Cabinda - Introdução:  No dia 9 de Julho de 2002, a Organização da Unidade Africana (OUA) foi transformada oficialmente em União Africana (UA) no final da vigência da Presidência de Thabo Mbeki. Este acto foi o corolário de um processo interno de transformações e reformas estruturais impulsionadas por alguns líderes africanos, sobretudo o malogrado Presidente líbio Muahamar Al-kaddafi, defensor de uma grande Confederação Africana. Foi curiosamente na Líbia onde aconteceu a primeira conferência de Chefes de Estado e de Governo sobre a criação de uma união de estados africanos. A conferência produziu a Declaração de Sirte que passou a ser o marco primacial de outras cimeiras que se seguiram sobre o mesmo assunto. A nova organização regional herdou a história da sua predecessora, mas assinalando, ao mesmo tempo, um ponto de viragem e de ruptura com a mesma em matérias de segurança e de desenvolvimento em África. Com efeito, a OUA, pesem embora todos os seus méritos no processo da emancipação da África do domínio colonial europeu, claudicou em relação à resolução dos numerosos conflitos que polvilharam em África no período pós-independência. O facto deve-se, em grande medida, à falta de um quadro legal e político apropriado para levar a cabo missões dessa natureza. A criação da UA abre novas perspectivas em matéria da resolução de conflitos, incluindo as operações de apoio à paz.

 

Fonte: Club-k.net


Entretanto, embora passos significativos tenham sido registados na última década, ainda se está muito aquém das capacidades necessárias para assumir com eficiência as missões de paz. Para além dos conflitos endémicos de cariz étnico-político, hoje assiste-se também ao surgimento do terrorismo transnacional com certa acutilância em alguns países como a Nigéria, o Mali, a Somália, o Níger, o Quénia, os Camarões, etc. São desafios enormes que põem a nú os limites estruturais, financeiros e estratégicos (smart power, hard power e soft power) que a UA ainda enfrenta como organização regional. A solução passa pela cooperação com outras congéneres, como a União Europeia, e com a própria ONU. O presente artigo pretende trazer a lume os intrincados desafios que a UA enfrenta na sua prática e capacidade de apoio a operações de paz no continente africano, especialmente no combate ao terrorismo. Este desafio ficou muito claro na última cimeira dos Chefes de Estado e de Governo da UA (Janeiro 2015) aquando das discussões sobre as acções terroristas levadas a cabo pelo grupo Boko Haram na Nigéria e a necessidade e urgência de uma resposta através de uma coligação de forças (cerca de 7 mil homens) sob a égide da UA.

 

1. A União Africana: Uma nova chance para a África?

Tendo em conta a inoperância da OUA e a sua incapacidade em responder satisfatoriamente aos ingentes desafios do continente africano, foram surgindo internamente várias correntes. Algumas defendiam uma reforma profunda da OUA, e esta passaria por uma revisão dos seus estatutos, o que lhe permitiria maior dinamismo face aos desafios modernos; outras preconizaram uma transformação política radical da organização com a criação de uma confederação de estados africanos: os Estados Unidos da África. No seio destes últimos, destacam-se dois grupos: os imediatistas e os gradualistas. Os Estados membros foram posicionando-se mais ou menos nestas duas perspectivas. Uns defendiam para já um governo central africano, enquanto que os outros, mais pragmáticos, preferiam avançar por etapas e com cautelas. A primeira etapa do gradualismo acabaria por ser a criação da União Africana através da adoção do Acto Constitutivo na Cimeira de Lomé (Togo) em 2000. A OUA viria a ser formalmente banida e substituida pela União Africana a 9 de Julho de 2002.


A nova organização regional veio implementar mudanças estruturais e operativas, dotando-se de órgãos institucionais e mecanismos proativos com vista a colmatar o deficit da sua predecessora em matéria de prevenção e resolução de conflitos regionais, cujos sistemas se tornaram «mais realistas, eficazes e adequados à actual conjuntura mundial e à realidade africana, tornando-se efectivamente uma organização de integração no lugar de uma organização de cooperação inter-governamental.» (BERNARDINO, 2008: 595).


A União Africana assenta em três eixos principais: a) a paz e a segurança; b) os direitos humanos e a democracia; c) a integração económica. Este tripé inspira o seu lema: UMA EFICIENTE E EFECTIVA UNIÃO AFRICANA PARA UMA AFRICA NOVA. É neste sentido que os cinquenta anos da OUA (1963-2013) foram celebrados sob o pano-de-fundo do ´´renascimento africano´´, tema que tem animado alguns africanistas nos últimos tempos (CARNEIRO & FERREIRA, 2011). Os africanos e a comunidade internacional acolheram a nova organização com fundadas expectativas, sobretudo em relação às novas perspectivas tipicamente africanas (African Ownership) na promoção da paz, segurança e estabilidade regionais.

 

2. Natureza dos Conflitos Internos em Africa.

Os cinquenta anos das independências africanas (se tomarmos como marco principal a década de sessenta) foram marcados por conflitos políticos intermináveis que na maior parte dos casos descambaram para a violência nas suas diversas manifestações (guerras civis, revoltas insurrecionais, guerrilhas, sabotagens económicas, repressão policial, golpes de estado, genocídios, etc. Na verdade, se revisitarmos a História colonial, veremos que o fenómeno dos conflitos violentos de matiz política em África não é novo nem é original, pois durante séculos de dominação europeia a violência política foi o principal esteio da sobrevivênvia do estado colonial contra as reivindicações nativistas e as pretensões emancipacionistas dos autótones. A violência, digamos en passant, era um elemento constitutivo do estado colonial. Tanto assim é que algumas colónias (v.g. Angola, Guiné-Bissau, Moçambique, Argélia, etc.) enveredaram pela violência armada como via extrema para libertação dos seus povos do jugo colonial. Ora, as independências africanas não imunizaram as sociedades africanas em relação à violência política, e não podia ser doutro modo. Os poderes vicários africanos criaram estados fortemente centralizados, fazendo tábua rasa a todo um conjunto de pressupostos antropológicos e sociológicos da realidade africana. Os antagonismos étnicos não se fizeram esperar apeando caminho para conflitos identitários e geopolíticos (disputas fronteiriças, fusionismos, cisionismos, irredentismos) que ensaguentaram a Africa muito recentemente com guerras civis, inter ou intra-estatais para a conquista ou conservação do poder, e para o controlo dos recursos minerais estratégicos (petróleo, diamantes, cobre, urânio, e outros).


Todavia esses conflitos tiveram sempre uma mão ´´visível´´ das potências externas, sobretudo, das antigas potências coloniais. A descolonização não foi propriamente uma ruptura radical entre as metrópoles europeias e suas antigas colónias. Antes pelo contrário, o receio paranoico de perder o controlo sobre os recursos africanos, levou a que essas potências agissem na sombra, em certos casos envolvendo os seus serviços secretos, com planos estratégicos de desestabilização dos estados africanos, marcados ainda por uma tremenda fragilidade político-institucional e económica. Foram derrubados, com a sua ajuda, lideres africanos nacionalistas e visionários que não estavam dispostos a engolir o engodo do neocolonialismo e ajudaram os seus lacaios a conquistar o poder para proteger os seus novos interesses nas suas antigas colónias. A história contemporânea de África regista uma boa lista de figuras de proa da emancipação africana que acabaram por ser eliminados pela conspiração internacional. Vejam-se, v.g., os casos de Amilcar Cabral, Eduardo Mondlane, Patrice Lumumba, Agostinho Neto, Samora Machel, Anuar El Sadat, Kuame Nkrumah (este último foi vítima de um golpe de Estado durante uma visita de Estado a China). A guerra fria, por sua vez, alimentou muitas guerras por encomenda (também ditas ´´guerras por delegação´´) em África. Quer os EUA quer a URSS exportaram as suas disputas ideológicas e geoestratégicas para o continente africano apoiando logística e financeiramente regimes ou movimentos rebeldes, como no caso de Angola. Outro aspecto não menos importante é a disseminação de armamentos e a facilidade com que chegam às mãos de qualquer um. África tornou-se presa fácil dos magnatas da indústria armamentista que a transformaram em mercado lucrativo para o escoamento de grandes stocks de armas, não raras vezes obsoletas. As antigas potências coloniais como a França, a Inglaterra, Portugal, a Bélgica juntamente com as duas superpotências da Guerra Fria (EUA, URSS) foram actores dinâmicos e estratégicos no apoio militar aos seus aliados africanos (regimes ou movimentos rebeldes). 


Esta realidade coloca-nos diante de um problema que tem constituido nos últimos anos matéria de estudo para alguns africanistas: as debilidades do estado pós-colonial em África. Sem adentrar demasiado no mérito da questão, podemos aqui referir que a geração dos libertadores africanos que assumiu o poder vicário, fê-lo na maior parte dos casos de forma autocrática e populista acabando por confiscar para si todas as prerrogativas do estado republicano de que tanto se vangloriavam. O estado pós-colonial, a mercê dos novos predadores, passou a ser uma fabulosa máquina de opressão e de pilhagem sem precedentes. Esta realidade veio de algum modo propiciar a desfuncionalidade institucional e a irracionalidade política que desembocou quase sempre na desacreditação do estado ou da autoridade do estado levando os cidadãos a assumirem uma posição de contestação, de confronto ou de resignação. Assim sendo, não admira pois que o continente africano tenha perdido oportunidades de progresso por décadas de conflitos endémicos que a OUA não podia resolver por ter sido, desde logo, um ninho onde se acoitavam os principais ditadores africanos. Alguém, e com sobejas razões, lhe chamou de ´´Clube de Ditadores´´. É fácil compreender, portanto, «as causas e circunstâncias da ausência de uma vontade política que teria possibilitado a África transformar a sua imensidão geográfica, a abundância dos seus recursos naturais e humanos, num pólo de poder regional» (TSHIYEMBE & BUKASA, 2013: 198).

 


3. A Arquitetura de paz e Segurança Africana.

No mundo globalizado, assiste-se uma fragmentação ou até mesmo erosão do Estado, com maior incidência desde o crepúsculo da Guerra Fria, com a emergência de novos actores de Direito Internacional Público que reivindicam também ´´espaços´´ tradicionalmente reservados aos Estados no sistema internacional. Um desses espaços é o da segurança e defesa. No Direito Internacional clássico o Estado soberano detinha para si o chamado Ius Belli (Direito de Guerra); na perspectiva da ciência politica, o estado hobbesiano detinha o monópolio do uso legítimo da violência política, no sentido de uso da força coerciva. Hoje a realidade parece tomar outros rumos, embora o Estado continue a ser o principal actor das relações internacionais. Os novos actores não estatais, supra-estatais ou sub-estatais que povoam as relações internacionais contemporâneas são as Organizações Internacionais (OI) nas suas vertentes de Organizações Inter-Governamentais (OIG) e  Organizações Não-Governamentais (AA.VV., 2010) e os movimentos de libertação, etc.. Para a nossa abordagem, destacamos aqui as Organizações Internacionais de âmbito universal (ONU) ou regional (UE, UA, NATO) ou ainda sub-regional (SADC, CEDEAO, CEEAC, etc). Todas elas têm hoje uma palavra a dizer no âmbito do objecto deste estudo. Com a adoção da Carta de S. Francisco, fundadora da ONU, a comunidade internacional entendeu, depois da experiência das atrocidades das duas Grandes Guerras, despojar o Estado do direito de guerra (Ius belli). Este passa a ser uma prerrogativa exclusiva do Conselho de Segurança da ONU. Em contrapartida, é reservada aos Estados, no âmbito da sua soberania, o direito de legítima defesa (NAÇÕES UNIDAS). Referimo-nos ao Cap. V,  art. 24º, Cap. VI, art. 33º, Cap VII, Art 51º. Teoricamente a Carta da ONU estipula a proibição da guerra (art. 2º, nºs 3, 4 e 5) e atribuição de poderes coercivos (uso da força) ao Conselho de Segurança para a manutenção da Paz e da Segurança internacionais (art. 39).


O próprio conceito de segurança ganha novas nuances multidimensionais e multidisciplinares; regista-se um alargamento do conceito de defesa e segurança estatocêntrica para um conceito mais abrangente corporizada na segurança e defesa comum ou colectiva.


A realidade africana, apesar da sua complexidade genética agravada pela porosidade do Estado-Nação, ora em construção, vai-se enquadrando também nessa dinâmica global. Segundo BERNADINO (2013: 553),  a Arquitetura de Paz e Segurança em África apresenta actualmente dois níveis interligados e interdependentes:

 NIVEL REGIONAL: Protagonizado pela principal organização pan-africana (UA); esta está no centro de todo o sistema securitário continental.

 NIVEL SUB-REGIONAL: Protagonizado pelas cinco organizações sub-regionais compostas pelos 54 Estados africanos, a saber:

 Economic Community of West African States (ECOWAS) com 15 Estados-membros
 Southern African Developement Community (SADC) com 14 Estados-membros
 Economic Community of Central African States (ECCAS) com 11 Estados-membros
 Community of Sahel-Saharan States (CEN-SAD) com 23 Estados-membros
 União do Magrebe Árabe (UMA) com cerca de 8 Estados-membros


Para além destas organizações, foi criado um Conselho de Paz e Segurança. Este estabeleceu «um sistema de alerta continental (Continental Early Warning System), ligado a unidades implantadas no terreno que acompanham e monitorizam a situação de tensão regional, estando em interligação com os outros mecanismos complementares no nível sub-regional e permitindo a ativação dos mecanismos de resposta rápida.» (BERBARDINO, 2013: 553-554). De salientar ainda que este mecanismo de alerta é um importante indicador quer para a própria UA quer para a comunidade internacional para avaliar o nível de ameaça e de eclosão dos conflitos internos nos Estados africanos, possibilitando outrossim o acompanhamento do desenrolar de uma crise emergente. De destacar aqui também outra iniciativa mais virada para o emprego das forças: African Standby Forces (ASF). Este é o dispositivo continental de reação ou intervenção rápida da UA para prevenção e resolução de conflitos regionais, e dispõe de cinco Brigadas. Estas forças da UA agem, contudo, em estreita ligação com as Nações Unidas e constituem uma peça fundamental na resposta em tempo útil ao surgimento de conflitos violentos. Elas «foram criadas para desenvolver múltiplas missões, incluindo missões de monitorização e observação, projecção e pré posicionamento preventivo das forças, missões de peacebuilding (características no pós-conflito), operações de apoio à paz e intervenções militares convencionais» (BERBARDINO, 2013: 554).


Em relação à reconstrução pós-guerra ou pós-conflito, segundo os peritos, podem ser identificadas seis diferentes funções iniciais e contextuais para as operações de paz, a saber:
 Operações de Interposição e monitorização
 Operações de descolonização
 Operações de restauração da democracia
 Operações de apoio à paz
 Operações de Intervenção humanitária
 Operações de mudança de regime


As operações de apoio à paz são aquelas que parecem ser mais delicadas e complexas. Estas ocorrem quando estamos diante de uma intervenção destinada a gerir o período de transição da guerra para a paz, depois de concluido o cessar-fogo ou outro acordo prévio de paz. Os peritos defendem que este é o «locus classicus» para as operações de paz que não deve ser confundida com as operações de paz em geral, tendo em conta a sua complexidade. O acordo de paz entre beligerantes por si só não é o fim do conflito, pois permanecem as rivalidades políticas e as desconfianças mútuas. Por esta razão, o período a seguir ao acordo tem sido muitas vezes o mais perigoso. Angola e Rwanda são exemplos acabados do colapso dos acordos de paz que acabou por comprometer os esforços da comunidade internacional (UNAVEM II, UNAMUAR) no apoio à paz. A gestão pós-conflito aparece actualmente com especial acuidade sobretudo nas agências vocacionadas para as negociações de paz cujo interesse é recuperar os Estados no período pós-guerra e garantir a sua sustentabilidade. É o processo que recebe a designação técnica de peacebuilding. Entretanto, o combate ao terrorismo, como vamos ver, não se enquadra neste tipo de operações, pois a tipologia de conflito conta com outros elementos não tradicionais.

 


4. O terrorismo como ameaça transnacional

O mundo pós-Guerra Fria confronta-se com uma nova realidade desde os ataques de 11 de Setembro de 2001: o terrorismo transnacional. Embora tenhamos de admitir que o terrorismo sempre existiu em épocas anteriores da História - uma espécie de prototerrorismo -, hoje temos um fenómeno novo (nas suas formas, na sua expressão e nos seus métodos) cujo conceito ainda representa algumas dificuldades entre os especialistas. Desde logo, o fenómeno carece de abordagens multidisciplinares que se multiplicam ad nauseam no panorama científico: abordagens jurídicas, morais, militares, sociológicas, psicológicas ou da ciência política. Todavia, existem já algumas definições a nivel de conceito para permitir de algum modo viabilizar os debates e o tratamento do fenómeno através de uma linguagem isenta de ambiguidade. Para as Nações Unidas, o terrorismo envolve «toda a acção (...) que pretende causar a morte ou graves ferimentos corporais a civis ou não-combatentes, quando o propósito de tal acto, pela sua natureza ou contexto, serve para intimidar a população, ou para obrigar o Governo ou Organização Internacional a fazer ou abster de fazer alguma coisa» (Apud PROENÇA: 2014: 510). A OTAN também tem a sua definição que podemos traduzir livremente do inglês nestes termos: «Uso da violência ou a ameaça do uso da violência para provocar medo, e coagir ou intimidar governos ou sociedades para aceitação de objectivos que são políticos, religiosos e ideológicos ou a sua combinação pura e simples» (Apud PROENÇA: 2014:511). Nestas duas definições podemos aferir alguns aspectos pertinentes: a) O terrorismo é uma acção violenta (física e psicologicamente); b) Afecta especialmente não-combatentes (população civil); c) Visa fins políticos, religiosos e ideológicos; d) Age sobre os governos ou organizações para lograr concessões às suas reivindicações; e) Está dotado de capacidade de destruição (destroying power); f) Caracteriza-se pela desterritorialização, embora as suas acções estejam localizadas; Não exitem tréguas. Estas são apenas algumas características gerais, pois as diversas organizações terroristas não seguem necessariamente o mesmo ´´código de conduta´´ nem partilham do mesmo ´´modus operandi´´. Por exemplo, o Al Shabab não é o Boko Haram, pois uma coisa é combater a educação ocidental na Nigéria, como defende esta última, e outra é manter um país como um Estado falhado controlado por bandos criminosos, tal é o caso da Somália. Os seus métodos vão desde o uso estratégico das novas tecnologias de informação, sobretudo das chamadas redes sociais, para a propaganda persuasiva a fim de provocar a adesão de mais membros (as tecnologias de informação permitem fazer a publicidade, recrutamento, o controlo das acções e a exploração do sucesso), ao proselitismo militante e coercivo. O recrutamento tanto pode acontecer numa simples comunidade rural como numa cidade cosmopolita. Embora tenhamos de admitir a pobreza, a marginalização e exclusão social como factores favoráveis e motivacionais para o recrutamento, o fenómeno é bem mais volátil alcançando até indivíduos de classe média, com boa formação e economicamente dotados. Por conseguinte, resulta de algum modo dificil determinar uma identikit da personalidade dos terroristas, tendo em conta a complexidade humana e social do fenómeno. Há quem associa o terrorismo ao subdesenvolvimento, mas não podemos evidentemente deduzir daí que o fenómeno tem fundamentalmente causas de natureza económica. Podemos aceitar, sim, tendo em conta a realidade sociológica africana, a hipótese de que as comunidades economicamente vulneráveis sejam maioritariamente o espaço privilegiado para o recrutamento de terroristas. Porém, devemos destacar aqui também um facto primordial que leva a diferenciar o novo terrorismo dos seus arquétipos: trata-se da cultura teocrática que o inspira.


«Este é um tipo de terrorismo em que a cultura de base é teocrática, uma cultura que potencia, que leva ao extremo, a mobilização para morrer. Ou seja, essa  extraordinária ´´arma´´ que é morrer matando. Isto é uma coisa que não é possível  nas sociedades laicas e que é possível neste tipo de pensamento teocrático, e que é  uma arma poderosíssima deste ponto de vista, digamos também, alguém que ´´morre  matando´´ e que ganha, além disso, a salvação. É uma arma muito importante.»  (TEIXEIRA, 2009: 156).


Este facto, constitui por si só um desafio e uma ameaça à segurança e à paz dos Estados africanos. Por conseguinte, embora o fenômeno do terrorismo jihadista (de carriz islâmico) esteja circunscrito ainda na sua expressão em certos países da África, maioritariamente de confissão islâmica, não se pode negar que a ameaça (capacidade + intenção + possibilidade) paira potencialmente nos restantes países onde actualmente não se acham expressões ou acções terroristas. Este facto, leva os Estados a empreenderem medidas securitárias preventivas sobretudo a nivel das forças de segurança. Entretanto, estamos diante de um fenómeno global, também dito transnacional, que requer igualmente respostas globais. Por isso, o combate ao fenômeno não pode ser compartimentado em cada Estado de modo isolado e hermético. Daqui a relevância da União Africana e das organizações sub-regionais.

 


5. A União Africana: Desafios e Possibilidades

A União Africana, apesar de todos os seus esforços em curso e da confiança e créditos grangeados nos últimos anos no sistema político internacional, enfrenta ainda obstáculos e desafios pertinentes quer do ponto de vista estrutural quer do ponto de vista operacional. Na verdade, a organização está ainda longe de alcançar a full capability para operações de peacebuilding e peacekeeping. A situação financeira da organização regional e daquelas sub-regionais reflecte de algum modo os problemas económicos internos dos próprios Estados africanos. As operações de apoio à Paz são extremamente dispendiosas e requerem uma sustentabilidade financeira; se tivermos em conta o actual mapa das Zonas de Tensão e Conflito (ZTC) em África delineado por Pedro Pezarat (2010: 297-387), onde os conflitos ou crises embrionárias grassam erraticamente, aumentam ainda mais os obstáculos a enfrentar na medida em que a abrangência dos mesmos traduz-se na incapacidade de uma resposta eficaz dentro da arquitetura de paz e segurança africana.


Estas dificuldades abrem espaço para a cooperação e parcerias multilaterais em matéria de segurança e defesa quer com as Nações Unidas quer com a União Europeia ou mesmo com a NATO ou ainda de forma bilateral com alguns países como os EUA e a França. Com efeito, a dita African Ownership ainda está longe da autonomia preconizada na resolução de conflitos regionais pelo que não se pode reivindicar exclusividade. África precisa de financiamento, assessoria, fornecimento de equipamento, treinamento e, porque não, operações híbridas de intervenção directa de contingentes militares. Tendo em conta o índice de conflitualidade que faz da África uma das regiões mais voláteis do globo, tem sido entendimento comum a nível do Conselho de Segurança e da comunidade internacional de que a segurança em África é uma prioridade estratégica, na medida em que «sem segurança não existe desenvolvimento humano sustentado, não há segurança do Estado ou das organizações, mas a dimensão da segurança real sentida e centrada na pessoa humana» (BERNARDIO, 2013: 590). Repare-se no novo conceito de segurança que está a ganhar cada vez mais força nas relações internacionais: a segurança humana. Esta pressupõe a primazia da pessoa em relação ao Estado, este entendido como instituição política.


Neste sentido, várias missões de paz estão ainda em curso em África com o envolvimento directo de contigentes das Nações Unidas, como na República Democrática do Congo, no Mali, na Guiné Bissau, República Centro-africana, etc. A UE e a NATO, bem como outros países, têm estado a desenvolver políticas de cooperação multilateral e multidisciplinar quer no âmbito da African Standby Forces quer no domínio da  Continental Early Warning System.


«A liderança politica dos africanos, porventura apoiados num quadro de cooperação internacional holística - integrando organizações internacionais, organizações regionais e sub-regionais, Estados e organizações não-governamentais - é imprescindível para se encontrarem soluções progressivas, sustentadas e duradouras para as crises e conflitos que atingem países e vastas regiões africanas»  (NASCIMENTO & AUGUSTO, 2012: 14).


Embora tenhamos de realçar as limitações internas da UA no âmbito da gestão de conflitos e de operações de manutenção da paz, BERNARDINO (Op.Cit) reconhece-lhe, porém o mérito de ter conseguido três sucessos:

 Ter conseguido congregar todos os países de África, com a execepção do Reino do Marrocos em torno das mesmas causas
 Ter levado as organizações ´´não-africanas´´ a encontrarem nela o parceiro ideal e credível
 Tem mostrado trabalho no terreno, não só ao nível do apoio ao desenvolvimento e da concertação diplomática, mas principalmente como mecanismo estabilizador de confltios em África.


Todavia, convenhamos que o terrorismo não se combate apenas com armas e com exércitos. As armas não são o único instrumento de poder. A informação é também poder, do ponto de vista estratégico. Pela sua complexidade, o terrorismo requer um estudo profundo para uma melhor compreensão: não podemos combater aquilo que não conhecemos. Segundo Nuno Texeira, «a primeira exigência que devemos ter para o poder combater eficazmente é perceber aquilo que temos pela frente: a ameaça, a natureza da ameaça que temos à nossa frente» (TEIXEIRA, 2009: 155). A União Africana, neste sentido, deve contar com a cooperação de outras organizações, grupos de inteligência, e think tanks a fim de recolher, processar e disseminar informações classificadas sobre o fenômeno. Trata-se de se criar espaço e capacidades para construir uma segurança partilhada (cooperação) e uma segurança multisectorial (para lá da simples esfera político-militar).


Na visão do especialista Paul R. Pillar, o combate contra o terrorismo internacional envolve diferentes elementos, incluindo a dissuasão dos indivíduos em aderir aos grupos terroristas, a dissuasão de grupos terroristas em usar o terrorismo como veículo e expressão das suas ideias e reivindicações, reduzindo a capacidade operacional, criando sistemas de defesa física de ataques terroristas e mitigando os efeitos dos ataques. Trata-se de todo um conjunto de acções concertadas que este autor designa por ´´contraterrorismo´´. Este tem como objectivo levar os terroristas a abdicar das acções de terror, a redução das suas capacidades operacionais e a redução da motivação dos indivíduos em aderir. O contraterrorismo envolve a diplomacia, a intelligence, controlo financeiro, o sistema de justiça penal e força militar (PILLAR, 2008: 457-468). Todavia, todos estes mecanismos esbatem hoje com a impressionante resiliência dos combatentes jihadistas cujo fanatismo leva-os a distilar um ódio visceral e irracional contra os seus alvos (maior número possível de população civil) e a estarem predispostos a morrer. Bastam-nos as imagens televisivas que passam amiúde nos principais canais internacionais onde se pode ver cenas de uma crueldade inusitada que repugnam a consciência da humanidade. Diante disso, fenece qualquer ilusão de erradicar o terrorismo como ameaça global em dois tempos. É preciso persistência e paciência com acções estratégicas concertadas de curto, médio e longo prazo, pois a solução deve ser holística e não parcial.


Conclusão


A estratégia regional ou sub-regional em operações de apoio à paz só alcançará a "full capability" quando os Estados africanos estiverem determinados com uma vontade política clara e inequívoca em potenciar a organização pan-africana com capacidades multidisciplinares, tendo em conta a sua vocação política. A UA não tem ainda uma experiência consolidada em operações de paz, mas os últimos dez anos constituiram um ponto de arranque inovador para os desafios geopolíticos e geoestratégicos do século XXI. Enquanto organização de amplitude continental, a UA representa inexoravelmente um factor de mudança e por isso tem uma palavra a dizer no âmbito da comunidade internacional em matérias de segurança e desenvolvimento.


Entretanto, a cooperação e a parceria bi-multilateral com outras organizações internacionais ou intergovernamentais e com outros Estados não-africanos deverá contribuir imenso na operacionalização da arquitetura de paz e segurança em Africa em estreita conexão com as African Standby Forces. Nos nossos dias, o conceito de segurança alcançou novas dimensões com as ameaças transnacionais e transterritoriais. Estamos diante de desafios globais que requerem outrossim respostas globais.


Referências

1. BERNARDINO, Luis
Maio 2008: Politicas de Segurança e Defesa em África. O Papel das Organizações Regionais Africanas, in «Revista Militar», Nº 5 (Maio 2008).

2. BERNARDINO, Luis, A Posição de Angola na Arquitetura de Paz e de Segurança Africana. Análise da Função Estratégica das Forças Armadas, Ed. Almedina, Famalicão, 2013.

3. CARNEIRO, Emmanuel Moreira & Manuel Eanes FERREIRA (coord.)
2011: África Sub-Sahariana Meio Século Depois (1960-2010), Luanda e Lisboa: Edições Colibri - CIS

4. TSHIYEMBE, Mwayila & Mayele BUKASA
2013: A África face aos seus Problemas de Segurança e de Defesa, Mangualde /Luanda: edições pedago-edições mulemba, Mangualde / Luanda
 
5. AA.VV.,
2010: Organizações Internacionais, Coimbra: Editora Coimbra, (4ª edição).

6. CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, Cap. V,  art. 24º, Cap. VI, art. 33º, Cap VII, Art 51º.

7. CORREIA, Pedro de Pezarat
2010: Manual de Geopolitica e Geoestratégia - Vol II. Análise Geoestratégica do mundo em conflito,       Coimbra: Almedina

8. NASCIMENTO, Augusto & Carlos Coutinho RODRIGUES (coord.)
2012:  A Prevenção e a Resolução de Conflitos em África, Lisboa: IDN

9. http://en.wikipedia.org/w/index.php?title=History_of_the_African_Union&oldid=634295833 (acessado 12.01.2015)

10. PILLAR, Paul R.
2008: Counterterrorism, in Paul D. Williams (ed), Security Studies. An Introduction, London and New York: Routledge

11. TEIXEIRA, Nuno Severiano, in AA.VV.,T
2009: Terrorismo Transnacional. Estratégia de Prevenção e Resposta, : s/l: IESM