC, dizendo que tinha necessidade de sair por questões profissionais. Enviou-me ao sub-procurador provincial da República, António Nito, que me disse que podia ir, mas não podia participar em nenhuma reunião, nem sequer prestar declarações fora do âmbito profissional. Quando estava a entrar na sala de embarque [do aeroporto], um polícia disse-me que não podia viajar. Liguei ao sub-procurador que afirmou que já sabia que eu ia a Benguela para fazer uma conferência e desligou. No aeroporto havia um forte aparato militar, a Sinfo e viaturas com vidros escuros. Não me queriam deixar voltar para casa, por fim lá me deixaram ir.

“Em qualquer momento posso apanhar uma crise e morro”

Não tem receio de conceder esta entrevista?
Enquanto eu me sentir como um cidadão livre e a própria Constituição da República de Angola e outras convenções nacionais me derem alguma liberdade, sinto-me livre como cidadão. Neste momento estou muito doente. Estou a sair de soros. Alguns médicos até me dizem que não podem nem dizer do que estão a me tratar. Em qualquer momento posso apanhar uma crise e morro e não posso sair para fazer tratamento.

 

Toda essa situação tem impedido o exercício da sua profissão.
Tudo depende da minha profissão. É com ela que ganho o meu sustento. A própria governadora de Cabinda, Aldina da Lomba, começa a fazer campanha contra mim. Veio alguém para me dizer que não sou um bom advogado, alguns retiraram processos e outros não querem pagar. Estou a levar uma vida complicada, mas vou suportar até onde puder.

 

O que pensa que motivou a vossa detenção?
O que motivou é que aqui em Cabinda está vedada a liberdade de expressão, circulação, religiosa, mesmo a liberdade de manifestação. Cabinda é um meio fechado e a pessoa se sente vedada. É um meio muito isolado, passam-se coisas terríveis e quando se defende os direitos humanos, começam a dizer que estamos contra o sistema político. Quando alguém não é aliado ou não está com o sistema e compactua com os seus ideais, é visto como FLEC, bandido, intruso, tudo. Sendo natural de Cabinda, pensando que podia haver protagonismo, viram que tinham de me deter e não só.



Tem tido contacto com Marcos Mavungo?
A primeira coisa que sinto muito é que a pessoa que esteve comigo nas mesmas condições continua na cadeia. Não posso lá ir para não agravar mais a sua situação mas estou em contacto com ele através de amigos e colegas advogados.



Alguma previsão para a sua libertação?
Em Cabinda, tudo depende da vontade dos homens. Pode ser hoje, amanhã ou outro qualquer dia para o soltarem.



Daqui para frente o que espera?
Espero que Angola, sendo um país membro do Conselho de Segurança da ONU, que os governantes venham a cumprir a própria Constituição da República. Que venham a agendar métodos e princípios para poder manter a paz na província de Cabinda. Encontrar um programa qualquer. Estas questões vão continuar enquanto não se resolverem os problemas de Cabinda.



Que problemas?
É um território militarizado e todos que não apoiam o sistema político vigente são conotados com a FLEC. É do conhecimento nacional e internacional que Cabinda tem problemas políticos. Já que não posso sair, quero que o governo resolva qual é o meu estatuto, que cessem as perseguições pelo facto de ser natural de Cabinda. Também quero me sentir como cidadão, quero viver como um cidadão livre, porque matar, perseguir, pôr em cadeias não vai resolver os reais problemas de Cabinda.