Sem eufemismos, nem titubiezas, o ex-primeiro ministro Marcolino Moco denuncia o que descreve como tentativa de golpe jurídico-constitucional.


N.J: Num artigo de opinião, publicado em Dezembro, o senhor manifesta-se contra um cenário de eleição indirecta do Presidente da República e fala mesmo em golpe jurídico-constitucional…

M.M: A acontecer a eleição indirecta. A ordem constitucional no nosso caso, surgiu de um processo de independência que evoluiu até hoje. Historicamente, temos dois tipos de Constituição. A que surgiu da Independência, que consagrava o sistema de partido único, e a que surgiu, a partir de 92, baseada em princípios completamente diferentes, sobretudo, porque admite uma democracia multipartidária. É uma mudança de constituição por via transicional e não do derrube de um sistema estranho, como o colonialismo, nem por um golpe de Estado.
Mas também há golpes constitucionais, em que pode não haver intervenção militar.

E isso sucede quando?

Quando os princípios basilares de uma Constituição são modificados, a partir de uma certa interpretação incorrecta dos seus princípios. Pode falar-se em golpe jurídico-constitucional se fosse ultrapassado um limite fixado pela Constituição actual, segundo o qual a eleição por sufrágio directo dos órgãos de soberania não pode ser alterada, é o tal famoso artigo 159.

O que deve acontecer? A eleição presidencial antes da revisão constitucional?

Esse é outro problema, que normativamente não está previsto. Não há nenhuma regra jurídica que diga se o Presidente deve ser eleito pela actual Constituição ou pela próxima. Mas o direito e as normas constitucionais baseiam-se em princípios preexistentes: a moral, a ética, a lealdade e a razoabilidade. Neste caso, estamos perante uma questão de razoabilidade.

Porquê?

Porque toda a sociedade está na expectativa de que as presidenciais não devem depender da futura Constituição, de acordo com compromissos. As eleições legislativas e as presidenciais foram anunciadas depois de um Conselho da República e não se disse aí que as presidenciais esperariam pela nova Constituição, a menos que eu esteja enganado, mas não creio…não creio. A própria lógica do processo diz isso. As presidenciais, inicialmente, deviam realizar-se
na mesma altura que as legislativas para fazer uma coisa que é importante neste país: a regularização das instituições. Desde 1992, vivíamos numa situação irregular, de falta de normalização constitucional. Essa normalização começou, em 2002, com a assinatura da Paz, a seguir à morte de Jonas Savimbi. Já passaram seis anos, realizaram- -se as legislativas, porquê? Porque todos os pressupostos para haver tanto a eleição legislativa como a presidencial estavam reunidos.

As presidenciais são necessárias para consolidar esse processo de normalização?

Exactamente, sobretudo, num sistema como o nosso, no continente africano, com o papel, muito importante, que é atribuído ao Presidente. Se todas as condições já estão reunidas porque é que vamos abrir brechas na possibilidade de mais um adiamento? Não só eu, mas muitas pessoas estão a ver que o adiamento nem seria para 2010, porque temos uma actividade que nos vai absorver, o CAN. Isso, em termos de razoabilidade, de ética, porque a política também tem de ter ética, seria incompreensível.

Está preocupado?

Muito preocupado, mesmo. Por isso não consigo calar-me.

Concorda com o dr. Marcelo Rebelo de Sousa (jurista e analista político português) quando disse, numa palestra em Luanda, que a eleição indirecta é uma forma de deslegitimar o cargo?

Absolutamente. Veja que eu ainda não havia chegado aí. Em direito, esses aspectos são a substância. Eu ainda só tenho colocado o problema prévio, que é o do tal “golpe”, ao modificar o sistema de eleição do Presidente por um Parlamento que não foi eleito para isso. Este Parlamento foi eleito para constituir governo e para o controlar. Não foi eleito para eleger um Presidente. É gravíssimo, logo num aspecto prévio. O dr. Marcelo falou já na questão substantiva e, pela primeira vez, vou pronunciar-me sobre ela. Se me permitir, vou utilizar uma expressão popular. Seria “passar de cavalo para burro”, sem necessidade nenhuma. E levantamse aí muitas contradições. Como é que as pessoas que advogam que o Presidente seja uma figura central, que pede poderes para levar a cabo a tarefa difícil da transição, explicariam que ele fosse eleito por um sistema menos legitimador? É uma grande contradição.

Ainda ninguém explicou essa “contradição”?

Não. Não admito sequer essa possibilidade. O que me admira é ter-se falado nisso e dizer-se que há essa tal corrente, como se ela fosse conhecida antes do Presidente da República falar nisso, numa reunião do Comité Central do MPLA.

A questão, depois de levantada, não tem sido muito discutida?

Eu tenho discutido, há vários outros juristas que se têm pronunciado. A maioria esmagadora tem sido contra, todos estão na mesma do e, depois, sair de um processo mais democrático para um restritivo de eleição de um órgão tão importante, em Angola, onde o Presidente da República tem um papel fundamental - e estou de acordo que tenha - sem nenhuma justificação plausível. Esvaziou-se o papel do primeiro-ministro e pretende-se esvaziar o do Presidente da República. Exacto.

No artigo que publicou, disse que o MPLA não necessita dessa manobra “tão perigosa” para fazer valer a vitória do seu candidato natural às presidenciais. Tão perigosa porquê?

Porque cria os tais precedentes. O precedente em direito tem muita força. Se na Europa hoje se pode ser um pouco condescendente, em África, sobretudo, nós juristas, não devíamos facilitar. Enquanto que na Europa, normalmente, a um Estado corresponde uma nação, aqui temos um Estado que abarca um conjunto de nações. Quando os colonos chegaram aqui há 500 anos, os ovibundos e os quimbondos eram nações, foi um processo interrompido. Não há dúvida que o Estado actual, embora artificial, é um Estado progressivo que devemos aperfeiçoar. Nesse estado de aperfeiçoamento é perigoso afastarmo-nos das normas, não só jurídicas, strictu sensu, mas das que lhe são pré-existentes, o direito da razoabilidade, da lealdade, da boa fé, etc., etc.

O Presidente da República ao falar na eleição indirecta do Chefe de Estado não está a legitimar essa tal corrente?

A minha preocupação é essa. Se fosse outra pessoa, não me preocupava. O presidente do partido é o Presidente da República e está a dar suporte a uma ideia “perigosa”, entre aspas. Não vai causar nenhuma guerra, não vai matar ninguém, mas vai criar precedentes perigosos. As constituições não devem ser feitas em função das pessoas, são feitas para gerações. Hoje as pessoas podem facilitar porque estão a pensar no Presidente José Eduardo dos Santos, que é uma pessoa de bom senso, calma, ponderada. Mas amanhã se vier alguém que vai invocar precedentes já criados, mas que seja uma pessoa má, anti-democrática, que não pondera, onde é que vamos parar?

Os políticos têm actualmente uma grande responsabilidade?

Uma grande responsabilidade. É uma preocupação que as pessoas tiveram, quando o MPLA ganhou por uma percentagem tão elevada. Muitos analistas disseram logo que não acreditavam que o MPLA não abusasse desse poder. Na altura, acreditei, mas se realmente essa situação passar, não vou acreditar mais, embora seja o meu partido. Deduzo que não é uma questão consensual dentro do MPLA?
Parece-me que é quase consensual.

 Tenho falado com muita gente inclusive dirigentes do MPLA e estão perfeitamente de acordo com a tese que estou aqui a esgrimir. Refiro-me à outra corrente? Em relação à outra não vejo qualquer sustentação, pelo menos entre as pessoas com quem tenho falado, que não são poucas e não são menos importantes. Todas acham que essa ideia não vai passar. Há uma diferença. Eles perdoam, entre aspas, o Presidente na medida em que, conforme dizem, lançou isso como um tema de debate. Eu “não perdoo” porque o Presidente da República é o garante número um da Constituição e, como tal, não pode atirar cá para fora coisas que algumas pessoas irreflectidamente levantam. Sobretudo quando são correntes desconhecidas.

As eleições presidenciais devem realizar-se o mais cedo possível?

Devem realizar-se este ano, no quadro da Constituição actual, a menos que a nova seja aprovada em tempo recorde.

O que é em tempo recorde?

É ser aprovada antes de Setembro. É um compromisso moral que todos os dirigentes, sobretudo os que estão no poder agora, assumiram. Eu não sinto a oposição preocupada com isso, mas acho que se devia preocupar. Como é que interpreta o silêncio da oposição? Também sente esse silêncio? Pensava que era só eu (risos). Encaro isso com muita tristeza mesmo. Mas como é que o interpreta? Como uma incoerência. Antes queriam andar depressa. Nunca fui favorável a andar depressa com as eleições, antes que se sentisse que a coesão nacional era uma realidade. Aí tenho que fazer justiça ao Presidente José Eduardo. Foi graças a ele e ao MPLA que se conseguiu travar aquele ímpeto perigoso e realizar as eleições numa altura em que a situação estava calma. Essa acalmia continua. É preciso terminar o processo de normalização e a oposição agora está calada. É pena. Provavelmente por interesse político para digerir a grande derrota sofrida. O MPLA, apesar da esmagadora maioria na AN, prometeu um processo de revisão constitucional participativo.

Tem sido?

Penso que sim. Sempre que se alarga a discussão é bom. Mas há quem desconfie das intenções, e eu também, que este apelo seja uma forma de baralhar as águas e adiar as eleições. Há muitas questões importantes sobre a nova Constituição que já foram ultrapassadas.

Não necessitam de nova discussão?

A discussão foi feita antes das eleições. Havia alguma discrepância no sistema de Governo, mas há praticamente um consenso, e o MPLA já tem uma definição que foi sufragada nas eleições, o presidencialismo. Parece que alguns chamam a isso um semi-presidencialismo com pendor presidencialista, mas no ante-projecto distribuído não se trata mais do que um presidencialismo, e aí sim o primeiro-ministro seria de facto um coadjutor. Até se pôs a possibilidade de eliminação do cargo para criar um vice-presidente ou vários. Agora só há questões a retocar.

Quais?

O sistema tem de ter coerência. Não se pode aceitar que o Presidente seja chefe do governo, comandante em chefe das Forças Armadas, chefe do Estado, nomeie o governo sem consultar os partidos e, ainda por cima, vai ter poder de
dissolver a Assembleia.

Defende o equilíbrio de poderes?

Exactamente. Essa é uma questão doutrinal, do direito comparado, e é uma questão de razoabilidade.

Qual é o melhor sistema político?

Para mim é o que está consagrado nesta Constituição mas devo dizer que não é a grande preocupação. Nós tínhamos um sistema semi-presidencialista, mas a actuação foi presidencialista e não me preocupou a actuação. Não me preocupou que o Presidente, no dia a dia, até pela situação que se vivia, de guerra, de transição, usurpasse materialmente os poderes do primeiro-ministro. O que não admito e não aceitei no meu tempo, é que também em termos formais eu próprio me declarasse coadjutor ou auxiliar, esses termos restritivos, de uma coisa que formalmente não estava prevista na Lei, isso era de uma grande incoerência. O Presidente líbio Moamar Kadhafi assumiu a presidência da União Africana, numa recente reunião em Adis Abeba, Etiópia, onde defendeu a criação dos Estados Unidos de África, baseado no modelo da União Europeia.

É um bom caminho?

Não. É muito mau caminho, porque o Presidente Kadhafi está a fazer esquecer uma estratégia correctíssima aprovada, em 1991, em Abuja, segundo a qual a criação das estruturas supra-nacionais africanas deve ser gradual. Deve ter em conta a consolidação dos próprios Estados africanos, que ainda enfrenta muitas dificuldades. O segundo passo são as organizações sub-regionais dentro de África, que, reflexo das dificuldades nacionais, estão a enfrentar grandes complicações. Não acredito que um governo continental é que vai resolver os problemas que ainda existem. São as sociedades civis que devem amadurecer para resolver a questão da boa governação, da transparência, da democracia. Depois vamos perseguir o trabalho da estruturação das organizações regionais e construir, então, a super estrutura governativa. Esta estratégia foi aprovada e o presidente Kadhafi, não sei porquê, está, digamos, a querer dar um passo maior do que as pernas. Seria um passo artificial? Absolutamente. Manifesto o meu desacordo e vejo com muito preocupação que haja essa insistência, à qual, irrealisticamente, estão a aderir alguns estados africanos. Muitas organizações, inclusive internacionais, defendem que Angola tem condições para ser uma potência regional, economicamente falando e politicamente. O país tem assumido esse papel? Tem, sem dúvidas, e muito bem. Poderia ser melhor, mas é prejudicado pelas dificuldades que ainda tem pelo processo de transição que está a viver.

Onde é que tem falhado?

Por exemplo, na regularização de alguns conflitos. O problema dos Grandes Lagos, do Zimbabwe. Parece que há uma certa dificuldade nessa intervenção. Dificuldade que curiosamente a África do Sul também tem. São solidariedades dos nossos políticos que francamente não compreendo. Quando as coisas estão tão claras, quando se vê que a situação presente no Zimbabwe é da responsabilidade política dos dirigentes actuais. Se eu estivesse no lugar dos actuais chefes de Estado talvez sentisse a mesma dificuldade, mas não deixo de lamentar que as autoridades angolanas e sul-africanas não digam a verdade aos nossos amigos - porque tenho a honra de chamá-los nossos amigos - como têm feito o Bispo Desmond Tuto, o ex-presidente moçambicano Chissano, e Graça Machel.

Durante 10 anos dedicou-se a uma vocação, como sublinhou Marcelo Rebelo de Sousa, elogiando-o por ser dos raros políticos que não se agarraram a um cargo. O aprofundamento da sua vida académica, na área do direito, é um virar de costas à vida política?

Não. Continuo a considerar-me político. Continuo disponível para cargos políticos, só que (pausa) tenho princípios. Não ocupo hoje mais nenhum cargo sem princípios.

Em que condições voltaria a assumir funções?

Se puder exprimir algumas ideias que considero fundamentais, de forma aberta, sem condicionamentos, sobretudo dentro do partido. O Governo exige disciplina, mesmo a Assembleia Nacional exige. Mas enquanto não me for facultada esta possibilidade, sobretudo, no meu partido, não hei-de ocupar nenhuma função. Como vê a vida política angolana? De uma forma geral, Angola vai muito bem. Se fizermos o cotejo com o que se passa em alguns dos outros países africanos não há comparação. É verdade que também há muito exemplos (pausa) sobretudo em questão de valores, em que se vai melhor do que em Angola. Aí vou citar, porque são positivos, Cabo-Verde, Moçambique e mesmo S. Tomé e Príncipe. Uma coisa é o exagero no debate das questões que, às vezes, imobiliza, é negativo e tem acontecido em S. Tomé. Outra coisa, é a transparência, é (pausa) a possibilidade de as pessoas exprimirem livremente, as suas ideias, sem medo.

Essa é uma questão essencial?

É. Aqui em Angola há uma certa dificuldade. Essa ideia que se cria, não se sabe bem donde vem, de que só um indivíduo é que é capaz de ocupar este ou aquele cargo. Aqui as pessoas quase têm de pedir desculpa para falar.

Esse receio condiciona a qualidade da democracia?

Muito. Aqui há tabus, há questões que não se devem tocar. Nesse aspecto, estou muito preocupado. Mas há muitos outros em que andamos muito bem e em que, sem dúvida, todo o mérito deve ser atribuído ao Presidente da República, José Eduardo dos Santos, e ao MPLA. A obra humana nunca é perfeita e há este senão, que não é menos preocupante, porque estamos a transmitir valores que não são bons aos jovens e muitos deles nascerem neste ambiente. No princípio, justificava-se, era um regime de partido único. Mas até diria que no partido único, estávamos mais avançados em relação a alguns tabus. Paradoxalmente, depois de 1992 e do processo de paz, há quem esteja aqui a criar tabus injustificados.

Que tabus?

Que há determinadas pessoas, sem as quais isto vai acabar. Escreveu, há um ano, que em democracias modernas não há pessoas insubstituíveis? Não há, mas aqui tenta-se passar uma mensagem diferente. Temos de ultrapassar isso para, ao discutirmos os problemas, não estarmos a olhar para os lados. Talvez seja um problema da riqueza nacional, do petróleo. Incentiva- se muito o culto ao dinheiro e ao poder, daí a importância daquilo que o doutor Marcelo disse, e agradeço que tenha sido em torno da minha pessoa, que temos de passar a mensagem de que o exercício do poder não é, em si, o mais importante. Antes do poder, há os valores. Estou preocupado porque estamos a passar para os
jovens a ideia de que importante é a pessoa que tem muito dinheiro ou está no Governo. O culto ao dinheiro numa altura em que o mundo vive uma crise económica.

A crise económica é conjuntural, vai passar, têm acontecido outras…

Os analistas convergem na ideia de que esta será a pior. É verdade que vai ser um momento muito grave, mas não tão grave como o de 1929. Felizmente que, nos limites desta crise, temos uma mudança muito importante que é a chegada de um homem excepcional à administração dos Estados Unidos. Parece que foi a Providência que o trouxe.

A eleição de Barack Obama foi uma lição para o mundo?

Uma grande lição em vários aspectos. Na questão, por exemplo do racismo. Ainda teimam, apesar da ciência já ter demonstrado que só há uma raça, em classificar as pessoas não pelo seu valor, mas pela cor da pele. É através da cor da pele que se estabelece, ainda, a graduação da importância das pessoas, no sentido do complexo de superioridade e do de inferioridade. Mas a importância da eleição de Obama foi sobretudo pelas suas ideias. Restituiu os valores à política. Exacto. Restituiu os valores à política, a prioridade ao multilateralismo em detrimento da imposição unilateral, dando uma nova dinâmica às Nações Unidas. Eu estou 100 por cento com as Organizações Internacionais. Quando comecei a dar aulas sobre esta matéria, em 2004, falava com muita confiança no papel das Nações Unidas, mas à medida que os anos passaram, sobre a presidência de Bush nos EUA, eu via as Nações Unidas serem completamente diluídas no seu valor. Felizmente, voltarei a dar aulas como dava, em 2004 (risos). Recuperou a confiança nas instituições internacionais. Sim.


Há em Angola a ideia de que só um indivíduo é capaz de ocupar este ou aquele cargo. Aqui as pessoas quase têm que pedir desculpas para falar esteira que eu. Um ou outro pronunciou-se a favor ou quase a favor. E deixe-me exclamar: como é que um jurista vai contra uma norma jurídica de princípios constitucionais tão importantes? Está a referir-se a quem? Não cito nomes. Um jurista. O poder constituinte hoje, como todos sabemos, está com a nova Assembleia Nacional. Em termos normativos e de princípios pré-normativos, há limites ao poder constituinte. A Assembleia Nacional por mais maioria de que tenha resultado não pode elaborar uma Constituição onde se plasmem princípios inaceitáveis. A doutrina prevê limites materiais imanentes (os que estão retidos na Constituição), limites heterónimos (que se referem ao direito comparado), ou seja, nenhum poder constituinte pode trazer princípios ou normas que em nenhum outro país, ou a nível internacional, são admitidos. Assim como há limites éticos, morais que partem da própria lógica das coisas. Há coisas que são inadmissíveis, não há dúvida de que haveria um recuo num sistema mais avançado de eleição para um restrito sem qualquer razão. É que se houvesse alguma razão plausível…

O que seria uma razão plausível?

Não estou a ver. Não há nada que justifique esse “retrocesso”? Não. Ouvi falar numa razão ridícula, de ordem financeira, isso nem tem comentário. Gasta-se tanto dinheiro com coisas frívolas neste país. Se fosse esse o problema, então tinham-se juntado as duas eleições. Estas mesmas pessoas pediram a separação das eleições, criando a oportunidade para gastos, e agora vão apresentar o argumento financeiro, francamente (risos) é ridículo.

De qualquer forma, o MPLA tem poder para fazer aprovar uma proposta nesse sentido?

Politicamente, o MPLA pode fazê-lo, mas faz um “golpe jurídico- -constitucional” e cria um precedente.

Que precedente?

Embora já tenha havido outros precedentes de que não queria falar, mas hoje vou falar (risos). É o problema da interpretação do papel do primeiro-ministro, em Angola. Não queria falar porque sou suspeito, fui primeiro-ministro, mas hoje já não tenho responsabilidades. Além disso, vejo jovens com muito valor, o dr. (António) Paulo, o dr. Adão (Almeida), que elaboraram as suas teses exactamente, para surpresa minha porque são pessoas ligadas às instituições, na esteira da minha ideia. Em termos formais, o primeiro-ministro não pode ser visto como um coadjutor, isso não tem nada a ver com o que está na Constituição. Pelo contrário, o primeiro-ministro na nossa Constituição tem responsabilidades próprias, junto do Presidente da República e da Assembleia Nacional. É ele que coordena a acção do Governo.

Qual é o precedente que se cria agora?

Agora quer criar-se um, que é muito mais grave e de que não posso deixar de falar, como jurista e como político. Querem alterar um limite material que está estabeleci- Há quem esteja a criar tabus injustificados.

PERFIL: Nascido no Huambo, em 1953, Marcolino Moco foi o primeiro secretário-geral do MPLA e, nessa condição, foi indicado como primeiro-ministro, cargo que assumiu em Dezembro de 1992. Em 1996, por incompatibilidade com o Presidente da República foi afastado do caso, tornando-se, nesse mesmo ano, primeiro secretário executivo da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). Após cumprir dois mandatos, cessa funções na CPLP, em 2000, dedicando-se a partir de então à sua carreira como jurista e professor catedrático, na Universidade Lusíada de Angola.

Fonte: Novo Jornal